o beijo de Klimt – Yêda Schmaltz
No pulso da noite resvalam
as minhas estruturas.
Na noite, das mais escuras,
meus espantos, maus espasmos
e o impulso de ver-te.
Na geografia do meu quarto,
procuro outro canal. Maçãs,
nádegas e seios me observam
pelo grande espelho desfeito.
Estradas, rios, os chapéus
e os livros de cabeceira:
uma legião de kamikazes
no pulso da noite
e na geografia do meu leito.
Aqui, onde me deito,
procuro outro canal, um colírio,
um milagre de imagem
neste mundo de TV cansada e mínima.
Por um caminho escuro, estreito,
Entro no quadro de Gustav Klimt:
um exército de estrelas
no céu me ilumina;
um discurso é consumado;
um verso arremessado, exíguo e ébrio;
e a mentira, capengando,
sai por outro lado.
Um filme abstrato e poético,
O Beijo, de Klimt;
toda a fotografia e a música
de um poema, postura de Giotto,
no que revoluciona,
cores, formas e luzes.
Dentro do quadro de Klimt,
tomo a postura da imagem feminina,
a envolvida, e me ajoelho:
estou nos braços no deus-beijo.
Qualquer retórica
seria ilógica
ou tão possível, como desejou
Gertrud Stein: “A rose is a rose
is a rose” e o beijo de Klimt.
Leda amando a glande do pescoço-
pênis do amado cisne.
As coisas vão crescendo:
um poeta
e seu mundo de fermento.
Pingos de luzes e ouros,
tesouros abraçados,
pedaços dos meus vestidos
envolvidos, retalhos
da melhor ternura,
a que me faz falta.
Porque o beijo que me beija
Klimt é o beijo do meu
Namorado, mas é também o beijo
de tudo o que me ama
e que desejo — meu pai
que foi pra guerra e me deixou,
minha mãe que não ficou madrasta
me matando, pelos figos
da figueira que o sabiá beliscou.
Oh, excitação do nervo óptico,
o óptimo do beijo de Klimt,
chuva de cores e amores
em mint.
Imaginação virtual,
ícone de sempre,
virtude, vírgula, virtuose,
vitória total.
O amor reciclado:
olhar de novo o céu estrelado,
estrelar-se, deslocar-se, implantar-se,
chover-se, colorir-se, ser-se.
O mundo e o amor,
o fogo num simples beijo
e tudo no meu olhar.
A natureza da imagem
seria algo nomeável?
Ou um receptáculo,
um campo minado
ou granulado de luzes?
Centelhas
brancas e vermelhas.
O Beijo de Klimt
é um filme extenso, que determina o
intenso, na minha retina indômita;
igual quando vejo as luzes e, em seguida,
elas permanecem brilhando,
mesmo fechando os olhos:
princípio da bomba-atômica.
Canção do Pont Neuf – Afonso Félix de Sousa
Como a juntar meus próprios ossos
debrucei-me sobre lembranças
que acreditava em frias poças
mas nunca em águas assim mansas
nem neste rio longe e próximo.
É tão bom quedar-me em tais margens
junto de águas que nunca bebo,
onde por muito contemplar-se
o céu da tarde ficou bêbado
e entortaram-se aquelas árvores.
Meu Sena amigo, tantas vezes
parei neste cais dolorido,
que uma possível correnteza
levará em meio a detritos,
toda minha alma pelo avesso.
Perguntas, silêncios e fomes
– tudo te trago qual um filho.
E algo de mim se desmorona
aqui nestas bordas tranqüilas,
pois ci-gît mon coeur vagabond
Barcos de solidões flutuam
sobre tuas noites – e afogas
louros fantasmas de uma lua
mais longínqua, mais melancólica,
mais de outro mundo do que a Lua.
De ti me abeiro, e me dissolvo,
mas nunca me sinto sozinho.
Os que têm ouvido aqui ouvem
palavras que um dia o destino
prendeu a trechos de Beethoven.
Ou são falas de amar que escuto?
Meu rio, de mim o que guardas?
Sei de meu coração sepulto
nalgum ponto de tuas margens,
mas sei que de há muito está mudo.
Em volta a cidade, profunda,
vai pelos dois lados do rio.
Para lá da cidade, o mundo.
Mais para lá, o amor que tive …
meu rio como eu vagabundo.
Melodias – Gilberto Mendonça Teles
Ternas melodias de longínquas plagas,
nas manhãs da vida fascinando a gente,
sois o desafio de revoltas vagas
pela alma ecoando como um som ausente.
Ternas melodias, de que mundo ignoto,
de que estranhas terras vindes me encontrar?
Sois a transparência que no sonho noto?
Sois a ressonância do poema, no ar?
Ou vindes dos astros — de uma Sírius? Vênus?
De que firmamento, de que céus surgistes?
Quérulos gemidos de amarguras plenos
só podem ser ecos de meus sonhos tristes.
Essas melodias cheias de tristeza
são talvez saudades que em meu peito eu tinha;
são as confidências dessa natureza
de milhares de almas que possuo na minha
Essas melodias que a minh’alma douram ,
que a meus sonhos beijam com tamanho ardor,
essas melodias tão sonoras foram
de remotos tempos vibrações de amor.
Sem Título – Heleno Godoy
Adentrar a casa, pelo
portão: pórtico finca-
do entre grades, gran-
de o muro em torno;
entre o porão e o ático,
a casa se estende e se
protege: um projeto ou
uma proposta (a porta
a ser fechada), a casa se
constrói no que acumula
— um cedro no jardim e
outro na sala, cortado
e revestido; como o musgo
a recobrir a casa e seus
súditos: um súbito susto,
de medo — sua medida.
As Escarpas do Olimpo – Valdivino Braz
Os dias, os dias e os dias. Os dias-ossos, duros de roer, que o dentro é o que rói seus dias de cão. As letras, moscas, máculas de ósseos ofícios. Os degraus da rocha por onde desço: Sísifo, cansaço de artifícios. Ombros de chumbo, como nas costas de Atlas a bola do mundo. Nas escarpas do Olimpo, carrego a pedra dos rins e bebo a água do (ab)sinto: a ilusão de consolidar-se uma obra, toda uma vida, que se tira do nada pérolas de madrepérola, ou leite das pedras, ao avesso das cabras. Sobras de uma, sombras de outra, vida e obra se consolidam na ilusão de ambas, tão certo quanto incerto o futuro, tão claro quanto surpreender-me no escuro. Mas que diabos! Há um cão mais arcaico do que lamber-se o branco, feito coito? Já devia ter-me acostumado à idéia da inutilidade de tudo — esquecer-se de si, matar-se de vida por uma obra.
Tenho moído as pedras desta vida, e soprado os fantasmas do pó. Mão e mó de moer-se sozinho, o sonho é que move os moinhos. Prevalece o branco — a óssea resistência, a imponência da rocha — onde a vassoura dos ventos junta a ciscalha dos signos. Tenho varrido as folhas de tudo, as quedas do tempo, as sobras do sonho, a munha, no moinho dos ventos. Nos bolsos ainda apanho sustos, ainda alguma ilusão de Olimpo, o cisco do redemoinho das formas. Ainda uns fogos da noite, sonâmbulos relâmpagos, incendeiam meu quintal de figos efêmeros, os maduros imaginários do relógio.
Ocupado em viver a morte que me vive, vivo
enquanto agonizo.
O tempo é um maestro de facas, e a vida o gemido rasgado de galos que morrem, mas agora a tudo tempero com a salsa da indiferença: já nem ligo para os furos nos bolsos, por onde tudo vazou: as pedras moídas nas horas desertas desta porfia à revelia de ampulheta. Toda perda, os frutos que perdi. Todo branco, a poeira que comi. Mas não se eleva do pó o Olimpo dos reveses? Vá que ainda me limpo na fortaleza dos deuses. Ah, pendurar-me o suor num prego, me banhar com a água do sossego!
Bela lista!
Esse V. Braz,hem?! Belíssimo e meio W.B.Yeats, não acham? Confiram:
“Tenho moído as pedras desta vida, e soprado os fantasmas do pó. Mão e mó de moer-se sozinho, o sonho é que move os moinhos. Prevalece o branco — a óssea resistência, a imponência da rocha — onde a vassoura dos ventos junta a ciscalha dos signos. Tenho varrido as folhas de tudo, as quedas do tempo, as sobras do sonho, a munha, no moinho dos ventos. Nos bolsos ainda apanho sustos, ainda alguma ilusão de Olimpo, o cisco do redemoinho das formas. Ainda uns fogos da noite, sonâmbulos relâmpagos, incendeiam meu quintal de figos efêmeros, os maduros imaginários do relógio.” (Valdivino Braz, poeta)/*****