Oppenheimer: no coração do homem-bomba

13 agosto 2023 às 00h01

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Solemar Oliveira
Especial para o Jornal Opção
Christopher Nolan é um dos grandes diretores da atualidade, isso não se discute. Tem gosto por histórias complexas, roteiros intrincados e guinadas surpreendentes. Foi assim com “O Grande Truque”, “Batman: O Cavaleiro das Trevas” e “A Origem”, três de seus melhores filmes. E teve um ótimo começo de carreira com excelente “Amnésia”. Com “Oppenheimer” não é diferente. Todos os elementos que definem o estilo Nolan estão presentes. Mas nele, assim como em “Dunkirk”, os eventos são históricos e, a maioria, reais.
Julius Robert Oppenheimer era um prodígio. Desde pequeno demonstrou interesse pelos estudos. Frequentou uma das melhores instituições americanas, a Escola de Cultura Ética de Nova York. Estudou em Harvard. Conhecia amplas áreas acadêmicas e dominava línguas clássicas. Ou seja, um gênio precoce altamente promissor. Escolheu a Física para a carreira de cientista. Foi para a Europa aprender com os melhores e estabeleceu-se rapidamente como um excelente teórico.
No futuro estaria envolvido em mais do que equações matemáticas e conceitos físicos que intencionam explicar a natureza e seu funcionamento. E mais, seria um dos principais envolvidos na confecção de um dos artefatos bélicos mais devastadores já inventado.
É impressionante, em uma entrevista, o depoimento de Oppenheimer sobre o desenvolvimento da bomba atômica, onde diz: “Sabíamos que o mundo não seria mais o mesmo. Algumas pessoas riram. Algumas pessoas choraram. A maioria das pessoas ficou em silêncio. Eu me lembrei de algumas linhas do texto sagrado hindu Bhagavad-Gita. Vishnu tenta convencer o príncipe de que ele deveria cumprir o seu dever e para impressioná-lo, assume sua forma com múltiplos braços e diz: ‘Agora eu me tornei a Morte, a destruidora de mundos’”. A vida do físico é essencialmente cinematográfica. Um prato cheio para o diretor Christopher Nolan, que trata Oppenheimer como um meta-humano.

Ao distanciar-se do homem comum, Nolan, que apresenta o cientista relacionando-o ao mito grego de Prometeu (como seus biógrafos mais recentes, Kai Bird e Martin J. Sherwin, autores do livro “Oppenheimer — O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano”), estuda e desenvolve um dos personagens mais interessantes e controversos da história moderna com grande domínio único de direção. O gênio descrito é algo incomum, um pária superpoderoso isolado, mentalmente distinto, por isso intocável. Uma vez estabelecido, um deus entre nós, Nolan se reorienta e busca encontrar em Oppenheimer algo de humano. Após elevá-lo quase à categoria de um deus, vem a desconstrução.
O problema (para não dizer a virtude) é que Nolan parece estar contando uma saga de super-herói.
Como tem experiências em estabelecer ordem a partir do caos, ou tornar toda organização estabelecida em desordem (entropia, para usar uma palavra da Física), pois dirigiu um dos melhores filmes de personagens de quadrinhos de todos os tempos, ele para estar fazendo o Batman novamente. Nolan parece enxergar um Batman em pelo menos um de seus heróis, em cada um de seus filmes. Um vício adquirido pelo fato de ter acertado precisamente, uma vez.
Seu Oppenheimer é inteligente e disciplinado, passou por uma iniciação dura, conquistou suas habilidades nas melhores academias do mundo. Começou na Universidade de Harvard, foi para Cambridge e Göttingen, onde obteve treinamento completo com os melhores especialistas do mundo. Trabalhou em Berkeley. Resolveu problemas complexos de Física teórica com exímia competência. Um dos modelos físico-matemáticos mais relevantes da Física Atômica e Molecular foi desenvolvido por ele, em parceira com Max Born, a “Aproximação de Born-Oppenheimer”.

O filme deixa claro que seus superpoderes foram testados à exaustão e são capazes de magníficas proezas. No filme não há explicações físicas intrincadas ou equações generosamente distribuídas em quadros negros com longa duração ou em vários momentos. Roland Joffé faz isso melhor em “O Início do Fim”. Como em um filme de heróis, gostaríamos de vê-los usando seus superpoderes o máximo possível. Em Oppenheimer temos a construção do mito, as consequências da ação e o estabelecimento da ideia. Esta última, sendo a mais importante.
É muito difícil não estabelecer um paralelo entre “Oppenheimer” e “O Início do Fim”, este segundo um filme da década de 1990, dirigido por Roland Joffé.
Nolan parece ter ignorado completamente “O Início do Fim” para contar a história do físico americano e da construção das primeiras bombas atômicas por conta própria, para mostrar sua visão autoral.
“O Início do Fim” tem como foco principal a disputa de força de duas potências: Robert Oppenheimer, realizado pelo inspirado ator Dwight Schultz, numa atuação de peso, e o general Leslie Groves, vivido por Paul Newman, excelente.
No filme de Nolan a tensão fica entre Oppenheimer e o empresário Lewis Strauss. A escolha de Matt Damon como general Groves transfere uma empatia que não vemos em “O Início do Fim” e torna a personagem uma espécie de parceiro de “Oppenheimer”, cheio de carisma, distante e diferente da personagem criada por Paul Newman. O fato é que “O Início do Fim” tem virtudes que “Oppenheimer” não tem, sobretudo nas explicações científicas sobre o processo físico e químico de fissão, coisa bastante interessante e necessária para a história funcionar.
Nos filmes de super-heróis quem costuma roubar a cena, e não é incomum, é o vilão. Lewis Strauss é desenhado, o roteiro de Nolan deixa isso muito claro e patente, com as peculiaridades dos vilões. É egocêntrico, intimidador, manipulador e gosta de poder, mas isso não se percebe de imediato. “Oppenheimer” conta a história da criação da bomba atômica, olhando de perto o seu criador, tudo gira em torno do cientista, mas faz isso a partir de uma espécie de tribunal inquisidor, com flashbacks, e torna-se, ao longo do desenvolvimento, uma história de mistério. Em algum momento, uma vez estabelecido o herói e seu dilema maior, sua dor pelas escolhas e as perdas ocasionadas por suas ações, o arqui-inimigo se revela. Sempre esteve por perto, fazendo o que sabe fazer melhor: dissimular. Ele tece sua teia e construí uma armadilha complexa, inescrupulosa. Ele é uma espécie de coringa. O antagônico, a outra face da moeda.
“Oppenheimer” é um grande filme e faz a mágica acontecer, como gosta Nolan. Ele provou em “O Grande Truque”. O filme recria momentos fantásticos da história.
Einstein e Oppenheimer: problemas do filme

Mas toma liberdade para criar situações extravagantes desnecessárias e distantes de uma realidade mais verossímil e relevante. Como o encontro de Oppenheimer com Einstein, uma espécie de oráculo, que na contramão do tema científico, lança respostas, em forma de metáforas, para os dilemas essenciais do protagonista. O ambiente bucólico, à margem de um lago, onírico, cheio de grama verde e natureza majestosa, cria os arquétipos místicos para tornar Einstein ainda maior do que é, ou essencialmente diferente. É aquele ancião reservado, que tem as respostas para todas as perguntas, mas prefere instigar o interrogador para que ele descubra por si mesmo. Uma cena com os dois conversando, sentados à mesa de trabalho, com o quadro negro ao fundo, orientador e aluno, teria sido mais eficaz e real.
O Einstein de Nolan é uma espécie de Alfred elevado à enésima potência. Quando o velho sábio dá sua bênção e sua lição, as coisas podem acontecer.
É certo que “Oppenheimer” concorrerá às principais categorias do Oscar. O filme tem uma ótima trilha sonora é uma das melhores dos filmes do diretor. A fotografia é impecável. O triunfo da qualidade técnica somado a um bom roteiro. É fato que a vida do grande cientista, por si só, tem acontecimentos suficientes para render, no cinema, uma grande história. Particularmente, Nolan tem habilidade para dirigir atores. Verdade que o elenco é composto pelos mais talentosos atores de Hollywood, a maioria está especialmente inspirada, sobretudo Cillian Murphy, provavelmente no papel da sua vida. É impressionante! O ator é o centro de tudo, sua performance é irretocável. Robert Downey Jr., quase irreconhecível, equilibra a balança numa atuação brilhante.
“Oppenheimer” é o discurso do mito. E mais, uma tentativa de aproximação entre o humano comum e o super-humano, o gênio Físico-matemático, com o superpoder de desvendar, através de equações, os enigmas da natureza. Há, por conta da manipulação dos elementos, da alquimia da destruição, um conjunto de consequências para gerir. Homens com poder surgem dessa resolução científica do caos. E eles querem mais poder.
O Oppenheimer de Nolan é o herói que carrega o peso de suas escolhas. Pois muitos sofreram em função delas. No final, não há vencedores. Há uma ideia e um mito. Assim como em “O cavaleiro das Trevas”, rege a desordem na determinação das sentenças, para ambos herói e vilão.

No filme, os títulos são apenas rótulos para engendrar a trama e o drama. Nolan tenta humanizar o herói, mas não consegue. Talvez seja exatamente essa a intenção. Ainda o vemos, depois de grande parte da projeção, como um ser maior do que aqueles que o cercam. Impossível ser de outra maneira. A mente brilhante de Oppenheimer foi capaz de produzir, com organização e disciplina, uma das armas mais poderosas da história. Poderia ser ele o vilão, mas na sua intenção está o altruísmo acima de tudo. O bem maior. Essas são as consequências de criar um herói complexo, com motivações sinceras e uma fortaleza técnica capaz de exímias proezas.
Solemar Oliveira, escritor e doutor em Física, é professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG). É colaborador do Jornal Opção.
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