“Oppenheimer”: Christopher Nolan ao sol e à sombra

20 agosto 2023 às 00h01

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João Paulo Tito
Especial para o Jornal Opção
Quando vem filme novo do Christopher Nolan, ninguém sabe se vai ser algo acima da média (“Amnésia”, “O Grande Truque”, “A Origem”, “Interestelar”, “Batman — O Cavaleiro das Trevas”, “Dunkirk”), ou mais uma tentativa infrutífera de inventar a roda (“Transcendence — A revolução”, “Insônia”, “Tenet”).
Talvez essa gangorra constante na filmografia do diretor seja a causa da leva incessante de rótulos como diretor superestimado, ou de produtor de conteúdo para pseudo-intelectuais… enfim. Fato é que ele consegue monopolizar as atenções, e, com “Oppenheimer”, não poderia ser diferente. Dessa vez, o tiro foi certeiro.
A cinebiografia sobre Julius Robert Oppenheimer, o físico americano considerado como o pai da bomba atômica, reúne aprovação de 93% no site Rotten Tomatoes, portal referência da crítica especializada, e já arrecadou mais de 500 milhões de dólares no mundo todo.

Na tela, Cillian Murphy (que ganhou notoriedade em “Extermínio”, de 2002, trabalhou com Nolan em “Batman — O Cavaleiro das Trevas”, “A Origem”, “Transcendence — A revolução” e “Dunkirk”) dá voz ao personagem título e nos carrega ao antes e depois da explosão nuclear que mudaria o mundo, em 1945.
Mas não é só isso. O filme nos leva a um intenso dilema moral entre o avanço científico sem precedentes e a corrida para que isso fosse feito antes que o inimigo o conseguisse, no calor de uma guerra mundial. A bomba atômica, utilizando tecnologia nuclear inédita, poderia dizimar milhares, mas também poderia colocar fim à guerra garantindo o lugar final no pódio. Paz, não. Supremacia.
Não seria possível explorar a fundo essa dimensão moral da História sem recorrer ao ponto de vista subjetivo e humano dos próprios personagens. E aqui, uma primeira escolha importante do diretor: eleger como pontos de vista principais e antagônicos o do próprio Oppenheimer, e o do presidente da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos (AEC), Lewis Strauss, interpretado de forma muito competente por Robert Downey Jr. (o eterno Tony Stark).

Em comunicado, Nolan, que também assina o roteiro da obra, disse à imprensa que o público é convidado a seguir Oppenheimer na viagem, estar ao lado dele a todo momento, como que por cima de seus ombros. Para isso, recorreu à técnica inusitada de escrever o roteiro em primeira pessoa. Além disso, dividiu, na tela, a fotografia entre preto e branco e colorida, simbolizando os pontos de vista, respectivamente, de Strauss e Oppenheimer, no que os mais apressados poderiam enxergar como mera divisão cronológica da narrativa.
Em determinado ponto, o próprio Strauss diz a um interlocutor que os inocentes e bem-intencionados gostam de sair ao sol e acabam se queimando. O poder, entretanto, permanece nas sombras, discreto e efetivo. É a metáfora perfeita para a expressão dos pontos de vista e, ao mesmo tempo, o desfecho do filme — talvez excessivamente didático e moralmente raso, previsível.
Um outro recurso que Nolan traz para reforçar o dilema moral pelo qual passa Oppenheimer está na sua consciência metaforizada, recorrendo a arquétipos básicos de roteiro expressos em personagens como o general Leslie Grooves, de Matt Damon (muito bem no papel) responsável pelo chamado à jornada; o mentor de Niels Bohr (Kenneth Branagh) ou o mais explícito e romanceado Albert Einstein, um sábio mago vivido por Tom Conti, ornado no amor e na boa intenção e ungido por anos de experiência e sabedoria divina. Nesse ponto, o apelo é também à bagagem cultural do próprio espectador, que na maioria das vezes coloca Einstein no mesmo vagão que John Lennon, Pelé, Princesa Diana e tudo o mais que o pop não poupa. Em suma: não espere uma dimensão científica do pai da Teoria da Relatividade, mas sim um apêndice moral à história que Nolan quer nos contar. Fato é que funciona.

Esse passeio pelo ponto de vista ético e moral é visceralmente encerrada com a explosão da bomba (vamos lá, isso não é spoiler não é?). Bom que se diga, não vemos o lançamento da “Fat Man” e da “Little Boy”, porque isso é mero exaurimento da jornada do nosso herói. Não vem ao caso, porque ele já sabia das consequências. Tudo bem, Nolan nos faz torcer pelo sucesso de Oppie, ficamos ansiosos com os Testes Trinity, mas a euforia pelo sucesso da explosão-teste muda rapidamente — para nós e para o físico — instantes depois. A comemoração dos presentes alegra, mas constrange. O tremor da bandeira americana inspira glória, mas vexame e ironia igualmente. Todos exalam furor, mas internamente ninguém está em paz. O alívio pela missão cumprida é bruscamente interrompido pelas evasivas militares. “Daqui para frente, nós assumimos, doutor.” Não há mais escolhas a serem feitas. Hiroshima e Nagasaki tornaram-se a realidade que Oppie insistia em não ver, obcecado unicamente pela conquista científica pessoal. A ele, só caberia agora colher a dor e a delícia de ser o pai da bomba atômica — e nisso, Strauss teria contribuição fundamental dali em diante.
Nesse sentido, o esquema do filme de três horas emula ao da bomba em si. Primeiro, a construção do personagem. O aumento da energia, da tensão, da razão de ser. O ápice, com a explosão, a conquista científica e o brilho. Por fim, num efeito retardatário inevitável, a desconstrução, a morte.
O que não funciona ininterruptamente bem — e isso não é “privilégio” de “Oppenheimer” — é a trilha sonora. Por vezes uma moldura fantástica, trazendo toda a sensação de átomos em explosão, outras vezes chocando como o ruído da própria bomba distribuído aqui e acolá, mas algumas vezes escorregando por simplesmente não desaparecer. Repare só, seja em “Interestelar”, seja em “Dunkirk”, Nolan não dá folga para os nossos ouvidos — e é impossível que isso funcione bem o tempo todo (a diferença é que aqui, Hans Zimmer não assinou a trilha, por incompatibilidade de agenda). Nessa obra, existem momentos espetaculares como a tensão crescente externada em uma plateia batendo com os pés no tablado de um auditório, mas existem momentos absolutamente novelescos, como uma orquestra plenamente ativa aparecendo mais do que um diálogo corriqueiro entre duas pessoas cavalgando.

É possível se dizer que, apesar de um grande filme, “Oppenheimer” não é o ponto alto da filmografia do diretor. Suas assinaturas estão lá: reviravoltas de roteiro, personagens fortes, uma bela fotografia, obsessão com a reprodução material da realidade (fugindo de imagens em computação gráfica), uma trilha sonora absolutamente exuberante.
E o aspecto principal de seus filmes, presentes no pior e no melhor deles, que é a capacidade de nos fazer sair do cinema refletindo sobre o que acabou de passar diante dos nossos olhos. Missão cumprida.
João Paulo Lopes Tito é crítico de cinema e advogado.