Obras de Adalberto de Queiroz e Mauri de Castro: o erudito e o popular na poesia goiana
09 abril 2023 às 00h00
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Simone Athayde
Especial para o Jornal Opção
A poesia, após a libertação das amarras formais pelo movimento Modernista, é hoje uma das expressões artísticas mais livres e ecléticas, que tanto pode retomar o clássico, quanto flertar com o popular, com o coloquial. De uma forma ou outra, o sucesso na composição de uma obra dependerá do talento do poeta e de como ele utiliza o tradicional ou o popular com nova roupagem. Dois goianos que podem figurar como poetas que buscam essas diferentes vertentes, Adalberto de Queiroz e Mauri de Castro, e seus livros “O rio incontornável” (Editora Mondrongo, 2017) “Memória de um prego enferrujado” (Chiado Books, 2022) são bons exemplos dos diferentes caminhos que a arte poética pode percorrer.
Em O rio incontornável, Queiroz parte da mitologia grega, mais precisamente da lenda do rio Letes, para forjar os poemas de seu livro, cujas características mais marcantes são o amplo trabalho dialógico realizado pelo autor com outras obras e escritores e a utilização de palavras e expressões eruditas. As referências a essas obras e autores importantes, porém pouco conhecidos pelo grande público, como Herberto Helder, Geraldo Melo Mourão e Tomás Tranströmer, e o uso extensivo de expressões em línguas estrangeiras dificultam a leitura da obra, exigindo um exercício de pesquisa por parte do leitor a fim de que seja possível captar uma maior gama de sentidos. Tal característica dos poemas desse livro, um tanto herméticos ao leitor comum, tem como contraponto ser uma obra de beleza quase anacrônica, que tem nesses diálogos com os quais os versos são construídos seu grande diferencial.
O tema principal é o esquecimento, não só o causado pela morte, como aquele que sofre o poeta que vê, com a passagem do tempo, sua memória ser prejudicada. A religiosidade também é um tema importante na obra. O divino aparece como algo mais desejável às conquistas humanas, é a saída do poeta que vê se pequeno, frágil e, por vezes, perdido. Segundo a mitologia, o rio do Esquecimento é o rio Letes, que nascia da caverna de Hipnos, o Sono, e seguia rumo ao submundo. Depois da morte, quem bebia a água dele tinha a memória apagada. A partir desse mote, o poeta traça um paralelo inusitado entre o rio mitológico, os rios de sua terra natal e os rios que inspiraram outros escritores tão diversos entre si, tais quais João Cabral de Melo Neto, Rimbaud, Carmo Bernardes e Paul Verlaine. O rio também é um símbolo: representa a morte, a passagem para outra dimensão mais sagrada ou para outro tempo, pois o moderno, com seus barulhos e suas sinfonias disformes, incomoda a sensibilidade do eu-poético, como ele deixa transparecer em Viola D’Amore:
“Ferem meu langor, ultrapassam a janela:
vindo do meu vizinho próximo tão dissonante
um só tom, ecoa um só batuque; atropela
a minha alma sensível e estrangeira:
Aí, lamento longo e polifônico tange
viola d’amore em barroco absorvido.”
Assim como no verso acima há a palavra barroco, há algo de barroco na poesia de O rio incontornável, tanto na complexidade que remete ao cultismo e ao conceptismo marcantes daquela escola literária, quanto pela dualidade profano/sagrado apresentada em alguns poemas. Com isso, o saudosismo talvez seja um dos construtores subliminares dessa obra, pois ao revisitar seus autores e personagens preferidos e ao utilizar um estilo refinado, Queiroz o faz como fuga ao moderno.
Acima de tudo, O rio incontornável pode ser lido como uma grande homenagem do autor à arte poética, aos poetas que o antecederam, às leituras que ele fez e que formaram sua bagagem cultural. A voz que narra os poemas é ela mesmo a de um poeta, que às vezes deixa transparecer sua frustração diante dessa condição, como em “Esquece o poema”: “Não há nada a ser feito neste/ inferno provisório, senão/ aguardar o purgatório./ Esquece o poema, esquece!”
Em O lago de Wynstan, construído com traços autobiográficos, formam-se imagens tocantes do menino órfão que encontraria na literatura sua vocação: “Mr. Eliot conheci bem depois de Heleno e do Antônio José de Moura – estes, sim, / moravam na cidade do ócio dos Teles:/ – para mim, só trabalho pesado. / De todos os meus ofícios – 28, ao todo – poeta – o que à mãe menos honrava.”
Os cenários dos poemas, em parte contendo elementos estrangeiros, em parte goianos, como o morro do Mendonha, está representado pelo cerrado num dos poemas mais acessíveis e mais bonitos do livro: Nascentes (II) – Goyaz.
“No outono da vida o sol do cerrado
seca as mesmas sementes – sol a pino:
sementes de abóbora comidas assadas,
coisas de antanho com igual desatino.
Cajá-manga devorado com sal, à sexta-hora
o gosto arcaico na boca desata o sonho –
feito pamonhas ao leite ou tortas de amora,
só o torniquete do acerbo deixa tristonho.
Minha avó comendo manga com faca,
nas tardes de outrora, espectro se evade:
uma sombra morna no sonho somos.
Lembrança similar aperta de mansinho
a segunda costela à sinistra do sono;
– Esquecer, dormir, sonhar quem há de?”
Memórias de um prego enferrujado, de Mauri de Castro, também começa com poemas que abordam a metalinguagem, ou seja, o fazer poético, a prática da escrita e o mundo das palavras. Em Terapia, o autor escreve: “Como o rio busca o mar/ a alma busca a poesia pra se elevar./ Não tem contraindicação/ nem efeito colateral. Tome ao menos uma vez ao dia/ gotas de Quintana/ de Drummond/ de Bandeira/ que a alma há muito doente/ não demora fica boa./ E lembre-se:/ para se libertar/ do mal que lhe atravanca/ quem toma Florbela/ seus males Espanca!”.
A questão da arte, do ser poeta, é tema também do ótimo Autobiografia, no qual o eu-poético se compara aos irmãos, colocando-se sempre como alguém “torto, de cara lambida, sinistro canhoto”. Nos versos finais, vem a pérola: “Todos são bem-sucedidos/ só eu virei poeta.”
É entre trocadilhos, trabalhos divertidos com a linguagem, numa aparente coloquialidade despretensiosa, que Mauri vai construindo seus poemas ricos em verdades e que apenas na aparência são simples, quase infantis. O autor sabe fazer jogos linguísticos, vez ou outra lança mão de palavras difíceis, eruditas, que complementam os sentidos e o ritmo de seus poemas, quase sempre estruturados em rimas alternadas. Aforismos é um ótimo exemplo da habilidade do autor de brincar com as possibilidades da linguagem escrita, trazendo a comicidade que foi sua marca registrada como ator para dentro de um livro de poemas, do qual se espera, quase sempre, um ar mais sisudo.
O poema Palavras por palavra propõe um exercício ao leitor, que é chamado a perceber quantas palavras existem dentro da palavra irrespons(h)abilidade. Sem querer fazer uso educativo da poesia de Mauri, é possível encontrar neste poema, e em outros, bons textos para aulas de Língua Portuguesa e Literatura, pois tratam de forma lúdica a questão da antonímia, como o divertido Malgrado, da paronímia, das metáforas, das conjunções e os sentidos que estabelecem, e da eufonia, como os poemas Transitório, Afago, Tudo vaza, Não fosse, e Nem tudo, construído como se fosse um conjunto de parlendas.
Mesmo com a leveza e a veia cômica que o autor empresta aos seus poemas, ele se sai muito bem naqueles de tom melancólico, pessimista, como Canto aos desvalidos, no qual há um diálogo com personagens da mitologia grega; Memórias de um prego enferrujado, que denuncia os horrores da escravidão, além de Elo, que fala de perdas, de impossibilidades, de frustações e sonhos perdidos:
“Uma ponte rachou dentro de mim…
E com ela ruíram as possibilidades.
Todas elas.
Todas.
Mesmo as mais possíveis.
As que de tão prováveis
Pensei já tivessem sido
Por si sós realizadas…
As que teci com todo zelo
á sombra de um outono
enquanto uma folha caía. […]
E me dói tanto
perder a travessia
que me apavora
a certeza da perda.
Porém
o que mais me dói
é saber que no eu-rio
não há mais ponte
por aqui
a ver de vista…
e nem há longe
que eu saiba
qualquer ponte.
Memória ancestral é outro lindo poema que quebra a sequência de textos brincalhões. Dividido em três partes, manhã, tarde e noite, o poema descreve os três períodos do dia numa paisagem intocada, com suas matas, bichos, pedras e águas, como uma metáfora da Criação. Tudo é descrito de forma delicada, remetendo a Manoel de Barros, até que, ao final, rompe-se o equilíbrio através do aparecimento de um personagem inesperado. Veja um trecho:
I – “Manhã
Bicho-preguiça
Esticava seus longos braços
numa árvore milenar
e os fixava em seus galhos
como rede na varanda.
Galo cumpria a sina de acordar o mundo
e lembrar o compromisso de existir.
Alvorada deslocava a escuridão
com ternura de borboletas.”
Com essa obra, Mauri de Castro dá prosseguimento a uma carreira que já se mostrava auspiciosa em Sonata em mim menor, e abre caminhos para que leitores que são avessos à poesia mais complexa possam se aproximar da arte poética, enquanto Adalberto de Queiroz também confirma seu talento que se tornou reconhecido pela crítica com Cadernos de Sizenando.
Simone Athayde, crítica literária e escritora, é colaboradora do Jornal Opção.