A obra-prima de Juan Carlos Onetti
17 maio 2014 às 09h37
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Em “Junta-Cadáveres”, Juan Carlos Onetti cria uma análise metafísica dos personagens na qual o liberalismo e o pudor se chocam na filosofia dos habitantes da pequena e imaginária cidade de Santa Maria
Ronaldo Costa Fernandes
Há um engano de avaliação na perspectiva de alguns críticos e muitos leitores. Acredita-se que o ritmo veloz da narrativa é um atributo de valor em detrimento da lentidão. A pior literatura policial tem ritmo frenético, as maiores obras da literatura ocidental e oriental do século 20 são lentas, circulares, digressivas. É nesta última categoria que se insere Juan Carlos Onetti.
Onetti (Prêmio Cervantes de 1980) é um clássico moderno num mundo de clássicos modernos de língua castelhana no século 20. Junta-Cadáveres, nome dado em razão de o proxeneta Larsen viver à custa de prostitutas velhas e gastas, é um romance de atordoante contemporaneidade, mais de quarenta anos de sua publicação.
Mestre da língua, Juan Carlos Onetti (1909-1994) não chegou a ter ensino regular, apenas cumpriu as primeiras letras. Trabalhou como jornalista da agência Reuters, foi publicitário, diretor da Biblioteca Municipal de Montevidéu, exilou-se em Madri, depois de 1975, fugindo do governo militar. Publicou “El Pozo” (1939), “A Vida Breve” (1950) e “El Astillero” (1961). E, em 1993, “Cuando ya no Importe”. A mestria de Onetti, que o faz ombrear-se aos seus contemporâneos mais extraordinários como, entre outros, os argentinos Cortázar, Bioy Casares, Jorge Luis Borges, Ernesto Sábato e seu conterrâneo Horacio Quiroga, coloca-o, pelo apurado senso de percepção da linguagem literária, entre os mais expressivos em língua espanhola.
Construído de maneira elegante, variando de foco narrativo, este romance de Onetti passa de um personagem a outro, de forma sutil e sem quebra de continuidade. O grande personagem seria a pequena e imaginária cidade de Santa Maria, onde Junta-Cadáveres chega com três mulheres para ali fundar um problemático prostíbulo. O que na pena de um Jorge Amado ou mesmo de Mario Vargas Llosa poderia resultar num romance picante (e picaresco), de cunho satírico, em Onetti temos uma construção romanesca que se move muito lentamente. Diria que Onetti cria uma análise metafísica — e não propriamente psicológica — dos personagens. Estupor, pasmo, desconcerto perante a vida, dificuldade de encontrar significado: o rapazinho Jorge que frequenta furtivamente a viúva de seu irmão Federico, o surpreendente Marcos Bergner (violento, machista, mas que ao final desconcerta o leitor), o farmacêutico Barthé que banca o prostíbulo, o médico Díaz-Grey, com seu fastio e olhar desenganado à realidade provinciana.
Aqui não há romance de costumes, e mesmo o previsível choque de moralistas x libidinosos é elevado a uma categoria transcendental. Existe, sim, um mundo de desencanto, imobilizado pela modorra das tardes quentes de verão ou a solidão cinzenta das ruas geladas do inverno. A vida posta em desassossego, menos pela presença incômoda da casa de janelas celestes que pela inquietação mesma dos personagens que se desfazem em vidas ordinárias.
O final de Junta-Cadáveres difere do corpo do livro. Onetti recupera a velocidade da intriga e oferece ao leitor um final não compatível com o ritmo anterior. Há algo de policial e trágico no desfecho, que o entrecho não oferece. O melhor do livro está na suspensão, nos parágrafos de difícil tradução, não porque sejam eruditos, mas pela construção original, pela frase de adjetivos surpreendentes, geralmente construídos para expressar a suspensão dos personagens. A suspensão dos personagens em Onetti não está apenas na crise existencial, mas no desenredo de seus incômodos, na desventura de peripécias mínimas, na indigência de vidas sem perspectiva de grandeza.
É boa esta tradução. A dificuldade de tradução aqui está no torneio da frase e não nas palavras raras ou no uso coloquial como a gíria que, na maioria das vezes, dificulta o acesso ao universo linguístico do autor. Em determinado capítulo, o primeiro tradutor de Junta-Cadáveres, nos anos 1970, viu o ronco de uma prostituta como “despencando pela janela como um sapo brando e desossado”, enquanto o atual tradutor apegou-se à real concepção (poética, porém fiel ao autor) do ronco “que despencava da janela e vinha estatelar-se no chão como um sapo esbranquiçado e desossado”. As armadilhas linguísticas de Onetti não param por aí. Leitor e tradutor têm que ler com atenção redobrada, mas com a recompensa de uma prosa inquietante, de uma linguagem instauradora de uma realidade asfixiante e cifrada.
Ronaldo Costa Fernandes é escritor.