O verbo, o belo e a condição humana na obra poética de Anderson Braga Horta

20 fevereiro 2022 às 00h00

COMPARTILHAR
Sua poesia, multifária e pluridimensional, é resultado e representação semântica de uma voz em que o eu-lírico se manifesta e se estabelece enquanto fala
João Carlos Taveira
Especial para o Jornal Opção
1
Veredas pessoais
A trajetória poética de Anderson Braga Horta, cuja estreia se deu na maturidade, aos 37 anos, tem sido, desde então, a manifestação inequívoca de um talento artístico harmonioso, plenamente voltado para o mistério do Verbo, do Belo e da condição humana. Sua poesia, multifária e pluridimensional, é resultado e representação semântica de uma voz em que o eu-lírico se manifesta e se estabelece enquanto fala, enquanto identidade. Por extensão, o homem está para o poeta, como o poeta está para a palavra: visceralmente unidos e indissociáveis.

Desde o primeiro livro, o premiadíssimo “Altiplano e Outros Poemas”, de 1971, passando por “Marvário”, “Incomunicação”, “Exercícios de Homem” (título que de per si corrobora estas reflexões) e “Cronoscópio”, até chegar a um dos mais recentes, “O Pássaro no Aquário” — coletânea que veio ombrear com as dos principais e mais expressivos nomes no cenário da moderna poesia brasileira —, podemos confirmar o compromisso de Anderson Braga Horta com a palavra, no seu exercício cotidiano de busca da essencialidade humana. Nesta poesia nada é gratuito, artificial. Todo o seu corpo formal e conteudístico se alicerça na estrutura da poesia clássica, pelo que ela possui de barroco, de romântico, de simbolista.
A força expressional verificada em sua obra, aliada ao conhecimento intelectivo e ao apuro técnico, confere ao autor de “O Cordeiro e a Nuvem” uma dicção e uma especificidade criacionais incomuns, porque dotadas de característica pessoal, intransferível: o caráter e o talento elevando-se como matriz da vida e da obra de um homem. Aquela associação ou fusão que Manuel Bandeira ressaltou em Murilo Mendes e que, posteriormente, Edson Nery da Fonseca vislumbrou no seu conterrâneo Mauro Mota.
À maneira de Cecília Meireles — a voz mais musical e regular de nossa lírica moderna —, este mineiro de Carangola vem construindo sua obra, verso a verso, poema a poema, livro a livro, com a humildade e a paciência de ourives, características dos grandes espíritos, que, sem o saberem, vêm ao mundo para a melhoria da humanidade, numa contribuição de sua iluminação, de sua genialidade.
Anderson Braga Horta, com todo o merecimento, goza de grande prestígio nos meios intelectuais do País. É hoje, sem dúvida, outra grande voz vinda também de Minas para dar continuidade ao canto drummondiano, nessas duas dezenas de anos do século XXI e do Terceiro Milênio. E Brasília, que tem o seu testemunho no longo e belo poema “Altiplano”, há de inscrever-se como berço e paradigma de sua permanência nestas terras de que Dom Bosco viu, em sonho, verter leite e mel, numa profética visão de um novo tempo.
2
Veredas de Minas
Em “Quarteto Arcaico”, Anderson Braga Horta nos traça um pequeno mas abrangente panorama histórico, descrito em quinze poemas emblemáticos, dos quais somente dois (“O Aleijadinho” e “Passarim”) não são inéditos, por se encontrarem no livro “O Pássaro no Aquário”. Entretanto, todos foram escritos no período compreendido entre 1957 e 1996. (O quarteto que dá o título geral é de março de 1997, o que perfaz, até ali, um registro de 40 anos de atividade poética.)
O poema octossilábico que abre este volume, intitulado “Canção do Início da Jornada”, de 1957, funciona operisticamente como uma “ouverture”, já que insinua os temas a serem desenvolvidos no decorrer do livro e prepara o leitor para uma grande viagem de surpresas por veredas de encantamento, que terão seu ápice, seu “finale” no também primoroso “Passarim”. Logo após, temos o longo poema “Romance de Filipe dos Santos”, de 1993 (por sinal, uma bela canção heroica construída em redondilha maior), em que são narrados os fatos e feitos da vida e morte deste português tido como precursor do movimento inconfidente em Minas Gerais. Seguem-se-lhe, aliás, o “Romance dos Poetas Conjurados”, de 1996, e o “Romance do Caminho de Minas”, de outubro de 1992, composições em versos polimétricos que recriam metonimicamente o espaço físico e o clima psicológico para a saga do alferes Joaquim José da Silva Xavier.
Os demais poemas vão se desenrolando por caminhos, trilhas e nomes relacionados com a Arte (“O Aleijadinho”, de outubro de 1978), com a História (“A Santos-Dumont”, de outubro de 1957) e, mais acentuadamente, com a Poesia, no “Soneto do Pobre Alphonsus” (1972-1995), em “As Musas” (1996), no “Centão de Murilo Mendes” (1995) e nas quatro composições da série em que o Poeta presta homenagem a seus amigos Drummond (“Tercetos a Carlos Drummond de Andrade”, de 1992), Henriqueta (“Estrambote de Henriqueta Lisboa”, de 1996), Guimaraens Filho (“Soneto de Alphonsus de Guimaraens Filho”, de 1982) e Joanyr de Oliveira (“Pluricanto de Joanyr de Oliveira”, de 1971), numa recombinação de ideias, imagens, palavras, versos inteiros dos homenageados; sendo os derradeiros (“Tempo Virado”, subintitulado “Na Roça”, de novembro de 1957, e “Passarim”, de agosto de 1983) o caleidoscópio por onde ABH, com seus olhos de menino, conclui, para usar um termo de sua preferência, lindeiramente, esta viagem e visitação às “Veredas de Minas” (título original do livro, em tributo a Guimarães Rosa, substituído imediatamente ao se dar conta o Autor de que o tomara a um curta-metragem de Fernando Sabino).
Evidencia-se, ainda, nesta pequena e bela e instigante coleção de poemas, o poder de síntese com que ela foi concebida e a abrangência temática que permeia suas páginas. No poema “Romance de Filipe dos Santos”, criado algum tempo depois, e que vem a ser a espinha dorsal do livro, temos uma riqueza de recursos estilísticos os mais variados. A utilização da linguagem barroca reflete-se na construção e tessitura dos versos, das estrofes e até mesmo das rimas, o que atesta, mais uma vez, um conhecimento e um domínio técnico-formal dignos da lavra andersoniana. Neste poema, podemos sentir, liricamente, toda a convergência simbólica dos elementos significantes dando o tom para as demais composições, como se fora uma peça musical. Uma sinfonia! Outra demonstração de habilidade do Autor está patenteada no tratamento dos signos com que reinventa, sinestesicamente, o universo mineiro de sua origem — aqui, o objeto de algumas “viagens” futuras por outras veredas. (Vale ressaltar que este poema, por sua importância e beleza, devia ser utilizado para estudos mais profundos deste volume.)
3
Outras veredas
As outras três partes do livro, intituladas “A Cabeça de Orfeu”, “Restilo” e “Onda e Antionda”, contêm os poemas mais recentes da criação de Anderson Braga Horta, e apresentam um “crescendo” de temas líricos e místicos que vão desaguar no social, ainda dentro do espírito da música, até a retomada do tema inicial.
A primeira seção de “A Cabeça de Orfeu”, subintitulada “Emblemas”, se organiza com peças curtas, sintéticas, em que nos defrontamos com um eu-lírico timidamente desvelado. Não obstante, um desnudamento diante da vida e seu mistério. E aí podemos destacar algumas preciosidades como “Emblema”, “De Repente”, “Nel Camin”, “Flecha”, “Quarteto Arcaico” e “Rapto”.
A segunda seção, que tem por subtítulo “Trama”, oferece-nos uma leitura mais conceitual da veia místico-psicológica já encontrada em alguns poemas da seção anterior. São nove composições das mais variadas formas, do soneto alexandrino às redondilhas menor e maior e ao verso polimedido. Destacam-se, no meu entender, “Trama”, “Espagírica”, “A Palavra-Coisa Musgo” e “Órfica” — esta, por sinal, mais uma obra-prima criada pelo autor de “Exercícios de Homem”.
“Restilo” representa, por sua vez, a parte mais condensada do livro. A utilização do haicai — poema de origem japonesa que tem servido à perfeição o gosto pela síntese de muitos poetas brasileiros, com destaque para Guilherme de Almeida — demonstra e corrobora minha tese do domínio instrumental de Anderson Braga Horta.
Em “Onda e Antionda” fica bem mais evidenciada a manifestação do eu-lírico, que, sem nenhuma dúvida, confere a esta coletânea um caráter artístico elevado e ricamente polifônico. As composições aí inscritas vão do soneto ao poema polimétrico, passando magistralmente pelo verso livre, numa reiterada demonstração do domínio técnico deste poeta cuja mestria pode ser comparada também à dos grandes compositores sinfônicos como Haydn, Beethoven e Mahler — para citar apenas três.
O poema que fecha o conjunto de “Quarteto Arcaico”, denominado “A Tartaruga”, além de nos confirmar a polifonia da linguagem musical, devido ao seu clímax, pode ser lido tranquilamente como uma viagem cinematográfica. Entre os vários pontos sugeridos, parece-nos que esta viagem foi elaborada a partir de um filmograma de Fellini, em “La Dolce Vita”. Trata-se de uma das mais belas realizações poéticas de Anderson Braga Horta, concebida sem nenhuma preocupação especial no tocante a certos preconceitos formais dominantes. Ao contrário, sente-se que é um poema nascido da fluidez da inspiração e realizado com simplicidade e leveza comumente constatadas só em poetas maduros e experientes como o autor de “Fragmentos da Paixão” (Prêmio Jabuti de 2001).
Com este belo livro, ponto de altíssimo nível de iluminação da obra de Anderson Braga Horta, por representar, dentro de sua criação artística, um mergulho dos mais felizes nas fontes da poesia brasileira, tenho motivos de sobra para vaticinar a consagração de uma vocação humanista, sempre voltada poeticamente para os reais valores do Homem, na construção de um mundo mais justo, mais generoso e mais fraterno.
João Carlos Taveira, poeta, ensaísta e crítico, com vários livros publicados, é mineiro de Caratinga e colaborador do Jornal Opção.