Dona de volumosa fortuna crítica, a literatura da escritora paulistana é explorada por seus variados aspectos marcantes, como o feminino, o amor e o sobrenatural

“Contos ou romances que nasceram de algum sonho, enfim, a maior parte dos meus trabalhos deve ter origem lá nos emaranhados do inconsciente — a zona vaga e imprecisa do mistério. Impossível determinar as fronteiras do criador e da criação, os limites do imaginário e do real. Minha obra tem um certo travo de amargor? Anoiteço às vezes como toda gente mas espero pela manhã com seu bíblico grão de acaso, de loucura. E de imprevisto”

Lygia Fagundes Telles, In: Conspiração de nuvens

Divulgação
A literatura lygiana é portadoras de sentidos que ultrapassam o meramente denotativo. Transpostas para o domínio do devaneio ou do sonho, suas imagens chamam a atenção sobre si mesmas e desafiam o leitor a interpretá-las | Foto: Divulgação

Kelio Junior Santana Borges
Especial para o Jornal Opção

[relacionadas artigos=”62117″]

Falar sobre a literatura de Lygia Fagundes Telles não é difícil nem trabalhoso. É, na realidade, um prazer e uma chance de poder contribuir cada vez mais para que seus textos cheguem a um número maior de leitores, assim como um dia chegaram a mim.

Meu primeiro contato com sua abra aconteceu em 2004, quando ainda era aluno da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás — instituição esta que, em conjunto com a Universidade Estadual de Goiás (UEG) e a Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), indicou, naquele ano, uma coletânea de contos da autora como leitura obrigatória para o vestibular. Tratava-se do livro “Pomba enamorada ou uma estória de amor”, reunião de contos organizada por Léa Masina. Por trabalhar como professor de Literatura em cursinhos, precisei ler o livro para promover sua análise em sala de aula com os alunos.

Dois anos depois, esta leitura renderia um projeto de mestrado e o resultado dele foi uma dissertação intitulada “Fios de vida, tra­­mas de história: a ficção de Lygia Fa­gundes Telles”, trabalho defendido em 2009 e que teve como coorientatora a professora Ve­ra Maria Tietzmann. O vínculo com a obra de Lygia continua ainda hoje, momento em que desenvolvo uma pesquisa de doutorado, tendo como objeto de estudo outra vez o universo ficcional da escritora paulistana.

O fato de ser pesquisador da obra de Lygia pode fazer com que o leitor veja meu discurso como “apaixonado” ou “suspeito”. No entanto, uma pesquisa rápida na internet ou em obras de cunho crítico que exponham estudos sobre a criação desta artista literária deixará bem claro que a visão exposta aqui é uma regra e não uma exceção acerca da literatura desta Dama das Letras.

Sobre a escrita de Lygia, muito já foi di­to; é volumosa a fortuna crítica sobre sua pro­dução literária. Livros, teses, dissertações e artigos exploraram uma grande variedade de aspectos marcantes relacionados à sua fi­c­ção. Dentre estes estudos, alguns merecem destaque, tornando-se referência basilar e obrigatória àqueles que almejam conhecer melhor seus textos. É o caso, por exemplo, das pesquisas promovidas por Tietzmann — (já citada) professora aposentada da UFG.

Ela foi uma das primeiras a promover um estudo sobre os escritos lygianos; seu livro, “A metamorfose nos contos de Lygia Fagundes Telles” é resultado de sua pesquisa de mestrado, defendida em 1984. Além do caráter pioneiro, sua pesquisa se destaca por promover uma abordagem oceânica a respeito da narrativa contística de Lygia. Em uma conferência na Academia Brasileira de Letras (ABL), a convite da própria escritora, Tietzmann, ao abordar algumas das principais marcas do texto lygiano, faz a seguinte afirmação:

“Dona de um estilo personalíssimo, ela [Lygia] se vale largamente das imagens simbólicas, responsáveis em grande parte pela universalização e densidade de suas tramas. Repetem-se imagens de fontes, jardins, rosas, estátuas, tapeçarias, gatos, sótãos, espelhos, escadas, todas elas imagens portadoras de sentidos que ultrapassam o meramente denotativo. Transpostas, muitas vezes, para o domínio do devaneio ou do sonho, chamam a atenção sobre si mesmas e desafiam o leitor a interpretá-las”.

Nesse pequeno excerto, a pesquisadora consegue sintetizar de forma bem clara o que é a literatura de Lygia. Para Tietzmann, são justamente esses traços que tornam sua obra digna de um reconhecimento como o Prêmio Nobel.

No panorama literário atual, tende-se a valorizar o escritor que promova a abordagem de temas mais engajados, explorando discursos e personagens que representem uma fração das várias condições sociais vividas no cotidiano, numa busca constante de um espelhamento entre a arte e a realidade, fazendo com que uma seja a porta-voz da outra. Com isso, um escritor que não tenha como tônica de sua escrita este engajamento social pode ser vítima de severas críticas, sendo culpado de não estar atento ao mundo e suas atuais especificidades.

Explorar o universo íntimo e angustiado do individuo universal parece ser a pedra fundamental do texto de Lygia. Tanto em seus romances quanto em seus contos, o uso do discurso em primeira pessoa ou do discurso em terceira, permeado por intrusões de discurso em primeira ou devaneios, são índices desta abordagem intimista — um ponto de vista muito em voga após o surgimento, principalmente, das teorias psicanalíticas.

A ficção lygiana transcende os conceitos e os padrões sociais em busca dos abismos humanos universais, fato que eleva o seu texto ao nível de outros grandes escritores modernos como Joyce, Kafka, Borges, Cortázar e o próprio brasileiro Machado de Assis. Ainda que muito revisitada pela crítica acadêmica, sua obra fictícia continua sendo um rico objeto de estudo literário. Toda sua produção é um amplo painel em que se encontra representada a essência da condição humana de um país, mas que consegue metonimicamente sintetizar as vivências amarguradas e os mistérios do homem universal.

Para escrever, a escritora assume a identidade e a função de um arqueólogo, perquirindo os subterrâneos da essência humana. Cada vez mais fundo, ela promove uma investigação insistente dos anseios que norteiam nossa existência íntima e coletiva, especialmente nas nossas relações uns com os outros; ela realiza uma sondagem minuciosa e ousada, sempre dissimulada por um discurso sublime e requintado. Nesta perquirição do misterioso indivíduo humano, a escritora lança mão de recursos estilísticos que marcam todo seu tecido textual, tornando-os uma espécie de constantes simbólicas que se repetem nos enredos, nos temas, nas estruturas e na linguagem de seus textos.

Nesse emaranhado de imagens sugestivas, algumas parecem estabelecer entre si uma espécie de cumplicidade, elas aparecem frequentemente dividindo os mesmos ambientes e sendo reiteradamente retomadas nos enredos da escritora. Em sua incessante busca pelo desvendamento do desconhecido do outro e de si mesma, a paulistana retoma a estrutura mítica e cria, dentro dela, seu próprio campo simbólico particular, ressignificando, ampliando ou desconstruindo valores tradicionais. Nesta retomada da estrutura mítica, a abundância de imagens simbólicas promove um misto de narração e poesia, um campo em que quase tudo aparece sugerido e nunca elucidado.

A dúvida (e não a certeza) é, portanto, a pedra fundamental do texto da escritora; uma dúvida que, como o mito, apazigua e acalenta a alma humana. A paixão pela ambiguidade é consciente e motivo de orgulho para a escritora, como ela mesma diz: “O bonito na história é a ambiguidade, a indecisão, a dúvida em relação à personagem. Esse tipo de literatura me apaixona e é isso que eu espero ter, em alguns contos, conseguido atingir”. Não só nos contos, como também em romances, essa ambiguidade é engendrada com maestria, enriquecendo o enredo das narrativas e suas possíveis leituras. Este traço estético pode ser tributado da leitura de grandes mestres como Edgar Allan Poe e Machado de Assis, duas escritas e estéticas que podem facilmente ser rastreadas na obra de Lygia.

Uma dama tecelã e seu tecido textual 

Como a literatura de Machado, Kafka e Joyce, a obra de Lygia transcende o social em busca do humano universal
Como a literatura de Machado, Kafka e Joyce, a obra de Lygia transcende o social em busca do humano universal | Foto: Reprodução

Há aqueles escritores que, almejando explorar as zonas íntimas da alma humana, se expressam por meio de artifícios e recursos estéticos herméticos e complexos, o que muitas vezes dificulta a imersão do leitor no universo ficcional. Sem essa imersão completa feita pelo leitor, a entrega ao texto não acontece, ele parece não se envolver nem se ver naquilo que está lendo e o processo de leitura torna-se pesado, pouco prazeroso.

O texto de Lygia é intenso, explorando os mais recônditos esconderijos da essência humana; entretanto, toda esta densidade existencial encontra-se pouco evidenciada pelo tecido textual desta artesã. Sua técnica pode ser comparada ao trabalho de uma bordadeira que, de um lado do bastidor camufla um emaranhado de pontos e de linhas, deixando visível, na superfície, apenas o desenho límpido, traçado por seus belos e precisos pontos.

A dor, o sofrimento, as angústias e as frustrações humanas se mostram dissimulados por uma linguagem sutil e equilibrada, algo que poderia ser sintetizado pelo seguinte trecho de “Verão no aquário”, ro­mance em que a personagem Raíza fala com sua tia Graciana sobre a obra de sua mãe, a escritora Patrícia:

“— Mas, titia, basta ler seus livros… Em cada personagem há um pouco dela nessa ânsia de solidão, nesse desejo de fuga, todos se debatem em meio de armadilhas, ciladas… A luta é sem descabelamentos, certo, mas por isso mesmo ainda mais desesperada. Prisioneiros, titia, ela e eles, todos prisioneiros muito distintos, distintíssimos. Mas prisioneiros”.

Sem descabelamentos e sem exageros, as personagens vivenciam os pesos de nossa carga e sina humanas. A leitura de suas narrativas, porém, flui naturalmente, não existem barreiras que impeçam ou dificultem a total entrega àquilo que se lê, ainda que o que se esteja lendo seja um assassinato passional, como acontece em um de seus textos mais famosos. No conto “Venha ver o pôr-do-sol”, o jovem Ricardo, enciumado com o novo relacionamento de sua ex-namorada, marca um último encontro com Raquel em um cemitério, mas tranca a moça em um jazigo para que ela ali morra.

Na mente do garoto, aquilo não é uma violência, afinal ele faz aquilo por amor, por não suportar ter sido deixado; do seu ponto de vista, o ato é uma prova de amor ou, mais que isso, uma justiça. Ainda que muito sofisticada do ponto de vista estrutural, a narração é instigante, retendo a atenção completamente e não gerando obstáculos nem no vocabulário nem na construção da linearidade dos fatos. A paixão sofrida e dura da existência humana aparece expressa por um requintado trabalho estético concedido à linguagem, um exímio exercício artesanal inconfundível.

Independente do gênero em que esteja escrevendo, Lygia consegue revitalizar e explorar a arte daquelas personagens narradoras típicas de um passado distante; passado em que existiam mulheres contadoras de histórias, narradoras encantadas e que também encantavam àqueles que lhes ouviam. Um exemplo dessas antigas contadoras de histórias é a tão famosa Sherazade, a moça que, para se livrar da morte, passou mil noites contanto histórias para o rei impiedoso que matava aquela com quem dormia, até o dia em que ele se vê apaixonado por essa moça dona de um discurso inebriante. O rei não se viu enamorado pela beleza nem pela coragem de Sherazade, mas por suas palavras, pela magia de suas belas e fascinantes histórias.

Como Sherazade, Lygia também encanta-nos, apaixona-nos com suas tramas textuais, sejam elas de amores frustrados, de fatos horrendos e misteriosos ou ainda da vida cotidiana que, captada pelo olhar sensível dessa narradora, traduz valores e sentidos sublimes. Se cabe a Lygia a comparação com Sherazade, nós, os leitores, nos comparamos ao rei. Nossa relação com a leitura é semelhante à relação dele com as pobres moças vítimas de sua maldade. Com medo de ser enganado por qualquer mulher, ele as mata no dia seguinte, evitando o que mais teme: a paixão perdida e alucinante.

No mundo atual, os leitores — os poucos que ainda existem e resistem — querem rapidez; isto é, nada de apego às histórias, o livro é só mais um e pronto. A leitura tem de ser rápida, breve e clara, nada de rodeios. Sendo assim, um livro já lido é um livro jamais repetido. Não buscamos estabelecer muitos vínculos afetivos; depois de lida a sina da história é a morte.

Mas não é assim que acontece com as narrativas de Lygia. Bem menos de mil noites são necessárias para a total entrega do leitor à magia de seus enredos. Se ele começar pelos contos de Lygia, bastará um para que, de joelhos como o impiedoso rei, implore por mais uma história e, depois dessa, pedirá outra e mais outra até perceber sua total dependência. Facilmente esse leitor se verá dependente, nem perceberá que, em vez de clareza e rapidez, as narrativas de Lygia são sinuosas, ambíguas e fluem ao bel prazer de seus narradores. Nesse universo de imprecisão, a dúvida é quem reina absoluta, fazendo a certeza parecer sempre supérflua.

Como leitores, nosso sentimento é semelhante àquele da personagem do conto “Natal na barca”, texto que hoje faz parte da coletânea “Antes do baile verde”. Na noite de Natal, uma mulher — sobre quem nada sabemos, nem mesmo o nome — precisa atravessar um rio em uma barca e ali ela testemunha a possível ressurreição de um bebê nos braços de uma mãe. Ao contar o que aconteceu, ela inicia sua história dizendo: “Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão”. O pacto de empatia estabelecido entre a personagem e a treva é o mesmo que se estabelece entre o leitor e o universo ficcional de Lygia.

Essa aguçada técnica de contar histórias tem sua origem na infância, quando a menina Lygia vivia de cidade em cidade no interior do estado de São Paulo. Nesse período, ela afirma que sua mãe contratava pajens para ajudar no cuidado com a filha. Com essas mulheres, excelentes contadoras de causos, nasceu a paixão pela fantasia, mas de imediato, o prazer adivinha apenas de escutá-las. Mas chegou o dia em que, na ausência da pajem, alguém precisou assumir o lugar na “contação” das histórias tão marcadas por medo e por terror; e foi ela, a menina Lygia, quem assumiu o posto:

“Eu senti que, enquanto inventava e contava a história, desaparecia todo o medo. Fiquei poderosa nesse instante, porque a palavra era minha, eu me apossei da palavra e me senti segura. Percebi isso com uma secreta alegria, porque era melhor contar do que ouvir. Pelo menos, enquanto eu contava, dominava a situação, e todo medo que eu tinha se transferia para os outros, para o ouvinte”.

No corpo da menina, já existia a aura de uma mulher escritora, que mais tarde seria detentora de um rico tecido textual literário, tão rico a ponto de ser impossível aqui abordá-lo por completo. Qualquer que seja a tentativa de abarcar a obra completa de um escritor, ela será sempre falha. Por isso, em vez de almejar uma exposição tão ampla e frustrada, reconheço os limites existentes e prefiro a prudência de abordar algo específico. Sendo assim, entre as mais importantes linhas de força presentes na obra de Lygia, selecionei apenas três sobre as quais aqui tecerei alguns comentários. São elas a abordagem da mulher, a temática amorosa e a atmosfera sobrenatural.

A abordagem da mulher

Especialmente em seus romances, as personagens principais tendem a ser mulheres, seres que são trabalhados de forma ímpar, dotados de um psicologismo intenso e de comportamentos muito marcantes. Virgínia, de “Ciranda de pedra”, Raíza, de “Verão no aquário” e as três moças, Lorana, Lia e Ana Clara, de “As meninas” são suficientes para exemplificar isso. Essa recorrência poderia ser interpretada como um evidente engajamento feminista, visão que defendo ser equivocada.

Ainda que as mulheres retratadas vivenciem realidades, muitas vezes, tipicamente femininas, o cerne de seus conflitos são resultado da condição humana em si, são dilemas que transcendem as noções de gênero e de sexo. A sensibilidade feminina é só um prisma a partir do qual são explorados os mais profundos dramas da existência humana. Este ponto de vista da mulher apenas intensifica a forma com que a morte, a velhice, o amor, o inexplicável, a angústia do existir e o estar no mundo são experienciados.

Ter a mulher como ponto de referência para abordar a vida não é uma escolha gratuita; trata-se de uma consciência estética e ideológica bastante eficaz para a escrita moderna. Muitos escritores optaram por ter em seus livros narradores que eram, na realidade, narradoras; buscavam, assim, um prisma diferenciado. Além disso, a literatura nos mostra e nos dá exemplos de como a postura da mulher e do homem são bem distintas em relação ao estar no mundo.

Enquanto ao homem é necessário sempre um bom motivo para iniciar uma viagem — como acontece com as personagens Ulisses, Dante e Quixote —, a mulher se aventura rumo ao desconhecido por conta própria, influenciada ou motivada apenas por sua curiosidade; isto é, parte de sua própria vontade ir em busca do desconhecido. É assim que Chapeuzinho entra no bosque e é por isso que Alice se debruça sobre e buraco que a faz cair em outro mundo.

Mais do que a coragem, outro traço coloca a consciência feminina como um recurso interessante para a estética literária: a mulher vê na palavra sua salvação. É o que pode ser encontrado em dois textos da escritora; primeiro no conto “Apenas um saxofone” e depois no romance “As horas nuas”. Em ambos, o ato de falar é uma forma de se reorganizar, se orientar por dentro. Neles, a fala assume o caráter de cura como foi proposto pela teoria psicanalista freudiana. Falando as personagens se tornam tecidos textuais passíveis de leitura e de compreensão.

Também nos contos, inúmeras são as personagens mulheres, mas percebe-se facilmente que seus interiores não se encontram oprimidos por uma condição social causada por gênero, mas por uma opressão existencial — é a própria vida o algoz de cada uma delas. Essas mulheres experimentam as mesmas desilusões e anseios que as personagens masculinas, homens que protagonizam muitos contos da autora como, por exemplo, “História de passarinho”, “O noivo”, “A presença” e “Emmanuel”.

Quando questionada se acreditava naquilo que é definido como literatura feminina, Lygia reafirma seu compromisso com uma essência universal, para além de questões sexuais:

“Não ponho esse divisor de águas. Existe, sim, um tipo de literatura escrita por mulheres, com características próprias. Há, digamos assim, uma insistência nos temas da mulher. A escritora, por estar mais próxima da alma feminina, vai mais longe em certos aspectos ao lidar com personagens de seu sexo. Mas a verdade é que ela tem obrigação de ir longe também com personagens masculinas”.

A temática amorosa

Nessa busca pelo humano universal, um tema bastante recorrente, tanto nos contos como nos romances, é o amor. Pode-se dizer que seja esse o tema central da ficção de Lygia. Porém não se trata do amor sensível e belo como acontece nos “romances de mocinha”. Em suas narrativas, o amor tende a ser promotor de comportamentos e posturas bem diferentes das tradicionais. Vingança, assassinato, suicídio, mentira e traição são elementos que se encontraram facilmente vinculados ao sentimento amoroso.

Amar é um ato perigoso nos textos dessa escritora; nunca se sabe quais desgraças surgirão em decorrência desta tão ousada transgressão. É com amor que Ricardo mata Raquel em “Venha ver o pôr-do-sol”; é por amor que um jovem se mata a pedido da amada em “O moço do saxofone”. E é movida por esse sentimento que Pomba enamorada — mesmo velha e com netos, oriundos de seu casamento com Gilvan — ainda espera concretizar seu sonho de amar para sempre Antenor, isto no texto “Pomba enamorada ou uma história de amor”. Se o amor aqui é fonte de dor, frustração e infelicidade, isso acontece porque ele é abordado de forma mais real, buscando, ao máximo, se diferenciar daquele ideal romântico, de fundamentação medieval.

Na literatura lygiana, uma das linhas de força de maior destaque é a abordagem do universo da mulher. As protagonistas dos títulos citados são ímpares exemplos desta grandeza que foge ao femininismo e atinge o humano
Na literatura lygiana, uma das linhas de força de maior destaque é a abordagem do universo da mulher. As protagonistas dos títulos citados são ímpares exemplos desta grandeza que foge ao femininismo e atinge o humano | Foto: Reprodução

O sobrenatural

Mas nem só de amor é construída a obra de Lygia; outro sentimento bem oposto é também magistralmente explorado em seus textos. Trata-se do medo. Ele se manifesta de forma contundente em narrativas marcadas pela presença do sobrenatural, universo de anormalidades que frequentemente recebe o nome de fantástico.

Ao contrário do que se pensa, o conceito de fantástico não se encontra estendido a qualquer manifestação sobrenatural; ele é, na realidade, um choque entre dois mundos distintos: o que vivemos e com o qual estamos acostumados; e outro desconhecido de leis e existência misteriosas. Inúmeros são os textos lygianos que testemunham essa intromissão do desconhecido no cotidiano, promovendo um sentimento de dúvida, medo e ambiguidade.

Formigas que aparecem e somem do nada e que, quando aparecem, montam o esqueleto de um anão marcam o enredo do conto “As formigas” — texto inquietante e instigante. Um bebê que ressuscita na noite de Natal, marcando para sempre a concepção de vida de uma pessoa, este é o enredo de “Natal na barca”. Tão interessante quanto estes, é o conto “Noturno amarelo”, em que um simples entrar no bosque pode ser o retorno ao passado, ao seio familiar; num misto de sonho e realidade, os dramas de uma família são revividos e ainda mais intensificados.

Mesmo que o sobrenatural esteja ligado ao sentimento de medo e de terror nas narrativas curtas, Lygia consegue conferir a ele um traço de humor na narrativa longa. Em “As horas nuas”, a parte fantástica cabe a Rahul, um gato de estimação. É ele o narrador de grande parte de toda a história. Além de descrever o presente, como gato detentor de sete vidas, o bichano rememora o passado num discurso fortemente marcado por ironias e sarcasmos, cujo resultado é, na realidade, o oposto de medo, isto é, o riso.

Em sua escritura, Lygia usa elementos que, no decorrer dos longos anos de criação literária, tornaram-se facilmente reconhecíveis. Com o objetivo de ter um nível estético cada vez mais alto, ela se recusa a usar de artifícios próprios de modismos atuais: “E veja que ainda procuro seduzir o leitor, dourar a pílula. Mas também não vou apelar, como muitos, fazendo autoajuda disfarçada de literatura!”. Sobre essa tendência ela ainda diz:

“As pessoas não veem o que não querem. O desamparo do homem está no meu texto. Claro que não vou fazer como os americanos, lançar livros do tipo ‘Como conseguir amigos’, ‘Como vencer na vida’… Não. Meus livros não são manuais de otimismo. A forma que encontro é ambígua, indireta. Vou por caminhos tortos, senão o leitor não se interessa. Ele não quer saber de conselhos, ele quer imaginar. Sonhar. A sedução da palavra. Quer ver numa personagem alguma parte dele.”

Este comprometimento com o sublime é visível em seus textos. Se Lygia é tão preocupada com sua escrita é porque tem em mente uma meta a ser alcançada; ela tenciona se eternizar como escritora, mas como escritora lida; é o que afirma em entrevista a Marie Claire: “Não espero ser compreendida, espero ser lida. Se possível, amada”.

A explanação que busquei fazer aqui deve ser encarada como modesta, ela apenas tangenciou o que o vasto universo ficcional de Lygia possui. De acordo com Umberto Eco, o bosque sempre será a melhor metáfora para representar o universo da narrativa. Aproprio-me desta imagem do bosque para finalizar a fala.

Assim como um bosque, a obra de Lygia é cheia de caminhos sinuosos, oferecendo inúmeras bifurcações e trilhas. Todos eles sem saída. Ali dentro, os sons e as imagens são múltiplos e amedrontadores, mas prazerosos. Ali, melhor do que se achar, é se perder. Uma vez lá dentro, não há como voltar. Torna-se um desejo consciente e urgente entregar-se cada vez mais. Que outros também entrem nesse bosque como muitos entraram. E que lá, no cerne da existência humana, encontrem motivos para permanecer, como muitos, inclusive eu, permaneceram.

Kelio Junior Santana Borges é doutorando em Letras pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor do Instituto Federal de Goiás (IFG).

Na edição anterior, caro leitor, você encontra a primeira parte deste artigo, que desvenda um dos maiores nomes da literatura brasileira.