O tragicômico em “O Esquecido de Deus”, novela de Lêda Selma
24 novembro 2024 às 00h00
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Jô Sampaio
Especial para o Jornal Opção
Lêda Selma, que já demonstrou seu talento em vários contos, crônicas e poemas, agora brinda seus leitores com uma novela intitulada “O Esquecido de Deus”, constante do livro “Ou Casa ou Desocupa a Noiva”, recentemente publicada pelas Edições Consorciadas, projeto proposto há uns 30 anos pelo escritor Geraldo Coelho Vaz, à época presidente da União Brasileira de Escritores-Seção de Goiás, e, agora, inteligentemente renascido pelo dinamismo de Ademir Luiz, atual presidente da citada instituição, em parceria com Iúri Rincon Godinho, da Contato Comunicação.
“O Esquecido de Deus” relata a história de João Perpétuo, um desvalido centenário, cujas características físicas nos são apresentadas a partir do primeiro capítulo intitulado “Enviuvou, o pau comeu!”:
Homem adunco, de barba e cabelos alvos e parcos, de passos curtos e altivez cansada, era todo mistério.
Ainda nesse início, com foco narrativo na terceira pessoa, a narradora revela ao leitor sua postura de onisciência ao entrar nos desejos e pensamentos do personagem protagonista:
[…] desejos empenados, corpo em ruínas, solidão entrevendo pela fresta da janela e os sonhos como se ainda malandrassem pelas cercanias da noite.
Assim, alternando características físicas e psicológicas, a narradora vai construindo esse personagem tragicômico, com muito humor, sarcasmo, ironia, deboche, embora não escapem ao leitor as pinceladas de solidariedade e compreensão à revoltante realidade de desamparo em que vivem muitos idosos em nosso meio. O texto de Lêda Selma, mesmo num estilo de certa carnavalização, apresenta marcas de denúncia social, revelando em sua narrativa uma certa interdependência de mimese e diegese.
João Perpétuo: nódoas e enxovalhos
No segundo parágrafo da narrativa, são expostas, em formato de digressão, algumas informações sobre a vida pregressa de João Perpétuo. A vida dele se tornou lenda e, nesse flashback, o leitor toma conhecimento de algumas partes do passado do personagem, até o momento em que “a patroa do seu João Perpétuo defunteou”, fato que marca o ponto de partida do texto.
Passa-se, então, a saber, por meio de analepses, que a conduta do ancião nem sempre passou por um molho na gamela de alvejantes e tem lá suas nódoas e enxovalhos.
Até a um crime passional, praticado por um amigo, nosso João Perpétuo prestou solidariedade e, sobre tal feminicídio, dizia orgulhoso:
Quem mandou trair o marido? É melhor uma adúltera morta do que um marido desprovido de honra. Ele (o assassino) fez o que lhe era de direito. E ela fez por merecer o castigo.
Assim, de modo astuto e não muito parcimonioso, a narradora vai reunindo fiapos da vida do “esquecido de Deus”, vai entrelaçando episódios, amarrando um núcleo a outro e construindo sua narrativa, que muito prende e desperta prazer na leitura.
No segundo capítulo, temos o viúvo ancião embebido no chorume da falecida, ficando totalmente contaminado pelas toxinas da saudade. O vazio pós-morte de dona Saudosina (a esposa) levou o sofrido viúvo ao desfrute das farturas das gêmeas Solidão e Saudade e à consequente gravidez das duas.
Nesse segundo capítulo, temos o fim introdutório da narrativa, e essa ganhando força e se desdobrando em ações e respectivos actantes, realizando episódios com matizes do absurdo. A narradora entrega fatos extremamente surreais. Alguns se aproximando, inclusive, de uma realidade distópica:
João Perpétuo, o esquecido de Deus, nordestino retado, enviuvado às pressas, como se de última hora não perdeu tempo. Já na Missa de 7º dia da esposa, resolveu fugir da solidão e da saudade. Só que, na fuga, deparou-se com outras duas, e essas de carne, ossos, farturas, suculências e saliências: as gêmeas Solidão e Saudade, moças oficialmente donzelas, de beleza simplória, modesta e de timidez cravada nos olhos e nos gestos. E, com elas, o centenário velhaco, na surdina, enredou-se.
O verbo “enredar”, no parágrafo acima, dá com perfeição uma pista do que vem a ser a vida do centenário e seu “perigoso segredo de alcova, praticado nos lençóis”.
Nessa prazerosa clandestinidade luxurienta, o caquético e promíscuo João “ia cumprindo o ofício de viuvez aparentemente com uma tristeza altiva e solitária”.
As libidinagens iam de ótimas a superótimas até que novo episódio surge para mudar o rumo da trama:
Não tardou muito, o feito do Esquecido de Deus desenhou-se em formas roliças e sugestivas. As suspeitas começaram a passear pelas bocas indiscretas. Mal as gêmeas saíam à rua, os olhares e falares alvoroçavam em maledicências e futriquices.
As tais maledicências e futriquices trazem o apimentado da narrativa, aliás, tudo passa a girar mediante “as línguas de palmo e meio” da cidade, dentre esses futriqueiros estão o padre, o sacristão, os vizinhos, as beatas e toda a prole que os amigos e compadres, já mortos, deixaram nas cercanias que compõem o espaço dessa narrativa.
Será que o padre conseguirá pôr rédeas no desejo covarde de João Perpétuo?! Tentar, sim, mas conseguir, sabe-se lá… o jeito, aguardamos o desfecho.
Súplica para ser desposado pela morte
No terceiro capítulo, carregado de mexericos e falatórios, temos o fardo do viver pesando sobre os ombros do pobre ancião que, em supremo ato de angústia e desespero, faz dolorosos rogos e súplicas para ser desposado pela morte:
Estou às ordens, meu Pai, e já ansioso pelo traslado. Na bagagem, alguns pecados rabiscados no rascunho; outros, desfolegados e maltrapilhos… Senhor, estou prontinho para o embarque. Preciso partir urgente.
Tais pedidos não escapam ao moleque Traquinildo: “Com quem o Esquecido de Deus tará palavreando?”.
Assim, Traquinildo leva o que ouviu ao reverendo, e este diz: “Ah! salafrário de uma figa, está querendo, por conveniência, tirar o corpo fora? Velho tarado”.
Nessa parte da narrativa, temos a angústia do ser humano isolado, sem espaço na vida, sentindo-se um esquecido restolho, um lixo para o qual não há reciclagem nem terreno para aterro, apenas a necessidade de ir… ir… para onde? Compensa esse continuar inútil e sem rumo?
O veneno de Saudosina
A morte de João Perpétuo é narrada no quarto capítulo: “enquanto Deus tirava uma tora após o jantar, a famigerada peçonhenta valeu-se do Santo cochilo e entregou a passagem só de ida ao Matusalém nordestino”.
Nesta parte, é estabelecido o caos, e a narrativa atinge o clímax.
Numa realidade pós-morte, em delírios de termo final, em EQM ou em pesadelo, surge Saudosina e submete “o marido-morto” a todas as torturas das mais inimagináveis.
Nas raias do absurdo, João Perpétuo se vê grávido de quíntuplos, parto a fórceps. Surgiram as gêmeas e “Saudosina, satanizada, como se estivesse sob o comando de Hades, grunhia impropérios, ao tempo em que cutucava seu viúvo com rúbido tridente”. Tudo é pavoroso, o único toque que acentua um pouco essa parte da história, foi quando o esquecido de Deus, rebenqueado pela sorte, repassa, em analepse, “sua vida de infante e de jovem no telão branco e preto da memória”.
No capítulo seguinte, vem a horrível trajetória do personagem rumo ao além, igualmente apavorante. O único alento dessa viagem é o surgimento das anjas Bondade e Generosa. “Estou salvo!; Que bênção!”.
Entretanto, esse alívio é fugaz, pois nem as anjas escapam do veneno de Saudosina.
O último capítulo, “Sina da alma proscrita”, traz mais sessões de horror, ainda sob o jugo ditatorial da falecida, que corta as asas das anjas e entrega, com deboche e orgasmos de maldade, uma ordem de despejo para que João Perpétuo se migre para o condomínio de baixo, dizendo-lhe, sarcasticamente:
— Você não quer ausentar-se? Pois vá! E não volte! Eis a ordem de despejo, expedida sem burocracia… Suas anjas? Ah! Coitadinhas… nem poderão acompanhá-lo… Acabei de podar suas asas!
Assim termina a narradora, a vida de João Perpétuo, por epíteto, o esquecido de Deus, neste “vale de lágrimas”. História, narrativa e narração, segundo Gérard Genette em “Discurso da Narrativa”, são níveis de consideração do mesmo objeto a que ele chama “realidade narrativa”, simplesmente. Assim, essa novela faz parte de muitas realidades produzidas pela potência criadora de Lêda Selma.
Acompanhando essa “realidade narrativa” escrita por Lêda Selma, podemos assegurar, com firme convicção, que João Perpétuo existe, morreu aos 106 anos, ficou grávido, passou pelo limbo, purgatório, céu e foi expatriado para o inferno, por ordem de Saudosina.
O real-literário se constitui em verdade, daí o poder de demiurgo de todo artista.
Acompanhando a vida do personagem, notamos que a narradora, em sua tessitura, construiu uma sequência de fatos, dentro da relação causa/efeito, e, de forma coesa, melindrosamente articulada e bem-amarrada, estabelecendo estreita afetação entre o acontecimento anterior e o próximo, numa narrativa cronológica, embora alguns episódios, caracterizados numa estrutura psicológica sobre o passado e a vida pós-morte de J. P. nos vieram em analepses e prolepses.
Astuciosamente, a narradora deixa um plot no final de cada capítulo, instigando a curiosidade do leitor para a leitura do capítulo seguinte, armando, assim, várias reviravoltas. Hoje, na linguagem dos filmes e telenovelas, essa técnica é denominada de plot twist.
Antropônimos
Merecem especial atenção os nomes dos personagens: João Perpétuo, Saudosina, Solidão, Saudade, Generosa, Bondade e Traquinildo. Tais codinomes apresentam forte carga simbólica. Dão ideia de materialização dos sentimentos ou personificação dos desejos mais íntimos do personagem central. Sugerem mecanismos de preenchimento das carências do “Esquecido de Deus”. Nomes sugestivos de várias hipóteses abstratas inerentes à condição humana, mormente em avançada idade.
Podemos situar tais nomes numa escala de interdependência ou definição de sentimentos positivos no equilíbrio (ou desequilíbrio) emocional de João.
Diegese
Na construção da diegese, dos discursos, vezes há em que a narradora cede a fala aos personagens, reproduzindo-as por meio do discurso direto, do discurso indireto e do indireto-livre.
Tais falas, entretanto, não dão ao texto de Lêda Selma. a condição de polifônico, vez que, segundo Bakhtin, “polifonia se refere à multiplicidade de um texto, uma multiplicidade de mundos, de vozes polivalentes e pontos de vista ideológicos”. Como exemplos de romances polifônicos, podemos citar “O Som e a Fúria”, de William Faulkner, Prêmio Nobel de Literatura de 1949, e o magnífico “Sete Léguas do Paraíso”, do nosso conterrâneo Antônio José de Moura.
No penúltimo capítulo de “O Esquecido de Deus”, há um longo trecho reproduzindo, em discurso direto, as falas das anjas Generosa e Bondade e, em certos momentos, a narradora entrega a fala a João Perpétuo, assumindo este, algumas vezes, a postura de narrador autodiegético (foco narrativo na primeira pessoa), entretanto, tais falas não dão ao “Esquecido de Deus” o status de narrador-personagem.
O romance monológico ou monofônico envolve somente uma consciência, “a consciência do autor a que todas as demais estão subordinadas”, segundo Gérard Genette.
Oralidade
Lêda Selma utiliza-se de vários recursos da nossa língua, valendo-se de palavras e expressões para dar origem a outras novas com muita criatividade.
Sabemos que o léxico de uma língua nunca é totalmente dominado por um falante, mas esse, como Guimarães Rosa, pode recriá-lo, modificá-lo, esmiuçá-lo, reinventá-lo, a fim de fazer adaptações ao tempo, ao espaço, às ações e ao nível dos personagens. Em “O Esquecido de Deus”, há contribuições populares e de falares nitidamente regionais do Nordeste, já que o protagonista é baiano. Vamos arrolar alguns exemplos:
1
Alteração de ditos populares: Quem invoca o que quer, vê o que não quer; Quem é morto sempre aparece; Momento da alma na alma.
2
Sonoridade: Associação de som e sentido através de aliterações e assonâncias: Penada, depenada, despenteada.
3
Aglutinação de palavras: Consorte.
4
Desdobramento de palavras mediante prefixos e sufixos: Desdormida, raboso.
5
Verbos formados a partir de substantivos e de adjetivos: vagalumeando, foribundeou, foiceou, defuntou, rebenqueado.
6
Palavras que permutam de classe gramatical: Os longes. Os nãos.
Enfim, há muitas outras ousadias no estilo da construção do espetáculo tragicômico de João Perpétuo.
Assim, dou por encerrada esta resenha, liberta (creio eu) do ar professoral, vez que me imiscuí de prolixidades teóricas (irritantes para muitos) sobre as teorias do gênero épico, desde as valiosas epopeias às narrativas atuais delas oriundas: romances, contos, crônicas e novelas. Ressalto apenas que, das novelas de cavalarias ao “Esquecido de Deus”, houve um longo caminho trilhado. Lembro-me, também e sempre, do que disse Tzvetan Todorov sobre a nova crítica surgida a partir dos anos 1960: “A história da Literatura será praticamente a história do Discurso Narrativo e não a história dos homens que fazem Literatura”. Claro é que tenho minhas resistências a esse postulado do notável estruturalista búlgaro.
Posto isso, deixo aqui a apresentação desse pícaro e trágico João Perpétuo (sabiamente criado por Lêda Selma), com seus problemas físicos e metafísicos.
Lêda Selma é uma voz feminina de altíssimos decibéis no atual contexto da Literatura Brasileira feita em Goiás.
Seus escritos dão margem a análises sob vários aspectos: sociológico, mitológico, psicológico, antropológico, historicista etc.
Lêda Selma foi, por duas vezes, presidente da Academia Goiana de Letras. Quem se dedicar ao trabalho de falar sobre sua vida, terá, sem nenhuma dúvida, um material substancioso para apresentar como biografia.
Jô Sampaio, poeta e contista, é colaboradora do Jornal Opção.