O trágico no conto de Bernardo Élis, autor de “Nhola dos Anjos” e “A Enxada”

21 junho 2025 às 21h01

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Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o jornal Opção
Muitos dizem que “Nhola dos Anjos e a Cheia do Corumbá” é o conto mais trágico de Bernardo Élis. Nele, em um ambiente de total desespero e miséria, é cometido um matricídio. A ânsia pela sobrevivência, sua e do filho, leva o personagem principal, Quelemente, a descartar a vida da própria mãe, Nhola, uma aleijada, por ocasião de estrondosa cheia do Rio Corumbá.
Constatando que as águas iriam submergir a tosca jangada em que estavam, improvisada com uma porta velha e que ele temia não suportasse tanto peso, empurra a mãe para fora da “embarcação”. Entrou em arrependimento, mas a morte o levou também.

Outros colocam a história de Supriano, ou Piano, lavrador sem-terra, negro, analfabeto, cuja miséria era tão grande que o impossibilitava de possuir uma enxada, como a mais dramática.
No conto “A Enxada”, não houve pessoa alguma que lhe fornecesse emprestado o instrumento necessário, uma simples enxada, para que ele cumprisse o trato com o patrão, o coronel Elpídio Chaveiro; nem o padre o fez.
Mesmo assim ele cavou com as próprias mãos, em uma tarefa inútil. Acabou pagando com a vida o “descumprimento do trato”, fato considerado justo pelos padrões particulares de legalidade da época e do meio, onde a “justiça” feita à bala era naturalizada.
Mas há os que consideram a história de Joana, a menina enjeitada e criada pela família do coronel Rufo, como a mais grave. Trata-se do conto “A Virgem Santíssima do quarto de Joana”. Ela foi abusada pelo filho do dito coronel e, constatada a gravidez, entregue em casamento ao coveiro da cidade. Teve seu filho mastigado e morto pelo marido, o coveiro bestializado. Tanto sofrimento a levou à morte, constatada pelo olhar frio e indiferente do então já médico filho do coronel. Segundo o juízo corrente, a morte da infeliz não teve culpados.

Todas estão na lista de espera para ganhar o primeiro lugar em importância dramática. Mas, nesse ranking de dramas e histórias trágicas, não existe apenas uma que seja exemplarmente mais dramática. É impossível quantificar e classificar sofrimentos, se maiores, se menores. Todas se notabilizam pela intensa dor e enorme injustiça.
Origem da tragédia clássica: a Bíblia e os gregos
Saindo do microcosmo das histórias bernardianas e fazendo um giro, pequeno, pelas tragédias da literatura universal, vamos encontrar um campo fértil e longo, e que marcou indelevelmente os escritores e leitores do mundo todo.
No âmbito da literatura, o conceito de tragédia refere-se a um poema dramático, feito para ser interpretado nos palcos ou apenas lido. Seu início remonta a cinco séculos antes de Cristo, como produto da cultura grega.
A construção de tragédias obedecia a regras rígidas. Seus personagens deveriam ser grandes homens e sua temática era tirada da história ou inspirada nos mitos. Outros elementos estruturais eram as máscaras, o coro, o destino, a fatalidade, a linguagem formal e a desobediência do personagem principal a alguma regra divina, o que o levava sempre à morte. Sofrimento e morte, eis a chave das tragédias.
Sófocles, Eurípedes e Ésquilo lançaram para o mundo tragédias de cunho universal e psicológico, nas quais os sentimentos básicos da alma, aliados à fatalidade e ao acaso, sintetizaram o que de mais trágico e inusual pode acontecer nos relacionamentos humanos. Serviram como casos exemplares para a nascente psicanálise.
Mas, na ancestralidade literária, a Bíblia já assumia seu papel na originalidade trágica. Inicia-se com um fratricídio e termina com um deicídio, tendo, ao meio, um dos maiores dramas que um ser humano pode suportar, que foi a história de Jó, contada de maneira dramática e ao mesmo tempo poética.
Mais tarde, já sob a égide do Renascimento, mas influenciado pela literatura greco-romana, William Shakespeare compôs comédias, dramas e tragédias. Suas tragédias têm, como elementos primordiais, o ciúme, a inveja, a ânsia pelo poder, as intrigas palacianas e o ódio entre famílias.
O ambiente que serve como cenário às tragédias gregas, shakespeareanas e de todo o período barroco, é o da nobreza. As histórias se passam entre príncipes, reis, nobres e a vassalagem. Os tragediógrafos do Renascimento e do período Barroco, seguiram à risca os conselhos de Aristóteles, segundo o qual os personagens das tragédias deviam sempre ser nobres, ricos e importantes.
Aristóteles, em sua “Poética”, estabelece essa condição, pois conhecia o funcionamento da mente humana. Quem vai se importar com o sofrimento dos desvalidos? Dos miseráveis sem nome que habitam à sombra da civilização, da justiça e da misericórdia? Certamente muito poucos.
Sertão cruel: o império da lei do mais forte

Voltando aos contos de Bernardo, e colocando os dois pés em solo goiano, deparamo-nos com nossa realidade socioeconômica-cultural de décadas passadas. Nada de príncipes, reis, nobreza. Era o sertão cruel, onde imperava a lei do mais forte.
A vassalagem era composta pelos estratos mais pobres e que viviam na dependência dos coronéis, senhores de terras, e da burguesia. Fica claro, pois, que os contos bernardianos não correspondem à Tragédia Clássica nem à Barroca. São contos, e não peças trágicas. Mas, o destino de seus personagens é assemelhado: sofrimento, dor e morte marcam a trajetória de todos eles.
Como não se lembrar de Medeia, que matou os próprios filhos para se vingar de Jasão, ante o assassinato de uma criança pelo padrasto coveiro? Como não comparar o poder de Zeus aos desmandos de um coronel, que infligiu sofrimento e morte a Prometeu/ Piano? Lembrar do trágico destino de Édipo, que mata o pai, mesmo sem o saber pai, quando vemos Quelemente levar sua mãe à morte, com quem conviveu a vida toda, é uma constatação quase lógica.
O romance, o deleite, o cômico ou simplesmente descrições de um cotidiano ameno não fazem parte da contística bernardiana.
Nas palavras de Luiz Gonzaga Marchezan, doutor em Letras pela USP, introdutórias a “Ermos e Gerais” (Martins Fontes, 247 páginas): “Nos ermos e gerais, o destino do homem é conduzido ou pelo poder do coronelismo ou pelo poder do acaso, do imprevisível”.
Na concepção clássica existe um aprofundamento psicológico dos personagens. Isto não acontece nos contos bernardianos, que primam por colocar seus atores dentro de um contexto socioeconômico do qual eles são vítimas. Para os gregos também havia a solução do deus ex machina, recurso inexistente nos contos realísticos, que dispensam soluções improváveis.
A ficção, muitas vezes, oferece um panorama histórico e realístico mais interessante do que a história didática. Assim aconteceu com “Guerra e Paz” (ed. Garnier, 2025, 976 págs.) de Tolstói, com “Os Miseráveis” (Martin Claret, 1510 páginas), de Victor Hugo, e com os contos e romances de Bernardo Élis.
Ao querer escalonar a literatura contística de Bernardo pelo seu caráter trágico, ficamos em um impasse. Na balança da justiça esses contos citados têm o mesmo peso: o de uma realidade cruel e injusta e, infelizmente, verdadeira.
Bernardo Élis foi na contramão dos ensinamentos de Aristóteles. Seus dramas foram protagonizados pelos enjeitados, pelos pobres, pelos negros e pelos loucos.
O mundo mudou? Sim, mas a alma humana continua a mesma. O diferencial está no talento do grande escritor goiano, que soube despertar no leitor o sentimento de justiça. Soube trazer à luz fatos hediondos que a indiferença e o egoísmo sempre se encarregaram de esconder.
No mundo contemporâneo as tragédias se adaptaram a um novo linguajar, o coloquial. As motivações são buscadas no entendimento dos problemas sociais e não mais apenas em razões particulares. Perderam o caráter clássico e se adaptaram aos novos tempos. As máscaras caíram, ante a obviedade.
Marina Teixeira da Silva Canedo, poeta, cronista e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção e membro do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado (Icebe).