Em “Dicionário do Nordeste”, A sensibilidade do jornalista Fred Navarro para a indagação científica levou-o a estabelecer inteligente elo entre o significado de palavras usadas pelos falantes e sua natureza

Jornalista e escritor Fred Navarro, autor do “Dicionário do Nordeste” | Foto: Arquivo Pessoal
Jornalista e escritor Fred Navarro, autor do “Dicionário do Nordeste” | Foto: Arquivo Pessoal

Evanildo Bechara

De degrau em degrau Fred Navarro vem construindo sua obra meritória de lexicografia regional brasileira, oriunda de todas as terras onde vive e floresce a língua portuguesa. Estando ligado por nascimento ao Recife, muito naturalmente se compreenderá que seu interesse maior se volte preferentemente ao léxico nordestino, embora não lhe falte conhecimento e convívio com os termos e locuções correntes em todo o território brasileiro, aprendidos pelo contacto direto e pela leitura atenta dos textos escritos pelos autores representativos de todos os quadrantes da nacionalidade. Partindo de “Assim Falava Lampião” e da primeira versão do “Dicionário do Nordeste”, chega o autor a esta obra de maior extensão e profundidade que, como declara, não sendo escrita por especialista (gramáticos, filólogos, lexicógrafos, doutores no assunto) é consequência de um trabalho que utiliza técnicas de jornalismo investigativo, fora dos padrões acadêmicos, (…) mas é fruto do trabalho de um jornalista apaixonado pelo tema (…), integrante dessa velha profissão na qual, para se conhecer bem um assunto, basta ter informações confiáveis e tempo suficiente para analisá-las. A quem ler atentamente esse “labirinto da linguagem nordestina”, na expressão do autor, verificará que este “Dicionário” foi mais longe do que modestamente prometiam suas palavras: oferece ao leitor seguro conhecimento de um larguíssimo córpus de termos e expressões nordestinas exemplificado em textos representativos dos mais variados domínios da cultura, ao mesmo tempo que oferece aos especialistas de toda sorte um manancial de pesquisas para surpreender as franjas semânticas das palavras carregadas de novos matizes de ideias, de que nos fala Unamuno.

A sensibilidade do jornalista para a indagação científica levou-o a estabelecer inteligente elo entre o significado de palavras usadas pelos falantes e sua natureza, o que motiva o nascimento de “termos fortes, rústicos, grosseiros, mas também daqueles dotados de lirismo, sensibilidade poética, bom humor e picardia”. A sensibilidade e a cultura do jornalista lhe deram a dimensão mais acertada de que, apesar da pujança e força desse labirinto riquíssimo que é a linguagem nordestina, isto não diminui os laços que presidem à herança recebida de Portugal. Estas suas palavras: “Se for correto afirmar que há uma ‘língua brasileira’ que se distancia daquela que lhe deu origem, também será válido dizer que esta língua resultou tão impregnada pelas características originais que continuará a se chamar “portuguesa” por um tempo indeterminado, talvez infinito”. Estas sensatas palavras de um pernambucano em 2013, palavras que não desmentem a realidade linguística a que hoje todos assistimos, são parentes gêmeas de outras proferidas há 116 anos por outro ilustre jornalista pernambucano chamado Joaquim Nabuco, no discurso inaugural da Academia Brasileira de Letras: “A língua é um instrumento de ideias que pode e deve ter uma fixidez relativa; (…) A língua há de ficar perpetuamente ‘pro indiviso’ entre nós”, isto é, entre brasileiros e portugueses.

O conhecimento adquirido de uma intensa vivência real permite ao jornalista falar como um competente técnico em geografia linguística, diante do tabuleiro de xadrez que reflete a nossa complexidade de linguagem, quando tece as seguintes considerações:

“Dentro do labirinto original da língua portuguesa reside, com conforto, a atual língua ‘brasileira’, com contornos próprios, com alma e perfil diferenciados da língua-mãe. No seu interior, da mesma forma, coabitam os subdialetos regionais, marcas registradas de áreas geograficamente extensas e culturalmente heterogêneas: o sertão cearense não é o pampa, o pantanal não é a falésia potiguar, e o coqueiral alagoano em nada se parece com a floresta tropical, a serra gaúcha ou a megalópole paulistana. As populações desses ecossistemas trazem consigo características herdadas do meio físico que costumam se apresentar ou se revelar através do sotaque, vestuário, culinária, costumes e outros aspectos da vida cotidiana que escolheram ou aceitaram. Acrianos e paraibanos falam a mesma língua, mas vivem em realidades tão distintas que apenas uma língua forte como a portuguesa, com capacidade de adaptação e de sobrevivência em ambientes extremos, poderia servir para a comunicação entre os povos da floresta e os moradores do sertão ou do litoral. O mesmo vale para paranaenses e goianos, baianos e catarinenses, cariocas e amazonenses, e tantas outras combinações possíveis num país como o nosso.

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Visto de perto, o labirinto da língua ‘brasileira’ revela passagens e corredores ainda mais secretos. Os subdialetos no interior das enormes regiões são expressivos, e para encontrá-los basta cruzar a divisa entre os Estados. Incontáveis termos e expressões da fronteira oeste do Maranhão (na divisa ‘amazônica’ com o Pará), por exemplo, nada têm de familiares para os moradores do brejo paraibano ou do sertão baiano. Às vezes, a diferença e desconhecimento ocorrem entre os moradores do litoral e os do sertão, dentro de um mesmo Es­tado, como é frequente observar em Per­nambuco, no Piauí e no Ceará. Em resumo, a língua portuguesa cumpriu no Brasil diversos papéis, e um deles foi o de unir po­pu­lações longínquas entre si”.

Hoje a pesquisa dessas relíquias vocabulares se nos apresenta menos rica em vista de que só bem depois do séc. 16 é que para elas nasce o interesse de alguns estudiosos. O progresso por que depois passou a colônia americana portuguesa e a abertura de estradas, favorecendo o trânsito de levas migratórias aos mais distantes rincões da nova terra, já tinham contribuído para a feição multiforme que se apresenta ao moderno investigador. Mesmo assim são de importância relevante as primeiras contribuições a partir de Luís Maria da Silva Pinto (1834), de Pereira Coruja, de Macedo Soares, de Ro­maguera Correia, de Batista Caetano, entre outros.

A atenção do autor deste precioso “Dicionário do Nordeste” não desprezou o registro da flora e fauna regionais, nem sempre bem estudadas pela tradição dicionarística luso-brasileira.

Coluna mestra da investigação lexicográfica, o testemunho da existência da palavra e de sua trajetória histórica vem atestado por uma copiosa exemplificação de textos procedentes dos mais variados quadrantes da cultura em língua portuguesa. Não pôde, também, o autor deixar de estabelecer diálogo com outros dicionários para obter melhor análise de palavras e locuções.

Em obras de tal natureza hão de faltar termos e, entre eles, muitas acepções gerais e regionais. Por isso, estas ficam à espera das permanentes achegas que a elas poderão vir do leitor atento.

Nota: o texto publicado nesta edição faz parte do livro “Dicionário do Nordeste”.

Evanildo Bechara é professor, gramático e filólogo. Membro da Academia Brasileira de Letras.