Mariza Santana

Especial para o Jornal Opção

De uma pacata cidade da região das Missões, no Rio Grande do Sul, para a Academia de Tradutores na Alemanha, passando pelo fervilhar cultural do Rio de Janeiro. O livro “Três Traidores e Uns Outros”, do escritor gaúcho Marcelo Backes, é uma miscelânea de reminiscências que vai do presente ao passado, e vice-versa, sempre apresentando a trajetória profissional e amorosa de um tradutor de livros, que verte textos escritos em alemão para o português.

A prosa de Backes é repleta de ironia, e não há complacência com este anti-herói, descendente de alemães, que deixa de sua pequena vila natal em busca de uma nova vida no Rio de Janeiro, onde é abrigado por um poeta. Ao colocar em prática seu conhecimento da língua de Schiller, devido à sua ascendência, ele se torna o intérprete das sessões de análise de um executivo alemão que pensava ter matado a esposa.

A narrativa começa na região missioneira, apresentando o drama de um conterrâneo, o Toz, que nunca tinha arranjado uma namorada. E quando finalmente se apaixona e encontra sua alma gêmea, sua mãe se declara contra, e ameaça se matar caso ele siga em frente com o relacionamento. O evento é narrado para mostrar que suicídio era um fato corriqueiro em sua cidade, algo capaz de quebrar o clima interiorano de tranquilidade e paz.

O protagonista do livro, porém, é o tradutor de alemão, que consegue avançar na carreira acadêmica e profissional, e se torna o responsável pela tradução de muitos livros de escritores da língua germânica para o português. Um trabalho de tradução, inclusive, é o motivo para conquistar uma de suas mulheres. Sim, suas esposas, como ele próprio conta sem citar nomes, foram três, e fica subentendido que houve traições em todos esses relacionamentos, talvez seja esse fato que inspirou o título da obra.

Marcelo Backes: escritor, tradutor e crítico literário | Foto: Facebook

Nosso herói termina sua narrativa sozinho, de volta à sua terra natal, fazendo um balanço do que foi sua vida, com algumas reflexões que vale a pena ser citadas, pois são o ponto alto da narrativa. “Que passado é esse que não passa? Sempre me alcança? E me ultrapassa…” Outro trecho que considerei brilhante: “Longe da juventude, nada construí, não chamei a atenção do mundo e só confundi a mim mesmo. Sobrei matungo velho e sem dono, e pouco me resta nessa vida, apesar da concretude pretensamente realista, mas no fundo mistificante, de algum ponto”.

Marcelo Backes sabe lidar com as palavras, afinal elas são a matéria-prima do seu trabalho. No epílogo de “Três Traidores e Uns Outros” o narrador nos mostra um homem maduro às voltas com suas lembranças, fazendo um balanço do que fez e de quem foi ao longo de sua vida. A obra tem nítidas pinceladas autobiográficas (afinal, qual obra que não tem uma parte do escritor, senão sua alma inteira?).

O autor fala ainda sobre o seu ofício: “Escrever é uma maneira de abrir caminho quando a estrada termina e tudo fica escuro diante dos olhos, mas mesmo no final da linha há sempre uma margem, no final da página um buraco, no final da obra um muro que faz tudo parecer vão, baldo, malogrado. E o pior de tudo é descobrir que, em vez de encher de ânimo um punhado de personagens, minha vida se esvaiu aos poucos, corroída pelo ácido fatídico da arte”. Chocante, não é mesmo?

Marcelo Backes é escritor, tradutor e crítico literário. Nasceu em Campinas das Missões (RS) em 1973. É mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Germanística e Romanística pela Universidade de Friburgo, em Brisgóvia, na Alemanha. Tem em seu currículo mais de 20 obras traduzidas do alemão para o português de escritores, poetas e filósofos consagrados, como Goethe, Jünger, Kafka, Marx e Engels, Nietzsche e Schiller, entre outros. Em 2015, Backes foi o primeiro brasileiro a ganhar o Prêmio Nacional da Áustria pelo conjunto de sua obra traduzida. “Três Traidores e Uns Outros”, publicado em 2010, é o seu principal romance.

Mariza Santana é crítica literária. E-mail: [email protected]