O retrato de Joaquim Xavier Curado

03 dezembro 2023 às 00h01

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O retrato de Xavier Curado nos revela mais do que o rosto de um ilustre goiano, mas o esforço hercúleo e conjunto — de inúmeros operários da História — pela preservação da memória coletiva, em meio ao convívio com as traças do passado e o descaso com a preservação, um fogo vivo.
[Para o poeta-embaixador Raul de Taunay]
Basta digitar o nome do tenente-general Joaquim Xavier Curado, Conde de São João das Duas Barras e fundador do Exército Brasileiro, numa plataforma de busca on-line, Google ou outra qualquer, para que imagens e mais imagens do dito militar goiano apareçam na tela.
Diante dessa facilidade tecnológica, poucos serão capazes de imaginar a odisseia pela qual passou o único retrato original existente para que o seu rosto chegasse aos tempos da internet e, antes disso, fosse também reproduzido por outros artistas.
Xavier Curado nasceu na fazenda São Januário, em Jaraguá (à época subordinada ao município de Pirenópolis), no dia 2 de dezembro de 1746, tendo sido batizado dez dias depois na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, em Pirenópolis. Foram seus pais o tenente português José Gomes Curado e a mineira dona Maria Cerqueira de Assumpção, moradores de Jaraguá.
“Faleceu no Rio de Janeiro, em 15 de setembro de 1830. Foi tenente-general dos exércitos nacionais e imperiais, governador das armas da Corte e província do Rio de Janeiro e condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro — prova rara e inequívoca de distinção que bem atesta o valor de seus serviços — e com as comendas de São Bento de Avis e Cristo do Brasil e Torre e Espada e Conceição de Portugal”, informa Alfredo d’Escragnolle Taunay em carta a João José Corrêa de Moraes, presidente da Câmara Municipal de Goiás, e demais vereadores em data de 12 de abril de 1876.
Alfredo d’Escragnolle Taunay, o primeiro e único Visconde de Taunay, era filho do pintor Félix Émile Taunay (2º Barão de Taunay). O Visconde de Taunay seguiu carreira literária e política. O autor de “Inocência”, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, foi por duas vezes deputado pela Província de Goiás durante o Segundo Império (eleito em 1872, teve o mandato renovado em 1875). Logo após as cartas enviadas a Goiás, em abril e maio de 1876, seria nomeado presidente da Província de Santa Catarina no mês de junho do mesmo ano.

Além do vínculo comum com Goiás, havia outros: Curado e Taunay governaram Santa Catarina; foram ambos condecorados cavaleiros da Imperial Ordem de São Bento de Avis e da Imperial Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os dois também participaram de guerras: Curado de inúmeras, dentre elas a Guerra de Restauração do Rio Grande (1776-1777) e a Primeira Guerra Cisplatina (1816) — em 1822, no Rio de Janeiro, comandara as tropas que afugentaram o exército do general Avilez para a Europa; Taunay, por sua vez, lutou na Guerra do Paraguai como engenheiro militar, donde proveio seu livro “Retirada da Laguna”, no qual chamou Goiás de “viveiro de soldados valorosos”. Aliás, outro ponto os ligava: escreveram relatos precisos das batalhas. E, claro, foram agraciados com títulos de nobreza pelo Império do Brasil: Joaquim Xavier Curado foi tornado Barão (com grandeza) de São João das Duas Barras (1825) e depois Conde de São João das Duas Barras (1826); Alfredo d’Escragnolle Taunay foi tornado Visconde de Taunay às vésperas da Proclamação da República, em 6 de setembro de 1889.
Talvez sejam estes os motivos que levaram o Visconde de Taunay a se interessar pela biografia do ilustre goiano que fora ainda o fundador do Exército Brasileiro.
O fato é que Taunay estava preparando uma “cuidadosa biografia” do Conde de São João das Duas Barras, cuja memória já vinha se apagando na Corte e em sua terra natal. Assim é que, em meio às pesquisas para a obra biográfica, chegou à posse de um retrato de Xavier Curado — o único existente.
Segundo Taunay, tratava-se de um retrato a óleo pintado pelo artista Simplício F. Câmara e fora feito em inícios de 1830. Entretanto, ouso discordar do Visconde quanto à autoria da pintura. Por essa época fazia sucesso na Corte o retratista cabo-verdiano Simplício João Rodrigues de Sá (1785-1839), discípulo de Jean-Baptiste Debret.
Instalado no Brasil desde 1809, Simplício de Sá havia morado por um curto período em Lisboa. Em inícios da década de 1820 já tinha chamado atenção de integrantes da Missão Artística Francesa de 1816, de modo que se tornou pensionista (bolsista) da Academia Imperial das Artes. Em 1831, durante ausência do professor Debret, Simplício de Sá assumiu interinamente a cadeira de Pintura Histórica da Academia. Apenas em 1834 assumiria definitivamente alguma cadeira, a de Desenho. No entanto, sua especialidade era Retrato.

Nomeado pintor oficial da Casa Imperial do Brasil, por influência de Debret, tornou-se professor de desenho da Princesa Maria da Glória (futura Maria II de Portugal), bem como do Príncipe Pedro de Alcântara (futuro Pedro II do Brasil) e das princesas Januária, Paula e Francisca do Brasil. Deu aulas até mesmo para a Imperatriz Leopoldina.
Assim como Xavier Curado, o pintor Simplício de Sá recebera as imperiais ordens de Nosso Senhor Jesus Cristo e do Cruzeiro.
Dessa forma, foram muitas as suas obras produzidas para a Monarquia e são famosos os seus retratos de Dom João VI (1820), de Dom Pedro I (1826), do Príncipe Pedro de Alcântara (1826), da Princesa Maria da Glória (1827) e de outros nobres e amigos da recém-criada Família Imperial Brasileira, dente eles o do Conselheiro Francisco Gomes da Silva (o Chalaça), do Marquês de Inhambupe (1825), do bispo de São Paulo D. Gonçalves de Andrade (1828), do Conde do Rio Pardo (1830) e outras pinturas de temática religiosa e variada.
O pintor Simplício de Sá faleceria apenas em 1839, aos 54 anos e acometido de cegueira.
No entanto, o retrato do Conde do Rio Pardo data de 1830 — mesmo ano do retrato do Conde de São João das Duas Barras Joaquim Xavier Curado, o que mostra que neste período o pintor cabo-verdiano ainda produzia. É também o ano do falecimento de Xavier Curado.
Dada a escassez de bons retratistas e a ausência de registros históricos de um tal Simplício da F. Câmara; bem como a proeminência de Xavier Curado na Corte e as ligações de Simplício de Sá com a alta nobiliarquia brasileira, com a temática de retratos e os aspectos de sua obra e do retrato de Xavier Curado (técnica e estilo), credito com certa segurança a autoria do retrato do militar goiano ao cabo-verdiano Simplício de Sá.
O óleo original do tenente-general Xavier Curado media dois palmos e meio de comprimento por dois palmos de largura e, em 1876, após restauração paga por Taunay, encontrava-se em perfeito estado de conservação.

No mês seguinte, na segunda carta enviada à Câmara Municipal de Goiás, Taunay informa que entregou o retrato aos senhores Valença e Magalhães, negociantes em Goiás, para que o levassem até Goiás a fim de que fosse instalado no salão principal daquela Câmara como sinal de reconhecimento pelo rebento.
Taunay escreveu ainda que “o retrato leva uma moldura coroada de ramos de louros e carvalho que cercam o distintivo nobiliárquico” de Xavier Curado. E que, “em baixo, está, em chapa de prata o (seu) oferecimento”.
O retrato de fato chegara à antiga capital de Goiás levado pelos dois comerciantes contratados por Taunay.
Por meio de uma conversa com o historiador carioca José Vieira Fazenda (1847-1917) e com Vicente Henrique Silva, o historiador goiano Americano do Brasil (1892-1932) soubera do presente dado pelo Visconde de Taunay ao legislativo vila-boense.

Em 1918, dois anos depois do falecimento do historiador José Vieira Fazenda e de volta do Rio de Janeiro para Goiás, Americano do Brasil (então secretário de Interior e Justiça do governo de João Alves de Castro) não encontrou o retrato de Xavier Curado, mas continuou se debruçando sobre documentos seculares e estudos genealógicos, que resultaram em verdadeiro duelo de fontes históricas com o general Marco Antônio Félix de Sousa a respeito do parentesco do general Xavier Curado com o sargento-mor Ignácio Soares de Bulhões. Deste embate adveio a publicação “No convívio com as traças” (1920).
Superado o adversário Félix de Sousa, que era general e nada tinha de experiência em arquivos históricos, Americano do Brasil não só provou que os dois vultos (Bulhões e Curado) eram meio-irmãos, como assinalou origem jaraguense de Xavier Curado e a falta de parentesco de sangue dos atuais Bulhões com os bandeirantes cariocas (cujo um dos integrantes se casara com uma viúva ancestral dos Félix de Sousa e, tendo a linhagem do casal acabado na geração seguinte sem descendentes, os sobrinhos Félix de Sousa do outro casamento homenagearam esse parente).
Em meio à discussão nos jornais goianos sobre a origem familiar de Xavier Curado, Americano do Brasil foi informado por uma amiga que a professora de primeiras letras Pacífica Josephina de Castro (Mestra Nhola) guardava aquele retrato de Xavier Curado no verso de um linóleo de São José (costume colonial para a bênção do lar).
Mais de quatro décadas separavam a doação de Taunay à Câmara Municipal de Goiás e o reencontro do retrato em posse de Mestra Nhola. Aliás, esta última informação tem origem no pesquisador Antônio César Caldas Pinheiro, da Academia Goiana de Letras. Nem mesmo Americano do Brasil especificou com quem de fato encontrara o retrato. Segundo o historiador Antônio Caldas, o irmão de Mestra Nhola teria sido por muitos anos presidente daquela casa de leis, daí talvez a justificativa do retrato se encontrar com ela.
Como tudo o que é histórico em Goiás, antes de chegar à Mestra Nhola, o retrato de Xavier Curado havia ficado por longo tempo no úmido porão da Câmara Municipal. Sofrera muitos estragos e seu restauro era impossível. Diante disso, Americano do Brasil contratou o artista goiano Tobias Rios para fazer uma reprodução a lápis do óleo vindo do Rio de Janeiro.
A reprodução a lápis, feita pelo artista Tobias Rios, fora fotografada por Zeca de Alencastro, reproduzida em chapa (gravura) e enviada para o Instituto Histórico do Rio de Janeiro, Instituto Histórico de São Paulo, Biblioteca Nacional e para alguns jornais.
Os esboços da pesquisa de Americano do Brasil sobre o retrato de Xavier Curado foram arquivados no Arquivo Público do Estado de São Paulo e pesquisados por mim na Biblioteca Brasiliana da Universidade de São Paulo.
Já as duas cartas de Alfredo d’Escragnolle Taunay ao legislativo da Cidade de Goiás foram localizadas anos depois pelo historiador Joaquim Boniphácio Gomes de Siqueira, que refundiu os arquivos históricos do Executivo, Legislativo e Judiciário da Cidade de Goiás — o que foi essencial para comprovar a veracidade e autoria da oferta de Taunay.
Americano do Brasil não teve acesso a este outro documento que também confirma a origem do retrato:
“O Conde das 2 Barras — Talvez muita gente d’entre nós, já nem se lembre de quem foi esse goyano, honra não só da sua província, como do paiz inteiro.
“Nascido no século p. passado, na então pequena povoação de Jaraguá, desta província, occupou lugares tão distinctos no Brasil, que hoje, uma mão amiga e zeloza dos fôros nacionaes, foi descobrir-lhe um retrato, que fez reproduzir e ornar, para offerecer à câmara municipal desta capital, como sagrada relíquia.
“Quem se encarregou de tão bonita incumbência, quem pretende indicar à província o lugar de honra que deve dar a um dos seos filhos mais privilegiados, foi o distincto e illustrado Sr. Dr. Alfredo Taunay, ex-deputado geral por esta província.
“Nesse sentido já se dirigio à câmara municipal respectiva em um primoroso offício, e consta que brevemente estará por aqui aquelle quadro, conduzido pelo Sr. tenente-coronel J. T. Gonçalves.
“Temos fortes motivos para crer, que a illustre municipalidade comprehenderá o alcance da offerta, honrando a memória do homem que ainda conta grande número de parentes de posição em Goyaz.” — Correio Official de Goyaz, 1º de julho de 1876.
O original a lápis de Tobias Rios foi entregue por Americano do Brasil (à época deputado federal) ao Congresso Nacional, junto com o pedido para que se fundisse um busto de bronze do militar goiano e este fosse instalado na Galeria Nobre do Instituto Histórico do Rio de Janeiro (Projeto n.º 444, de 30 de setembro de 1921), tendo ido depois para a vitrine do renomado instituto, o qual jamais recebeu o seu busto.
Já o retrato de Xavier Curado que se encontra no Museu do Ipiranga é de autoria do pintor italiano Domenico Failutti.
Failutti foi sócio do artista Oscar Pereira da Silva no projeto de pintura de retratos-medalhões de vinte e três personalidades que tiveram relevância na Independência do Brasil, que seriam instalados no Salão Nobre do Museu do Ipiranga por ocasião do Centenário da Independência.
O responsável pela contratação do projeto de Domenico e Oscar foi justamente o filho do Visconde de Taunay, o também intelectual Afonso d’Escragnolle Taunay — à época diretor do Museu do Ipiranga (1917-1945). São de autoria de Failutti os famosos retratos da heroína Maria Quitéria (1920) e da Imperatriz Leopoldina com os príncipes (1921).
Ao tomar conhecimento da iniciativa em São Paulo, o historiador Americano do Brasil enviou para Afonso d’Escragnolle Taunay uma foto do retrato feito por Tobias Rios, que é uma reprodução da obra adquirida e doada a Goiás pelo pai deste outro Taunay.
Assim, o retrato que se encontra hoje no Museu do Ipiranga foi inspirado na reprodução feita por Tobias Rios, que por sua vez seria o mais próximo do retrato original de Xavier Curado, de autoria do pintor cabo-verdiano Simplício de Sá.
O retrato de Xavier Curado nos revela mais do que o rosto de um ilustre goiano, mas o esforço hercúleo e conjunto — de inúmeros operários da História — pela preservação da memória coletiva, em meio ao convívio com as traças do passado e o descaso com a preservação, um fogo vivo.
Yuri Baiocchi, pesquisador, é colaborador do Jornal Opção.