O Quarto de Giovanni, de James Baldwin, é uma jornada lírica além dos limites do amor e da identidade
29 setembro 2024 às 00h00
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Carlos Augusto Silva
Especial para o Jornal Opção
Mergulhar em uma história sublime é como adentrar um universo paralelo, onde palavras se transformam em portais mágicos e cada página é um novo horizonte a desbravar. Ler é uma dança íntima entre o leitor e o texto, uma troca silenciosa de segredos e sentimentos. Na quietude do papel, ouvem-se murmúrios de vidas imaginadas, ecos de aventuras jamais vividas, mas sentidas profundamente no coração. Cada frase é um sussurro de eternidade, cada parágrafo, um convite para sonhar desperto. E assim, página após página, deixei-me levar, faz alguns anos, por este rio de emoções que é “O Quarto de Giovanni”, de James Baldwin, encontrando nas letras a essência do ser refletida nesta narrativa que toca a alma.
Há um lugar onde a prosa de James Baldwin se encontra com a vastidão do sublime, e este lugar se chama. Ao adentrarmos suas páginas, somos transportados para um universo onde as emoções humanas se revelam em sua forma mais crua e intensa. É uma jornada que desafia as convenções, onde o amor e a identidade se entrelaçam em um movimento de sombras e luzes. Neste Quarto, pequeno em espaço, mas infinito em significado, Baldwin nos convida a refletir sobre a complexidade do desejo e a fragilidade da existência.
Como uma crônica escrita nas margens do tempo, “O Quarto de Giovanni” revela a profundidade das relações humanas, explorando a dualidade do prazer e da dor, do amor e da perda. Através de sua narrativa, somos levados a contemplar a beleza e o terror do sublime – aquele sentimento avassalador que nos faz perceber a imensidão do mundo e a nossa própria vulnerabilidade. Baldwin, com sua prosa lírica e penetrante, não apenas narra uma história, mas nos faz vivenciar cada emoção, cada dilema, como se fossem nossos.
Para um crítico é um constante desejo procurar desvendar os mistérios do sublime em “O Quarto de Giovanni”, analisando como Baldwin captura a essência das experiências humanas mais profundas e as traduz em uma arte que ressoa com verdade e intensidade. É um convite para nos perdermos nas páginas deste livro, permitindo que suas palavras nos guiem em uma exploração filosófica e poética da alma humana.
Mas o que é, afinal, o conceito de sublime?
O conceito de “sublime” é um enigma que seduz filósofos, escritores e artistas ao longo dos séculos. Nascido da filosofia estética, o sublime é uma experiência de vastidão e grandeza que ultrapassa a beleza comum, evocando uma mistura arrebatadora de admiração e terror. É um sentimento que nos transporta além dos limites do entendimento racional, tocando as profundezas da nossa emoção e consciência.
Minha jornada pelo sublime começa com Longino, um escritor grego do século I, cujo tratado “Sobre o Sublime” é uma das primeiras tentativas de decifrar esse mistério. Longino declara que o sublime é uma qualidade de grandeza que se encontra tanto na natureza quanto na arte, elevando a alma humana e provocando uma sensação de elevação e deslumbramento.
No século XVIII, Edmund Burke, um filósofo irlandês, expandiu a discussão sobre o sublime em sua obra “Investigação filosófica sobre a origem do sublime e do belo”. Burke diferenciou o sublime da beleza, sugerindo que, enquanto a beleza está ligada à harmonia e ao prazer, o sublime está associado à vastidão, ao poder e até mesmo ao terror. Para Burke, o sublime desperta uma sensação de admiração misturada com medo, resultando em uma experiência intensa e arrebatadora.
Immanuel Kant também deixou sua marca na teoria do sublime. Em sua “Crítica do Juízo”, Kant separa o sublime matemático do sublime dinâmico. O sublime matemático refere-se à percepção da imensidão, como o infinito céu estrelado, enquanto o sublime dinâmico está relacionado ao poder incontrolável da natureza, como uma tempestade feroz. Para Kant, o sublime revela a limitação da nossa compreensão, ao mesmo tempo que destaca nossa capacidade de raciocínio e moralidade.
A literatura e a arte têm sido poderosos veículos para a expressão do sublime. Poetas românticos como William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge exploraram o sublime em suas obras, capturando a grandeza e a força da natureza em suas descrições líricas. A pintura de paisagens, especialmente a obra de artistas como Caspar David Friedrich, também buscou transmitir a sensação do sublime, retratando cenas de vastidão natural e poder esmagador.
O sublime desafia definições simples, pois está intrinsecamente ligado à experiência pessoal e emocional. É uma força que nos leva a confrontar as limitações do nosso entendimento e, ao mesmo tempo, nos conecta com algo maior do que nós mesmos. Seja na natureza, na arte ou na filosofia, o sublime nos convida a explorar as profundezas da nossa alma e a admirar a imensidão do universo que nos envolve. O sublime nos lembra da nossa própria humanidade e da infinita capacidade de maravilhamento que possuímos.
E por que o sublime é algo tão vívido em Baldwin? “O Quarto de Giovanni” é um romance que mergulha nas profundezas da identidade, sexualidade e amor. É a confissão de David, um jovem americano em Paris nos anos 50, perdido entre o conhecido e o desconhecido. Noivo de Hella, ele se vê tragado pelo olhar de Giovanni, um barman italiano, e se rende a um amor intenso e tumultuado.
David se debate entre o desejo por Giovanni e a sombra da culpa e vergonha que sua sexualidade lhe impõe. No pequeno Quarto de Giovanni, eles encontram tanto um refúgio quanto uma prisão, um palco de felicidade efêmera, tensão e dor. Esse Quarto torna-se o centro de um turbilhão emocional, onde o amor deles floresce e murcha.
Quando Hella retorna, David é confrontado com uma escolha impossível. Incapaz de abraçar plenamente sua identidade, ele abandona Giovanni, retornando ao porto seguro que Hella representa. Mas essa decisão, forjada pelo medo e pela negação, traz consequências trágicas. Giovanni, deixado só, acaba condenado à morte por assassinato, um ato final que lança David em um abismo de remorso e perda.
O romance termina com David imerso em reflexões sobre suas escolhas, sobre a dor irreversível que causou e que carrega. “O Quarto de Giovanni” é uma meditação poética e dolorosa sobre o amor, a identidade e as pressões sociais, uma jornada através da luta interna de um homem dividido entre o desejo ardente e a conformidade sufocante.
Vemos o conceito de sublime costurar a trama de Baldwin em sua inteireza. “O Quarto de Giovanni” tece uma narrativa densa e emocionalmente carregada, explorando a profundidade da identidade, da sexualidade e do amor. Ao mesmo tempo, o romance mergulha no conceito de sublime, transcendendo as barreiras da experiência comum para tocar as profundezas da emoção e da consciência humana, tanto pelo belo, quanto através do trágico.
Se o sublime, como concebido por filósofos e escritores ao longo dos séculos, é frequentemente associado a uma experiência de vastidão e grandeza que evoca admiração e terror, vemos nesta obra essa vastidão. Ela é encontrada na profundidade das emoções dos personagens. A relação entre David e Giovanni é uma jornada através de territórios emocionais vastos e inexplorados, onde a admiração e o terror coexistem de maneira intensa.
David é atraído irresistivelmente por Giovanni. Essa atração, no entanto, não é apenas uma questão de desejo físico, mas uma experiência emocional avassaladora que desafia sua compreensão racional. O Quarto de Giovanni, pequeno e claustrofóbico, paradoxalmente se torna um espaço onde a vastidão emocional do sublime se desenrola. Nesse espaço, David é confrontado com seus próprios medos e desejos mais profundos, numa constante entre a admiração pelo amor que sente e o terror das implicações sociais e pessoais desse amor.
O sublime também é caracterizado por sua capacidade de elevar a alma humana, ao mesmo tempo que revela a sua fragilidade. A relação entre David e Giovanni encapsula essa dualidade. No início, o amor que compartilham é uma força elevadora, que lhes proporciona momentos de intensa felicidade e conexão. Baldwin descreve esses momentos com uma beleza lírica que eleva a narrativa, permitindo aos leitores sentirem a elevação emocional que os personagens experimentam.
Essa elevação é acompanhada por um profundo desespero. A incapacidade de David de aceitar sua própria identidade e a pressão das normas sociais o levam a abandonar Giovanni, uma decisão que culmina em tragédia. Giovanni, deixado sozinho e desamparado, enfrenta um destino terrível. O sublime, nesse contexto, se manifesta na combinação de elevação e desespero, mostrando como as experiências mais sublimes da vida podem estar intimamente ligadas às nossas maiores tristezas e tragédias.
Baldwin usa o conceito de sublime para explorar a complexidade da natureza humana. A luta interna de David entre seu desejo por Giovanni e sua necessidade de conformidade é um reflexo da batalha universal entre o desejo de liberdade e as restrições impostas pela sociedade. O sublime, neste sentido, é a experiência que nos leva a confrontar as limitações do nosso entendimento e da nossa identidade.
David, ao refletir sobre suas escolhas e a dor causada por elas, é forçado a encarar a vastidão de sua própria alma e as contradições que ela contém. A narrativa de Baldwin não oferece respostas fáceis, mas sim uma exploração profunda da condição humana, onde o sublime se manifesta tanto na beleza do amor quanto na dor da perda e do arrependimento.
Na vastidão da literatura norte-americana, James Baldwin é uma voz ressonante, uma testemunha das cicatrizes do racismo e da segregação que se entranham na história dos Estados Unidos. Sua jornada literária, marcada pela coragem e pela profundidade de sentimentos, revela-se especialmente vívida em “O Quarto de Giovanni”.
Nas páginas da minha edição antiga, da editora Civilização Brasileira, na coleção Biblioteca do Leitor Moderno, encontro não apenas palavras, mas um convite para adentrar nos recantos mais íntimos da alma de Baldwin. A orelha da minha edição, habilmente escrita por Paulo Francis, serve como um farol, iluminando as complexidades que permeiam esta obra.
Baldwin, tão perspicaz em suas críticas aos escritores que abordaram os direitos dos afro-americanos, como Paul Green e Richard Wright, não se limitou à questão racial de forma isolada. Ele buscava algo mais profundo, uma abordagem humanística que transcendesse fronteiras étnicas e sociais, alcançando a essência universal da condição humana.
Através do prisma de Francis, o cerne de “O Quarto de Giovanni” se revela não apenas como um romance sobre dois homens em Paris, mas como uma exploração poética e memorialística da experiência humana em toda a sua diversidade. Baldwin tece uma narrativa que não foge das verdades difíceis da vida, confrontando questões de amor, identidade e orientação sexual em um contexto que ressoa com a complexidade e a beleza da existência.
Ao adentrar o relacionamento amoroso entre David e Giovanni, Baldwin nos conduz por um labirinto emocional onde as questões de raça e sexualidade se entrelaçam com a busca por pertencimento e aceitação. Esse casal homossexual do romance é, para Francis, uma transposição inteligente e ampla, humanista da questão racial que mobiliza Baldwin. É nesse enredo que se revela sua habilidade singular de desafiar estereótipos e abrir novos horizontes para a compreensão mútua. Em sua prosa meticulosa, Baldwin nos lembra da importância vital de reconhecer e celebrar as diferenças, não como divisões, mas como pontes que conectam os indivíduos em uma teia de humanidade compartilhada.
“O Quarto de Giovanni” não se limita a ser apenas um romance sobre uma paixão homossexual que culmina em tragédia, é, por esse viés, uma justaposição da luta dos afro-americanos – mesmo que seus personagens não sejam isso –, e acima de tudo, um testemunho da nossa capacidade de transcender barreiras, de encontrar beleza na diversidade e de buscar, através do amor e da compreensão mútua, um caminho para a verdadeira liberdade e igualdade.
James Baldwin, com sua narrativa compassiva e profunda, continua a ecoar, lembrando-nos da importância de confrontar os desafios do passado para moldar um futuro mais inclusivo e humano.
A Companhia das Letras acaba de reeditar títulos de Baldwin em belas edições. Uma chance para o leitor brasileiro se encontrar com sua prosa cheia de razão e sensibilidade.
Carlos Augusto Silva, crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.