Mariza Santana

O escritor peruano Mario Vargas Llosa, de 87 anos, dispensa apresentações. É considerado um dos romancistas mais importantes da América Latina e um dos principais escritores da sua geração em todo o mundo. Cito aqui somente algumas de suas obras que considero primorosas, como “Conversas no Catedral”, “A Festa do Bode”, “Travessuras de Menina Má” e “O Sonho do Celta”. Porém, o romance “O Paraíso na Outra Esquina” também deve integrar esta lista, pela qualidade da obra e como seus protagonistas, dois personagens reais do século 19, foram apresentados. E nem falo do ensaísta brilhante, autor de texto seminais sobre Flaubert e Victor Hugo.

“O Paraíso na Outra Esquina” relata as vidas de duas grandes figuras daquele período: Flora Tristan (1803-1844) e Paul Gauguin (1848-1903), avó e neto que tinham raízes familiares no Peru, terra natal de Vargas Llosa. Em comum, além da ascendência peruana, foram duas pessoas que ousaram desafiar as regras da sociedade da época. Flora foi escritora e ativista socialista, e até inspirou Karl Marx. Ela deu contribuições importantes para a teoria feminista inicial, ao defender que a conquista da igualdade dos direitos das mulheres aos dos homens estava diretamente ligada ao avanço da classe trabalhadora.

Flora Tristan defendia a criação da chamada União Operária e dedicou os últimos anos de sua vida para difundir seus ideais libertários socialistas junto à classe trabalhadora francesa. Realizou um périplo por várias cidades da França, tentando mobilizar os operários e intelectuais na criação de células proto-socialistas. Mas, na condição de mulher, enfrentou uma batalha gigantesca para arregimentar simpatizantes à sua causa, além de sofrer muita repressão por parte das autoridades.

Flora Tristán: escritora, ativista e feminista francesa | Foto: Reprodução

O neto de Flora Tristan é mais famoso e bastante conhecido dos amantes da arte. Pintor francês do pós-impressionismo, Paul Gauguin largou a profissão de operador da Bolsa de Valores de Paris, o casamento burguês com uma dinamarquesa e filhos, para se tornar tardiamente um pintor inquieto e boêmio. Enfrentou a miséria e a incompreensão de seus compatriotas para se dedicar à vocação artística. O nome de Gauguin costuma ser lembrado pelo curto período em que ele conviveu com o pintor holandês Vincent van Gogh em Arles, no Sul da França, e pelo episódio de automutilação do holandês por causa de um desentendimento entre os dois.

Mas a extraordinária biografia de Paul Gauguin vai muito além desse episódio. Após deixar o colega dos pincéis, chamado por ele no livro de Vargas Llosa de “Holandês Louco”, o pintor francês vai viver no Tahiti, e depois nas Ilhas Marquesas, para comprovar sua teoria de que a arte europeia estava “degenerada” e era preciso resgatar a arte dos habitantes primitivos, cuja cultura ainda não tinha sido contaminada pela civilização ocidental.

Paul Gauguin: o pintor morou no Peru | Foto: Reprodução

No romance “O Paraíso na Outra Esquina”, os dois protagonistas, Flora e Gauguin, em capítulos intercalados, vão narrando suas memórias e trajetórias. Flora foi vítima de um casamento violento, fugiu do jugo do marido, o que lhe acarretou sérias consequências devido às rígidas regras vigentes para as mulheres na França do século 19. Procurou refúgio na família do tio, em Arequipa (onde nasceu Vargas Llosa), no Peru, mas também não se encaixou na sociedade local. Sobre a experiência peruana, escreveu um livro e logo em seguida se tornou ativista socialista. Morreu ainda jovem, aos 41 anos de idade, mas pode muito bem ser incluída no panteão das grandes mulheres da história da humanidade.

Paul Gauguin, cuja genialidade artística só foi reconhecida após sua morte, depois de se tornar artista plástico viveu intensamente. Os capítulos dedicados a ele no livro de Vargas Llosa mostram um homem que desafiava as regras sociais do seu tempo. Dessa forma, colecionou muitos inimigos nos Mares do Sul, a maioria ligada aos dirigentes colonialistas da época e também aos missionários religiosos. Viveu maritalmente com nativas, pintou os originários das ilhas, misturou cores em seus quadros, rompeu cânones artísticos, enfim, revolucionou a arte com sua pintura. Era um revolucionário na teoria e na prática, talvez mais na prática.

O melhor do romance “O Paraíso na Outra esquina”, cujo título faz alusão a uma brincadeira infantil, é resgatar as raízes peruanas desses dois personagens que, à primeira vista, parecem tão-somente europeus. Uma prova do gênio literário de Vargas Llosa que, além disso, deixa que os próprios protagonistas contem suas histórias, repletas de humanidade, porque contêm utopias, erros, acertos, a busca por uma sociedade melhor ou, simplesmente, pelo conceito de belo que só a arte pode nos proporcionar. “O Paraíso na Outra Esquina” é daquelas obras que se lê cada capítulo com prazer e deleite, porque está repleto de vida. Pura arquitetura literária de Vargas Llosa, um dos melhores escritores latino-americanos e globais (talvez seja mais lido na Europa, onde mora, do que na América Latina).

Mariza Santana é jornalista crítica literária. E-mail: [email protected]