O Pantera Negra, sua semiótica com a literatura brasileira e a inclusão racial em concurso da arte-educação goiana
13 junho 2021 às 00h00
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A arte literária na roteirização das megaproduções de super-heróis tem sugerido alguns elementos de reflexão em torno de problemas sociológicos graves
Gismair Martins Teixeira*
No âmbito da educação, os especialistas diferenciam a aquisição da leitura por parte do educando de uma função social mais ampla conferida por essa habilidade, que recebe a denominação de letramento. Da aquisição da leitura e escrita à decodificação dos incontáveis códigos discursivos, tanto da linguagem verbal quanto da linguagem não verbal, há uma distância significativa sobre a qual a moderna pedagogia se debruça.
Neste contexto, desde o final do mês de abril vem se desenvolvendo o Concurso Literário 2021 da Secretaria de Estado da Educação de Goiás (Seduc), por meio da Superintendência de Desporto Educacional, Arte e Educação, da Superintendência de Educação Infantil e Ensino Fundamental e do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte. O tema da atividade pedagógica, que envolve toda a rede goiana, é “Vozes da Literatura Negra Brasileira”.
O objetivo geral desse concurso da educação pública goiana, que tem se destacado continuamente em parâmetros nacionais de aferição de qualidade educacional como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), é trabalhar a temática proposta sob uma perspectiva intersemiótica abrangente, envolvendo docente e discentes num projeto maior de inclusão social. A temática selecionada pela Seduc/Ciranda da Arte é de uma riqueza extraordinária para os concorrentes compreenderem relevantes aspectos sociológicos da histórica do Brasil e sua formação.
Nesta perspectiva, conceitos da linguagem verbal e não verbal, como semiose, intersemiose e intertextualidade, conjugam-se de forma harmônica para ampliar a visão de mundo de educandos e educadores, passíveis e possíveis de serem trabalhados em diversas frentes artísticas, dentre as quais a do universo pop, mediante o diálogo entre a cinematografia atual e momentos muitas vezes insuspeitos da literatura brasileira como um todo.
Há 53 anos o semioticista italiano Umberto Eco publicava o seu já clássico volume de ensaios sobre a cultura de massa intitulado Apocalípticos e Integrados. Um dos trabalhos componentes da obra, sob o título de O Mito do Superman, perscruta a mitopoese dos heróis de quadrinhos a partir da análise cultural do personagem que ganhou de vez o imaginário da cultura popular através da magia cinematográfica, que fala tão de perto ao público jovem.
Quando do lançamento de Jurassic Park,em 1993, sob direção de Steven Spielberg, o jornalista Paulo Francis, impressionado com o realismo dos dinossauros projetados na telona, comentou em seus escritos que dali em diante não haveria mais limites para o que os programas de computador específicos para o cinema levariam às plateias da sétima arte. Os filmes de super-heróis, que na atualidade batem recordes sucessivos de bilheteria, encarnam à perfeição as palavras do polêmico jornalista brasileiro, falecido em 1997.
Em termos de imagem, quem assiste às atuais performances dos super-heróis nas telas não deixa de ficar impressionado com o grau de verossimilhança atingido graças à parafernália de softwares de efeitos especiais. A ilusão, ou magia, como se queira, é completa. Os heróis cruzam os céus e até mesmo as galáxias com a rapidez necessária para seus atos de salvamento de um planeta aqui, outro ali, num pré-aquecimento para salvar a metade de todo o universo existente, como ocorreu em Vingadores – Ultimato, dos estúdios Disney e Marvel, filme que é a segunda maior bilheteria da história do cinema.
Se os efeitos especiais desse gênero de filmes alcançaram um patamar próximo à perfeição, o trabalho dos roteiristas teve de buscar uma equivalência pelo menos relativa à perfectibilidade imagética das narrativas envolvendo essas personagens mitológicas do século 20. Ao que parece, todo roteirista que atualmente assina algum grande sucesso de filmes ou séries de super-heróis trabalha com o ensaio de Umberto Eco sob os olhos. Dentre as diversas críticas à construção do Superman realizadas pelo intelectual italiano, uma das que mais sobressai é a do enquadramento de um herói com poderes quase divinos ao status quo estadunidense de meados do século passado.
Ou seja, em grande parte de suas ações o homem de aço gasta seu tempo e sua descomunal energia para evitar roubos corriqueiros, protegendo a propriedade privada, num contexto geopolítico em que o comunismo ainda é o grande inimigo da parte do mundo então comandada pelos Estados Unidos, que se opunham à extinta União Soviética, o monstro comunista que intentava destruir o capitalismo.
O Superman não usa seus poderes magníficos para tentar modificar a realidade do capitalismo selvagem e predatório da onipresente retórica marxista e, infelizmente, da realidade em muitos rincões mundo afora. A visão geopolítica do herói nascido em Krypton é reducionista, praticamente nula. Era esse o perfil político do super-herói, quando Umberto Eco escreveu o seu ensaio nos anos 60 do último século.
Intersemiose e opressão social
Lúcia Santaella, pesquisadora brasileira que apresenta nas últimas décadas do século passado a semiótica, ciência dos signos, de Charles Sanders Peirce, à comunidade discente de Letras nas universidades brasileiras por meio de O Que É Semiótica, refere-se à intersemiose como sendo caracterizada pela interface entre a linguagem verbal e a não verbal, que se expressa, dentre outras correlações, pelo intercâmbio constante entre a literatura e as visualidades. Nesse contexto, o constante diálogo entre literatura e cinema configura uma das mais representativas formas de manifestação intersemiótica.
Dessa forma, a arte literária presente na roteirização dos filmes de heróis – bem como todo um rico veio de intertextualidade e intersemiose que a expressa – tem sugerido em suas megaproduções cinematográficas alguns elementos de reflexão em torno de problemas sociológicos graves. Em Dialética da Colonização, volume de ensaios do crítico literário Alfredo Bosi, que faleceu recentemente vítima da Covid-19, o ensaio intitulado Sob o signo de Cam apresenta uma extraordinária análise antropossociológica e literária da terrível opressão da escravatura na história brasileira a partir do poema Navio Negreiro, de Castro Alves.
No ensaio de Bosi, tem o leitor a análise precisa da justificativa da religiosidade cristã para a escravidão dos africanos, que a justificava a partir da passagem bíblica em que Noé amaldiçoa seu filho Cam, predizendo que sua descendência seria serva da casa de seus dois irmãos, Sem e Jafé, num processo hermenêutico equivocado que se inseriu no Brasil a partir do espírito de época, o denominado zeitgeist, geopolítico e econômico a que ninguém escapa segundo o filósofo Hegel.
Em Navio Negreiro, poema que detalha a dantesca viagem dos forçados africanos, escreve Castro Alves num crescendo que compara a condição anterior de liberdade à prisão em ferros:
“Ontem a Serra Leoa / A guerra, a caça ao leão / O sono dormido à toa / Sob as tendas d’amplidão! / Hoje… o porão negro, fundo / Infecto, apertado, imundo / Tendo a peste por jaguar… / E o sono sempre cortado / Pelo arranco de um finado / E o baque de um corpo ao mar…”
Estes versos castroalvinos apresentam uma instigante intersemiose com a narrativa fílmica da construção mitológica dos filmes de heróis na perspectiva crítica de Umberto Eco.
Em Pantera Negra, película de 2018 dos estúdios Marvel, os roteiristas Joe Robert Cole e Ryan Coogler trabalharam, numa dimensão mais ampla, o embate por lutas e direitos civis do personagem criado por Stan Lee como espelhamento da realidade social opressiva em que viviam as comunidades negras nos Estados Unidos. Pantera Negra é o herói e rei de Wakanda, país africano fictício concebido por Stan Lee dotado de tecnologia oriunda de um meteoro que num passado remoto caiu na região, possibilitando aos habitantes wakanandos desenvolverem uma civilização tecnologicamente superior às demais do planeta, o que os leva a se isolarem do restante do mundo.
O filho de um dissidente de Wakanda, que trabalha ocultamente nos Estados Unidos como uma espécie de observador da geopolítica mundial, vê seu pai ser morto pelo tio, rei do país africano, por ter se simpatizado com a luta pelos direitos civis na década de 60 nos Estados Unidos, nutrindo a intenção de colaborar com os seus irmãos de origem africana para vencer a guerra racial. O garoto cresce com o desejo de vingança, que se expande para a ânsia de supremacia sobre os demais povos do planeta. Ao adotar o codinome de Kilmonger quando se torna assassino profissional, ele vai a Wakanda e desafia o detentor do trono para um duelo ritual, cujo vencedor passa a ser o legítimo rei.
A morte ou a rendição é a condição para determinar o vitorioso. Kilmonger imagina ter vencido ao arremessar T’Challa, rei em exercício, do alto de uma cachoeira. O rei sobrevive e volta para continuar o desafio, mas Kilmonger não pretende dar sequência ao embate, pois já dominara ideologicamente o reino e se preparava afanosamente para iniciar uma guerra de subjugação racial em nível planetário. Ao final, após intensa luta contra o Pantera Negra e seus companheiros, Kilmonger recebe um golpe de lança, que fica cravada em seu peito.
O rei T’Challa lhe oferece ajuda, afirmando que com a alta tecnologia disponível ele poderia ser salvo. Kilmonger questiona a ele se o destino seria a prisão após a cura. Diante da resposta afirmativa, ele nega ajuda, dizendo que prefere a morte digna de seus ancestrais que eram levados em navios para a América, mas que se rebelavam e eram atirados ao mar, escolhendo a morte à escravidão. A referência histórica aos seus ancestrais atirados ao mar remete aqui aos versos de Castro Alves, numa impressionante intertextualidade imagética que evoca a sinestesia dos versos do poeta baiano.
Outra instigante intersemiose entre o destino final do personagem de Pantera Negra e a literatura brasileira que tem os descendentes africanos como personagens diz respeito ao destino final do antagonista fílmico mencionado e a clássica obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo, romance do período historiográfico literário do naturalismo, cuja ambientação é o Rio de Janeiro de fins do século 19. A narrativa azevediana apresenta João Romão, imigrante português que deseja fazer fortuna como muitos de seus patrícios radicados no Brasil.
Com ferrenha disciplina de opressão capitalista aliada a laivos de desonestidade, ele consegue erguer um cortiço na periferia de um bairro fluminense. A comunidade cresce, juntamente com sua riqueza. No início de seu projeto, ele se juntara a Bertoleza, escrava que fugira de seu dono e a quem ele engana, simulando haver comprado a sua alforria. Ambos vivem amasiados. No final do romance, João Romão pretende tornar-se um fidalgo. Para tanto, Bertoleza já não lhe convém. Assim, ele entra em contato com o antigo proprietário da escrava e fornece o local onde ela supostamente se esconde.
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A polícia vai até a residência com ordens de prender Bertoleza para devolvê-la ao proprietário legal. No auge do desespero e ante a iminência de voltar para a escravidão, ela faz a escolha de Kilmonger, tomando de uma faca e rasgando o próprio ventre de lado a lado, na impressionante narrativa naturalista de Azevedo. É um desfecho impactante, para uma narrativa que apresenta o candente problema da dialética que envolve a inserção social brasileira dos africanos e seus descendentes que auxiliaram a construir o país.
O tema do concurso literário promovido pela Seduc/Ciranda da Arte abre, portanto, todo um leque de possibilidades para a abordagem em torno de um número expressivo de tópicos semelhantes de intersemiose e intertextualidade, que poderão ser trabalhados no sentido de construção da cidadania dos educandos goianos, num importante processo arte-educativo que põe em perspectiva relevantes aspectos da vida social brasileira e seu desenvolvimento no tempo e no espaço, reverberando as vozes negras na literatura e na arte brasileira como um todo em instigante processo de letramento literário da comunidade estudantil goiana.
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* Gismair Martins Teixeira é doutor em Letras e Linguística pela Faculdade de Letras da UFG, pós-doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte/Seduc.