“É a maior poetisa de Goiás, tanto pela opulência de sua obra como pela sensível habilidade em ir, de livro a livro, atualizando a sua forma de expressão poética”

Eurico Barbosa

Lêda Selma, titular da cadeira 14 da Academia Goiana de Letras, é excelente cronista e poetisa. Sobre o primeiro dos gêneros por ela cultivados escrevi breve texto com o título “A musa da crônica”. Tópicos do artigo publicado em 19 de setembro de 2003:

“Na segunda-feira dessa semana completaram-se exatamente 111 anos que Machado de Assis deu início à sua produção de cronista. A 15 de setembro de 1892 o maior homem de letras do Brasil começava os textos de ‘A Semana’ na ‘Gazeta de Notícias’, formadores de quatro volumes da sua obra, que tem o cunho da perenidade. Escreveu naquele dia: ‘Tirei hoje do fundo da gaveta, onde jazia, a minha pena de cronista. A coitadinha estava com um ar triste, e pareceu-me vê-la a articular por entre os bicos uma tímida exprobração. Em volta do pescoço enrolavam-se-lhe uns fios tenuíssimos, obra dessas penélopes que andam pelos tetos das casas e desvãos inferiores dos móveis. Limpei-a, acariciei-a e, como o Abencerragem ao seu cavalo, disse-lhe algumas palavras de animação para a viagem que tínhamos de fazer’.”

Lêda Selma, poeta goiano-baiana | Foto: Reprodução / Academia Goiana de Letras

Essa viagem significou a afirmação do primeiro grande cronista, algum tempo depois transformado no maior romancista brasileiro.

Ainda em vida de Machado de Assis, surge João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, cujo nome completo é João Paulo Emílio Alberto Coelho Barreto, cronista extraordinário da vida carioca, esbanjador de talento, estilista admirável. Sucedeu-o, na crônica, Humberto de Campos, estilo elegante, que explorava o sentimento e a emoção do público leitor e foi o autor mais lido do Brasil dos últimos anos da década de 20 até o extraordinário Rubem Braga, por muitos alçado até hoje ao topo da crônica brasileira. Seguem-no Álvaro Moreira, Carlos Drummond de Andrade (o grande poeta é também excelente cronista), Rachel de Queiroz, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos. E muitos há pelo Brasil adentro, a maioria conhecida apenas em seus Estados.

Ao que sei e me lembro os primeiros cultores do gênero em Goiás foram Juruena di Guimarães e Jean Pierre Conrad, primeiro na “Folha de Goiaz” (com Z mesmo) e depois em “O Popular”; e o segundo neste último, sempre. Do final da década de 50 em diante, Anatole Ramos, Carmo Bernardes e Modesto Gomes se fazem muito presentes na imprensa como cronistas. Hoje, a crônica tem pelo menos um representante a cada dia: Ursulino Leão [falecido], José Mendonça Teles [falecido], Brasigóis Felício, Luiz de Aquino, Bariani Ortencio, alguns valores novos (de grande talento) e essa fabulosa Lêda Selma.

Lêda é a minha personagem de hoje. Tal como Drummond, poeta dos maiores e cronista dentre os melhores. No dia em que a conheci pessoalmente, empreendia ela um movimento para divulgação e popularização da poesia por meio da escrita de versos em muros de Goiânia. Até em espaços do Estádio Serra Dourada estrofes dela foram expostas, o que mereceu ótimo textos de Armando Nogueira.

Ao ler algumas das poesias dela em cartões por ela mandado confeccionar, destaquei uma e lhe disse: Lêda, ainda que você houvesse escrito somente esse poema, seu nome ficaria no universo dos bons poetas.

Vem depois a leitura de suas crônicas. Em livro e aqui no Diário da Manhã todos os domingos. Que cronistaça! (Com o neologismo, imito-a. Lêda cultiva maravilhosamente neologismania. Saborosa criatividade: milagreou, piscanejar, desremediado, tredizem, creudespai, heuregei, adonou-se, malservência, impeixíferas, escureza, perdidiços, computamor, desdouzeliza, ziguehilariando, desacontecido, conversório, desnatalizado, natalicida, desviveu, azaranzando, desfunção, destramando, perdidosa, dessequestrar, desachar, dezenas de outros inteligentes inventos verbais).

Feminina cabeça de contingente de imaginação criadora, originalidade, capacidade perceptiva incomum e senso de humor. Prosa malabarística e filigranada, a dar como resultado historietas e acontecências bem contadas, em nenhum momento adentra essa “tapera no território do idioma” (definição de Guimarães Rosa) que é o lugar-comum.

Frequentemente a prosa poética:

“Moço bonito, de beleza sensual a serpejar sedutora, o Araguaia se envolve em fetiches para receber os amantes em seu leito de lençóis azuis. E eu me deixo seduzir por seus encantos, durante uma semana, a cada julho, reverenciando toda a sua majestade, cheia de xodó com esse namorado charmoso de tantos e tantos goianos”.

Não é para menos. É de Leda Selma este poema de que Ivan Lins fez bonito arranjo, gravado em CD: “Se teu sonho for maior que ti, alonga tuas asas, esgarça teus medos, amplia teu mundo, dimensiona o infinito e parta em busca da estrela. Voa alto! Voa longe! Voa Livre! Voa! E esparrama pelo caminho a solidão que te roubou tantas fantasias, tantos caminhos e tanta vida”.

Foi exatamente este poema que destaquei quando pela primeira vez me deparei com versos da musa da nossa crônica.

Mas a poetisa Lêda Selma era, sempre foi, merecedora de um ensaio realmente supedaneado em opinião de um verdadeiro corifeu da crítica literária, sobretudo no plano poético, e este ensaio acaba de ser produzido por Gilberto Mendonça Teles, indiscutivelmente o mais abalizado crítico em Goiás e um dos mais importantes no próprio cenário da literatura brasileira. Gilberto é mestre com formação desde muito jovem, nunca interrompida, sempre crescente em erudição e em estudos poliglóticos.

Antes de tudo devo dar o meu testemunho da imensa dedicação ao estudo da literatura e da capacidade literária de Gilberto. Já ao tempo em que ele e eu trabalhávamos no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1952, eu com 19 anos, ele com 21, Gilberto se evidenciava diarimente excepcional estudioso da literatura em todos os seus gêneros e já produzia excelente poesia, poemas e sonetos em forma perfeita. Conhecia todas as nuances do gênero – cesura, rima, métrica, bem como os melhores autores de língua portuguesa e também estrangeiros. Tornou-se poeta dos maiores e também grande ensaísta.

O trabalho agora publicado de Gilberto sobre a poesia de Lêda é lapidar, magistral. Lembra inicialmente: “Ao me aproximar da excelente produção literária da cronista e poetisa baiano-goiana Lêda Selma de Alencar (1948), observo que o crítico esbarra inicialmente como dois aspectos, digamos com dois contextos, importantes ou não, dependendo do estudo crítico que pretenda levar a efeito. Ele pode recorrer a possíveis elementos Biográficos ou fazer uma consulta de natureza Bibliográfica. Poder-se-ia, entretanto, pensar em um ‘terceiro excluído’. Na verdade, nem é preciso levar a adiante o ‘terceiro do homem’ da Metafísica de Aristóteles ou de Parmênides. O crítico prefere trabalhar com o seu ‘terceiro incluído’, isto é, com ou por meio dos textos literários (somente deles), penetrar no sobsolo da linguagem de Lêda Selma (como ela passou a assinar depois do primeiro livro), o que ela esconde de beleza, de infortúnio, desejo, alegria e de esperança para quem tiver o privilégio de ler e curtir os seus poemas”.

Gilberto analisa toda a obra poética de Lêda na ordem de publicação. O primeiro de seus livros publicado em 1986, com o título “Das Sendas à Travessia”, diz o crítico que “a leitura deste livro nos põe diante de uma linguagem duplamente madura, difícil de se ver na maioria dos iniciantes em poesia. É duplamente porque, de um lado, registra do domínio total da expressão em língua portuguesa; e, de outro, a construção estática da linguagem literária, num momento em que, no plano nacional, os grandes ícones da poesia brasileira do século XX (quase todos com as suas obras completas) já haviam superado os cacoetes iniciais do modernismo e de há muito construíam a sua própria linguagem literária.

Seu livro aparece sob o título que oculta o domínio da destreza verbal no tratamento da imagem que, na sua forma figurada, exprimia o dialogismo de Backtin: Juntam-se num só termo, numa só palavra, duas ideias que se contrapõem e ao mesmo tempo se completam, revelando, numa terceira dimensão — a que se esconde no discurso –, um dos aspectos do invisível na poesia.”

A segunda obra poética (1988) de Lêda Selma intitula-se “A Dor da Gente”. Gilberto a analisa: “Dois anos depois do primeiro livro Lêda Selma volta ao público, desta vez com um título menos literariamente expressivo, mas imbuída de novidade com a forma dos versos e dos poemas. Vê-se um soneto, com a tentativa de versos metrificados. Veem-se poemas que se mostram visuais na forma da página, mas sem o encontro da essência expressiva da visualidade que vem de Semas de Rodes e de Teócrito (séc. IV e III a.C.) e, principalmente, para a modernidade vanguardista. O belo e lúdico livro ‘Calligrammes’, de Apolinaire. Em relação ao primeiro livro, há pouca modificação no vocabulário com imagens que continuam o sentido da angústia anterior.

O título do livro parece um pedaço de frase, como se alguém estivesse contando um caso e o terminasse dizendo: ‘O certo é que ninguém pode com a dor da gente’”.

O terceiro dos livros de poesia de Lêda Selma tem o título “Fuligens do Sonho”. Gilberto diz sobre ele: “O interessante para iniciar alguma observação sobre este livro é ‘ampliar’ a última estrofe do poema que exatamente se intitula ‘Fuligens do sonho’, o qual em vez de abrir o livro o está fechando, como se a Autora, na organização dos poemas para um volume, resolvesse escrever um poema especial que, no fim (do livro), fechasse também o seu discurso:

Sabe a vida que o nada

é travessia do vazio.

E viver é extrair dos sonhos

até mesmo suas fuligens.

Percebo nesta estrofe o fechamento de um discurso que se delineia ao longo dos três primeiros livros de Lêda Selma, levando no seu curso as palavras ‘travessia’ e ‘sonho’, que boiam visíveis, aqui e ali, para o leitor pelo menos delinear a sua permanente atualização com as palavras-frase, estilemas insistentes no processo da criação poética”.

No enfoque seguinte o grande crítico nascido em Bela Vista de Goiás observa sobre a obra poética “Migração das Horas”: “A bela imagem da ‘migração das horas’ para o título de um livro não surpreende inicialmente porque a natureza mostra de vez em quando exemplos de migrações, como a dos gafanhotos entre o Uruguai e o Brasil; a dos salmões no Canadá e a das piracemas em vários rios do Brasil. Mas quando a imagem tem de ser aplicada a substantivos concretos que parecem abstratos, quando exigem um raciocínio para a real compreensão, aí a imagem vai depender da cultura de cada um de nós. De início, podemos perceber que as horas, para a poetisa Lêda Selma são fragmentações do tempo concreto, absoluto, quando o medimos com a hora, o dia, a primavera, coisa que está dentro e fora de nós. (…)

O poema ‘Final’ que logicamente deveria estar no final do livro, está no começo. Vá lá saber a intenção de quem o pôs assim. Se está aí, o crítico tem de aceitar e tentar compreendê-lo. O certo para ele é que a palavra Tempo está conotando todo o livro. E, o mais interessante, os mesmos termos (palavras) que motivaram os livros anteriores, num período já de cinco anos, continuam presentes e bem visíveis neste livro. Houve pouca modificação no discurso poético e pouca alteração no gosto poético. Um amadurecimento, talvez, na filosofia de vida. (…)

O ritmo, o verso e a forma do poema me levaram a Drummond. (…)

Com um bisturi o crítico foi atravessando e cortando a estrutura superficial de cada poema dessas ‘horas migradas’ para encontrar um sem-número de lugares ‘sonho’ (‘overdose de sonho’), de ‘desejo’ (‘já farto de desejos’) e de ‘estrela’. (…)

Um dos poemas mais belo de Migração das Horas é ‘Crescente’, dedicado a ‘meu Júnior’, cuja partida aos vinte-e-um anos, em 1993 deve ter abalado muito o paradigma do ‘sonho’ e insuflado no ‘desejo’ da Autora aquele impossível da ‘estrela’ que, maliciosa, inspirou os versos apaziguados de quem possivelmente nunca aceitará o acontecido. (…)

Já no poema ‘Vazio’, é como se todas as ‘horas’, em migração, tivessem voado, dispersando-se e largando a esmo pedaços de sua estrutura e unidade que, entretanto, se recompõem. A força da poesia vai reconstruindo agora os vestígios quase ilegíveis, os fragmentos de sonhos, as frações dos desejos e o brilho invisível da estrela na ‘Violação’ do que passou.

As horas continuam migrando, como os novos minutos, as novas horas, os novos dias e novos anos, assim como os novos poemas de Lêda Selma vão migrando para a eternidade”.

O leitor está a ver que a simples reprodução do texto de Gilberto Mendonça Teles mostra à saciedade, a dimensão inteira do valor poético de Lêda Selma. Capacidade de observação, descortino, visão de grande crítico e de grande poeta, dono de um domínio absoluto da utilização do acervo extraordinário de conhecimento da arte poética. O texto gilbertiano dispensa comentário. O meu cingir-se, praticamente, a tal reprodução deve, estou certo, ser entendido pelo leitor que, não tenho dúvida, reconhecem nas formulações do crítico clareza e demonstração total do que é a poesia de Lêda. Parece-me assim coerente com essa minha visão agir de forma igual em relação ao quinto, ao sexto e ao sétimo livros da autora. O quinto, publicado em 2005, intitula-se “À Deriva”. Dele diz o crítico:

“Depois de haver lido, claramente, os quatro primeiros livros de poemas de Lêda Selma, chego a um barco que se quer à deriva, soçobrando-se, desiludido. Isto, mesmo — um barbo desiludido! No entanto, cheio de vida, mas desiludida…

(…) Assim a ideia popular de estar à deriva (metáfora de primeiro grau) leva ordinariamente para o mar; e, por força de uma condensação da imagem (metáfora de segundo grau), chega-se à de uma personagem, na verdade um eu lírico que se diz sem rumo, perdida em si mesma, desiludida pela viagem trágica do seu filho Júnior.

(…) Por esse barco chego também a um concreto sinal de transformação no livro de Lêda Selma, uma mudança realmente positiva no seu discurso poético, na sua mais alta compreensão da poesia. Com este livro, a Autora atinge o nível de ser considerada uma das principais representantes da Poesia Brasileira na atualidade”.

“Sombras e Sobras”, o sexto livro (2007), recebe estas considerações: “Sobre este livro de Lêda Selma escrevi em 24 de junho de 2008 que o livro (…) me atraiu desde logo pelo ludismo de seu título, como se do ‘som’ das ‘sombras’ ou pela música obscura do noturno da criação só viesse mesmo a solidão (‘só’) do que ‘sobra’ da vida, o que ficou para ser arte – o autêntico e original – o que se verbalizará em forma de poemas e de livro, este e os que estão à venir.

Vejo agora, em julho de 2021, depois de ter lido criticamente todos os livros de poemas da escritora, que existe uma forma de obsessão nos livros anteriores pelo uso de certas palavras, entre as quais ‘sonho’, ‘desejo’ e ‘estrela’, sequência que me pareceu traduzir um conteúdo psíquico-emocional (…).

(…) São poemas pequenos e, por isso mesmo, fortemente poéticos.

(…)

Como temos verificado, continua a manifestar-se a trindade poético-sensual que percorre a obra de Lêda Selma, maior poetisa de Goiás”.

O texto do crítico relativo a sétima e última obra (“De Sinas e Ceias” — 2012) da escritora que foi também gratíssima surpresa como administradora ao desempenhar excelentemente dois mandatos de presidente da Academia Goiana de Letras:

“Uma das partes de ‘À Deriva’ se denomina ‘Ceias e Sina’, e não é que a autora, quatro anos depois, escolheu o título de ‘De Sinas e Ceias’ para o seu mais recente livro de poemas? (…). A semelhança dos títulos pode criar confusão no ambiente jornalístico e mesmo crítico.

Este é um livro de chegada. Pelo menos a uma escalada, a um lugar da vida, pois ainda há muito por escalar. Lêda Selma encetou a sua grande ‘travessia’ psicopoética, isto é, a sua pré-história literária (os poemas que vinha escrevendo antes de 1986), quando publicou o seu primeiro livro, uma vez que para ela a travessia foi libertária e é para o sonho (‘a travessia é libertária’, ‘a travessia é para o sonho’, como se lê no poema ‘Transformação’).

Valendo-se continuamente do sonho e do desejo na demanda da estrela que, ao longo da sua obra foi adquirindo dimensões metafísicas e estéticas até ‘estrelizar’, a poetisa (não a poeta da crítica jornalística) passou a recolher e selecionar elementos provenientes da mitologia, do vinho, do amor, da erótica, da poética, da família e de tantas outras fontes, para engalanar seus poemas e nos deixar, nas palavras do admirável José Fernandes, uma obra sólida ‘pela sabedoria em transformar dor em arte’. E mais ainda: Lêda Selma é, sem dúvida, a maior poetisa de Goiás, tanto pela opulência de sua obra (sete legítimos livros de poemas que já deveriam estar reunidos num único volume), como pela sensível habilidade em ir, de livro a livro, atualizando a sua forma de expressão poética”.

Eurico Barbosa é escritor e pesquisador. É colaborador do Jornal Opção.