Mariza Santana

O cenário é Istambul, a bela cidade turca situada no Estreito de Bósforo, que se espalha parte pela Europa e parte pela Ásia. O ano do início da narrativa é 1975, época em que a antiga Constantinopla nem sonhava em se tornar um dos destinos turísticos mais atraentes do mundo como é atualmente. Kemal, jovem de uma família rica da cidade, está noivo de Sebil, moça da mesma classe social que estudou em Paris. O casamento próximo ia seguir à risca o protocolo das uniões das camadas superiores da sociedade de Istambul e a festa de noivado estava marcada para ser realizada com toda pompa no Hotel Hilton.

Mas eis que, ao comprar uma bolsa chique falsificada para presentear a noiva em uma loja de luxo da cidade, Kemal encontra como vendedora uma prima distante de 18 anos de idade, Füsun, da qual lembrava apenas de quando ela era uma criança, filha da costureira, que visitava às vezes sua mãe. A partir daí os acontecimentos vão fugindo do figurino escrito para o jovem rico. Kemal e Füsun se encontram em um apartamento da mãe dele e tem início um caso de amor tórrido, temperado com muito sexo.

A partir deste momento, e mesmo tendo realizado a festa de noivado com Sebil conforme estava programado, Kemal entra em um torvelinho emocional ao não se encontrar mais com sua jovem amada Füsun. A história prossegue até o final, onde ele decide criar na cidade um museu para expor objetos pessoais e familiares que remetem à memória da mulher de seus devaneios. O roteiro do livro “O Museu da Inocência” (Companhia das Letras, 568 páginas, tradução de Sergio Flaksman), do escritor turco Orhan Pamuk, trata do amor obsessivo de Kemal por Füsun, mas também traça um amplo panorama da cultura, política e identidade da Turquia, no período de pelo menos dez anos, a partir de 1975.

A obra mostra um país, instalado na encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente, que buscava se modernizar, após o herói nacional Kemal Atartük ter declarado a República da Turquia, em 1923, e no ano seguinte o Califado ter sido oficialmente abolido. Istambul, a maior cidade turca, era a síntese da identidade do país, com seus costumes ainda rígidos, principalmente no que diz respeito às mulheres, que deviam se casar virgens ou sofrer as terríveis penalidades impostas pela sociedade.

Uma fala da mãe de Kemal, uma dama da sociedade, demonstra muito bem como eram as convenções sociais naquela época: “Num país, onde os homens e as mulheres não podem ficar juntos socialmente, onde não podem se ver nem conversar um com o outro, não existe isso de amor”. Por isso, mesmo com o noivado rompido, para o escândalo e a fofoca das pessoas do seu meio social, Kemal não consegue ficar com seu grande amor.

Orhan Pamuk, escritor e crítico literário turco | Foto: Reprodução

O relacionamento deles enfrentará nove anos longos de convivência em uma sala de jantar, assistindo a programas de TV, junto com os pais da moça, sem grandes expectativas. Ao mesmo tempo, o jovem rico vai conhecer o mundo do cinema turco, que era alvo de muito preconceito por parte dos seus cidadãos, que preferiam as películas ocidentais.

Orhan Pamuk detalha bem os bairros e espaços de Istambul (pena que só conheci e me lembro de Taksim, justamente por causa daquela praça onde ocorreu uma revolta popular em 2013 contra Recep Tayuip Erdogan,). Infelizmente, como um “bom” autocrata, Erdogan ainda está no poder — ele já foi primeiro-ministro e hoje é presidente, foi reeleito em 2018, e tem usado os mesmos mecanismos de todo o ditador para calar e neutralizar seus opositores.

Em o “Museu da Inocência”, o autor fala também dos distúrbios políticos (esquerda versus direita, parece familiar para você, leitor?) e do golpe militar, realizado para acabar com a “bagunça” que reinava na Turquia, segundo a narrativa dos golpistas. Também faz referência à hiperinflação que tomou conta do país, à falência de inúmeros empresários e aos golpes financeiros dos banqueiros, ou seja, todas as vicissitudes pelas quais o país passou durante os anos citados no romance. Embora o protagonista demonstre ter passado alheio a esses problemas políticos e econômicos, com exceção de uma rápida alusão à bancarrota da Satsat, a empresa da família, ao viver focado exclusivamente na sua obsessão por Füsun.

Vale destacar a mestria da prosa de Orhan Pamuk, e mesmo sendo o primeiro livro do escritor que leio, posso tranquilamente concordar que ele, de fato, mereceu o Prêmio Nobel que recebeu e já estou desejosa de ler novas obras desse autor turco. O final do romance, que é todo narrado na primeira pessoa (relatado na voz de Kemal).  passa para a voz direta do escritor, que teria escrito a obra sob a encomenda de Kemal (um belo recurso), com a intenção de que a história de amor dele não fosse esquecida e para orientar os visitantes do Museu da Inocência. Um primor de desfecho e, mais que isso, “O Museu da Inocência”, em sua totalidade, é uma obra magnífica.

Mariza Santana é jornalista e crítica literária. E-mail: [email protected]