Com a realidade recente colada nos fatos recriados como ficção, série da Netflix, conduzida por José Padilha, tem bom ritmo e uma narrativa envolvente, além de chamar a atenção para fatores importantes da nossa sociedade

A catarse do sentimento de raiva contra a impunidade e a injustiça passa por Ruffo (Selton Mello, à dir.); o riso cínico de Ibrahim (Enrique Díaz) potencializa essa sensação no espectador | Foto: Divulgação

Toda ficção baseada em fatos reais cria uma espécie de realidade histórica paralela. Só incautos procuram entender a História à luz da ficção sem entender esse desvio de rota. Se os próprios historiadores, que vão às fontes primárias analisar os registros dos fatos, criam uma narrativa passível de interpretação, imagina uma trama criada no âmbito da ficção, do entretenimento.

“O Mecanismo”, série produzida pela Netflix sob a tutela de José Padilha, mal chegou ao serviço de streaming, em sua primeira temporada de oito episódios de 40 minutos cada, e já criou uma onda de protestos, em meio a defesas de interesses ideológicos sobre os fatos.
Padilha conhece bem a falta de costume à ficcionalidade dos fatos e seus mecanismos de construção por boa parte do público. Seu filme “Tropa de Elite”, de 2007, foi chamado de fascista por retratar um policial que defendia a tortura no combate ao crime e na preparação do esquadrão de elite da polícia. O ponto de vista da narrativa não era o do cineasta, mas poucos entenderam isso.

Entre outros trabalhos, Padilha assinou “Ônibus 174” e “Garapa”, dois documentários que olham para a realidade com filtros diferentes. O primeiro, de 2004, dirigido em parceria com Felipe Lacerda, com roteiro de Bráulio Mantovani (“Cidade de Deus”), reconstrói a realidade cotidiana do jovem que sequestrou um ônibus lotado de passageiros no Rio de Janeiro e acabou sendo morto numa operação desastrosa da polícia carioca, matando a refém que permanecera como escudo.

“Ônibus 174” também é sobre esquematização política. Mostra passo a passo a brutalidade social, fruto da irrealidade cotidiana do poder, que ignora a vida dos mais pobres. Critica a elite política que se aliena da violência no corpo social em prol de interesses próprios, contribuindo diretamente para a criação de criminosos.

“Garapa”, de 2009, mostra a miséria absoluta de três famílias no Ceará, que, para não morrer de fome, tomava água com açúcar, às vezes misturada com uma rala farinha, sob o silêncio dos donos do poder. O filme tem direção de Padilha, com roteiro seu em parceria com Felipe Lacerda.

Entre um e outro, Padilha fez “Tropa”, que o catapultou para a fama internacional, dirigindo filmes em Hollywood como “RoboCop”, até chegar à gigante de streaming Netflix e produzir seu primeiro megassucesso no formato série, “Narcos”, com Wagner Moura no papel do chefão do tráfico colombiano Pablo Escobar. E agora surge com “O Mecanismo”, um thriller político baseado nas ações da Operação Lava Jato.

Controvérsias

Seus filmes e séries, na maioria das vezes, tentam desvendar os mecanismos de poder. A Lava Jato, tanto na ficção de Padilha quanto na realidade que a inspirou, foi criada pela Polícia Federal, com apoio da Justiça Federal (Ministério Público e Tribunal Regional do Paraná), em 2014, para investigar crimes financeiros de lavagem de dinheiro que resultou na descoberta de um esquema gigantesco de corrupção nos governos do PT, envolvendo todos os grandes partidos, da situação e da oposição.

Por envolver elementos políticos que ainda pululam na vida pública tupiniquim, a série de Padilha cria uma tensão de controvérsias, que puxa os fios da discórdia e impede que se fale da narrativa em si e dos seus elementos como produto de entretenimento. “O Mecanismo”, no entanto, tem uma narrativa envolvente e sobrevive às polêmicas ideológicas.

Baseado na obra “Lava Jato – O Juiz Sérgio Moro e os Bastidores da Operação Que Abalou o Brasil”, de Vladimir Netto (Sextante, 2016, 400 páginas), com modificações em relação ao livro para dar conta da sistematização da mentalidade corrupta e da dramaticidade necessária à trama, “O Mecanismo” tem direção geral e roteiro (junto com Elena Soárez) do próprio Padilha.
O primeiro episódio é fundamental para o desenvolvimento da trama. Tem um cuidado especial nos elementos introdutórios, porque apresenta os três arcos dramáticos que vão dando vida e vigor à narrativa. Marco Ruffo (Selton Mello) é um delegado obstinado da Polícia Federal de Curitiba que em 2003 descobriu um esquema de lavagem de dinheiro que movimentava 10 bilhões (sem citar a moeda).

Ruffo sabe que o pivô desse esquema é seu ex-colega de infância, o doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Díaz). Ele então vai ao Ministério Público Federal com sua colega Verena Cardoni (Caroline Abras) pedir ajuda para prender Ibrahim (representação do doleiro Alberto Youssef), e fala com dois procuradores, Cláudio e Dimas.

Arcos dramáticos

A partir daí, a trama vai se construindo com os três arcos dramáticos. O primeiro, e principal, mostra o trabalho incansável de Ruffo e Verena para levantar as provas necessárias contra o doleiro, e assim esclarecer o largo esquema de lavagem de dinheiro. Ibrahim é preso. Mas tudo dá errado, porque ele logo sai da cadeia e arma contra o delegado, que é acusado de sofrer de transtorno bipolar e por isso é exonerado.

Verena não desiste. Um salto de dez anos no tempo faz a trama chegar a 2013, que é quando a delegada descobre o esquema de Ibrahim num escritório montado em cima de um lava jato, em Brasília, e desvenda mais que um esquema de evasão de divisas, mas uma complexa malha de ladroagem do dinheiro público que extrapola os domínios do governo.

Enquanto isso, o segundo arco, mais denso e extenso, acompanha os fatos novos dentro dos quais os corruptos cada vez mais graúdos vão entrando no radar da justiça e da trama. É o arco que fornece elementos que justificarão uma segunda temporada.

Nele, vemos como sugestão as demais peças à clef (personagens reais sendo elaborados como fictícios) aparecendo na narrativa. Dilma Rousseff virou Janete Ruscov. Michel Temer virou Samuel Thames. Luiz Inácio Lula da Silva virou João Higino, o Capo. Paulo Roberto Costa virou João Pedro Rangel. Aécio Neves se tornou Lúcio Lemes (conspirando no ouvido de Thames o tempo todo).

A Polícia Federal virou Polícia Federativa. A Petrobras, Petrobrasil. A Odebrecht virou Miller & Brecht, e seu CEO, Marcelo Odebrecht, se tornou Ricardo Brecht, o Fidalgo. Sérgio Moro virou Paulo Rigo. Além de um exército inteiro de personagens reais transmutados para a ficção com outros nomes e atributos fictícios.

É no espaço entre a realidade dos fatos protagonizados por essa turma e a ficcionalidade baseada neles que se criaram o ruído e os protestos, porque falas foram trocadas, frases alegadamente nunca ditas pelos de carne e osso foram ditas pelos fictícios, e os reais reivindicam a sombra da ficção para si, uma vez que esta vem colada naquela.

Padilha, como seus personagens, não é santo. Usa os artifícios da ficção para carregar as tintas sobre aqueles com os quais não simpatiza. Mas também não é bobo. Sabe que a realidade é muito mais complexa do que qualquer narrativa, seja ela ficção ou não. Neste sentido, “O Mecanismo” não é maniqueísta.

O terceiro arco mostra os dramas particulares dos personagens, jogando luz sobre a vida íntima de cada um, em que o caráter de todos se expõem. Rigo é calado, cauteloso, metódico, mas deixa fiapos crescentes de vaidade erigirem em sua aura, comportando-se como um deus intocável, treinando – com um meio sorriso na boca – a assinatura para deixá-la impecável nos autógrafos, nos mandatos de prisão e na autorização das operações.

Caroline Abras está ótima como Verena Cardoni, a pupila de Ruffo; em dado momento, ela assume a narração para cumprir um efeito dramático na trama | Foto: Divulgação

Personagens centrais

As tramas dos filmes e série de Padilha são sempre muito bem armadas. Selton Mello está incrivelmente convincente no papel do delegado Ruffo, um homem obcecado pela ideia de justiça. Barbudo, com uma aparência semidesleixada, soturno, cabelo grisalho com uma franja levemente desgrenhada sobre o olho esquerdo, impulsivo e teimoso, persistente, meio quixotesco, pai de uma doce menina autista (seu acalanto), vive um casamento em frangalhos.
No início da história, é motivo de chacota dos procuradores federais e do doleiro Ibrahim e seu advogado. Os primeiros riem de Ruffo porque acham que ele é paranoico delirante. Os segundos riem dele porque sabem que o pobre delegado não tem condições de atingi-los, sentem-se acima da lei.

Ruffo é de fato o protagonista da primeira temporada de “O Mecanismo”, e provavelmente seguirá assim nas temporadas subsequentes (se houver), enquanto a trama estiver obtendo bons resultados dramáticos e de suspense com a presença dele. Além de narrar a história, é por ele que passa a catarse do sentimento de raiva contra a impunidade e a injustiça. O riso cínico de Ibrahim interpretado por Enrique Díaz potencializa a sensação no espectador.
Aliás, Enrique Díaz faz o grande antagonista dessa primeira temporada. Há um molho de humor e sarcasmo em sua interpretação que deixa a trama com uma tensão especial. Díaz consegue deixar Ibrahim muito vivo e detestável, provocando um riso nervoso no espectador. Na trilha sonora, seu tema é “Bichos Escrotos”, dos Titãs.

Ibrahim é o primeiro personagem a esboçar o significado do título. Desde o começo, Ruffo compreende que o esquema que persegue é uma espécie de tumor maligno que se alastra. “É um câncer. Se a gente não matar pela raiz, essa porra vai espalhar.” Mas é Ibrahim que verbaliza o esquema primeiro.

Uma vez que está dentro do negócio, Ibrahim o conhece melhor que ninguém, e o descreve mais ou menos para Ruffo, que o acompanha dentro do camburão da polícia, na primeira vez que é preso por evasão de divisas.

“Vai ficar tanto tempo lá dentro que quando sair vai precisar de uma fralda pra mijar”, diz Ruffo. Ibrahim solta uma gargalhada cínica dentro do camburão. Algemado e de frente para o delegado, joga na cara deste sobre quem o defende acima de tudo.

“Esse dinheiro que passa na minha mão, você acha que vai pra onde? Você sabe quem é meu advogado? É o ministro da Justiça. Sabe quem paga o salário dele? O mesmo pessoal que recebe o dinheiro que passa na minha mão. O Congresso. Deputado, senador, governador, PMDB, PSDB, PT. Fico no máximo três dias”, diz Ibrahim. E foi o que aconteceu.

Quem suspende o sensor ideológico, percebe nesse momento que o discurso da narrativa não escolhe um lado exatamente. Mas como a ficção da série está intimamente amarrada à realidade, e a realidade é uma configuração marcada pelo jogo de poder em que o PT é um dos únicos que se lascam, poucos conseguem acompanhar a trama sem privilegiar um lado.
À exceção do primeiro episódio, dirigido só por Padilha, os outros contam com a direção de cenas feita por Marcos Prado, Felipe Prado e Daniel Rezende. Como ocorre nas grandes séries, tudo permanece com o mesmo ritmo de thriller, com um fundo dramático e ótimas construções de personagens.

Verena Cardoni, por exemplo, a pupila de Ruffo, assume a investigação, quando este é afastado compulsoriamente do cargo. Por um tempo, ela assume a narração, para cumprir um efeito dramático dentro da trama. É quando ela diz: “A história do Ruffo é difícil de contar. Toda vez que eu lembro eu sinto uma angústia fodida.”

Essa história de Ruffo não foi exatamente contada na primeira temporada, a não ser os feixes de elementos já citados. É provável que ela apareça numa possível segunda temporada para fortalecer os músculos da narrativa.

Protagonista e herói

O tal mecanismo gira sem parar na máquina do Estado, como motor de uma engrenagem maior dentro da própria sociedade. Na estrutura da série, não há de fato um personagem que sustente uma complexidade de drama e de vilania como Pablo Escobar em “Narcos”.
Mas José Padilha e Elena Soárez (roteirista de “Eu Tu Eles”, “Casa de Areia”, “Cidade dos Homens”) aproveitaram as ramificações incessantes das investigações da Lava Jato e desenvolveram um roteiro tradicional em sua estrutura, com um protagonista e um herói. Se o protagonista é Ruffo, o herói é o juiz Paulo Rigo.

Se Ruffo é problemático, sem dinheiro e com um casamento quase falido, com uma vida lascada que o coloca à beira da loucura, Rigo tem uma vida de classe média muito boa, mas não aceita de pronto o destino que lhe é proposto dentro da história, comportamento típico do herói.

Quando Ruffo o procura no Jardim Botânico, onde Rigo passeia com a filha, o juiz repele o delegado, sugerindo que ele não tinha o direito de sequer se aproximar. À medida que a história caminha, Rigo oscila entre atos de heroísmo e diáfanas pitadas de comportamento anti-heroico, como a manifestação da vaidade.

Essas sutilezas do roteiro são méritos de Padilha e sua equipe. Várias cenas emblemáticas também explicitam a organicidade do cinismo da elite brasileira ou a ironia do narrador (Ruffo) sobre atos recentes da classe média.

Em uma dessas cenas, enquanto uma pira na varanda da cobertura ardia documentos que serviriam como provas do crime que cometiam, o genro de João Pedro Rangel, diretor da Petrobrasil, dizia “fica tranquilo sogrão! Agora eles não têm mais nada contra a gente. Eu confio na Justiça”, tomando uma dose de gin com limão e gelo.

Em outra cena, Ruffo diz: “Se o brasileiro resolvesse bater panela pra tudo que acontecesse de errado nesse país, o carnaval não acabava nunca.” Ao receber o mandado de prisão de 12 dos 13 executivos de empreiteiras envolvidas no mecanismo de corrupção, Verena comenta com um sorriso de satisfação: “Metade do PIB brasileiro dormindo na nossa carceragem. Já pensou!”

Padrão

Exatamente por não haver um personagem com atributos tão profundos, por meio do qual se pode compreender a alma de uma gente ou traduzir uma dada realidade, o mecanismo referido no título acaba sendo um personagem também. Ele ganha um ar de vilão mais que os corruptos que atravessam a trama, que por serem tantos e variados acabam se tornando apenas células desse grande vilão.

Daí a insistência de Ruffo em dizer que se trata de um câncer. E num monólogo de mais de dois minutos, sustentado pela competência de interpretação de Selton Mello, ele diz, ao conversar com a mulher:

“O mecanismo tem o mesmo padrão dos fractais (que a filha autista joga no tablet). É uma coisa infinita. É um modo de funcionamento que se auto-alimenta, e expele, cospe o que não faz parte dele. O mecanismo está em tudo. Do governo federal ao seu João. No macro e no micro. É um padrão”, diz Ruffo.

“O poder econômico e os agentes públicos, eles agem juntos. Os políticos nomeiam as diretorias, que dão as obras para os empreiteiros. Sempre os mesmos. Eles superfaturam e devolvem o dinheiro, parte do orçamento, para os políticos, para os diretores, em forma de propina. É um sistema que se autoperpetua. Da Petrobrasil à Sanesul, da Miller & Brecht ao seu João, do Ibrahim ao Alfredo”, continua o delegado.

“O mecanismo está em tudo. No flanelinha que recicla talão, na carteirinha falsificada pra pagar meia entrada, no suborno pro guarda pra aliviar da multa. E os ricos mais ricos, e os pobres cada vez mais pobres. Não tem partido. Não tem ideologia. Não existe esquerda ou direita. Quem está no governo tem de botar a roda pra girar, é um padrão. Isso elegeu todos os presidentes, até hoje. Quem não adere não vinga. Tudo é o mecanismo”, finaliza.

“E se faz o que com isso?”, pergunta a mulher de Ruffo. “Nada”, responde. Mais tarde, ele ainda completa: “O mecanismo é um câncer. É uma máquina de moer gente. Ele não tem alma, não tem limite, não tem ideologia.” Do modo como é descrito por Ruffo, o mecanismo mais parece a charada do buraco: quanto mais tira mais cresce.