Gismair Martins Teixeira
Myriam Martins Lima
Especial para o Jornal Opção

O pensador francês Jean-Paul Sartre concebia em suas pesquisas filosóficas a imaginação humana como sendo a louca da casa quando relacionada, em termos comparativos, à teoria do conhecimento que se consolidara entre os séculos 19 e 20, que tinha como característica a priorização dos achados científicos do núcleo duro da física como paradigma que pudesse estabelecer as normas para as chamadas ciências humanas.

Sartre, impregnado de uma concepção de cunho algo mecanicista, enxergava assim o vasto campo da imaginação e do imaginário, ambos conexos, como recursos para o conhecimento que já haviam sido ultrapassados no fazer científico da humanidade. Quem dá notícia sobre essa particularidade sartriana em relação ao infindável problema da dicotomia imaginário-imaginação é o pesquisador francês dessa vertente do conhecimento, Gilbert Durand.

Em sua monumental obra As Estruturas Antropológicas do Imaginário, o pesquisador da Universidade de Grenoble traz uma definição bastante abrangente do imaginário para a cultura moderna, definindo-o como sendo “o conjunto de imagens e relações de imagens que compõe o capital pensado do Homo sapiens”. A partir dessa conceituação, apreende-se que o imaginário impregna toda a cultura humana em sua notável extensão.

Cada atividade cultural do gênero humano tem, assim, o seu imaginário próprio. Nesse âmbito, um dos campos mais ricos de exploração do conceito durandiano é, sem dúvida alguma, a literatura. Desde sua mais remota origem até os dias atuais, a literatura se alimenta e retroalimenta das infindáveis relações imagéticas elaboradas e reelaboradas por todos os gênios da arte literária de todos os tempos e lugares, que dialogam entre si pela biblioteca atemporal da intertextualidade.

Ainda conforme Gilbert Durand, o imaginário ilumina praticamente todas as vertentes do saber, entrelaçando-as num vasto conjunto de relações, como a que pode ser estabelecida, por exemplo, entre uma das incontáveis definições do universo da linguística e o campo específico da tradução, ambas pensáveis em termos de seus próprios imaginários. A linguística adota em seus postulados o conceito de fonema, que se define amplamente como sendo a menor unidade sonora capaz de estabelecer significado a um termo do signo linguístico que, por sua vez, divide-se em significante e significado, conforme Ferdinand de Saussure em seu Curso Geral de Linguística, obra que inaugura a disciplina no contexto da contemporaneidade.

Funciona, pois, o fonema como uma espécie de átomo linguístico, que pode transformar de maneira significativa uma palavra, remetendo-a a uma outra relação semântica. Um exemplo bem à mão pode ser observado no par opositivo que se estabelece entre “bomba” e “pomba”, que são remissivos de forma respectiva a “guerra” e “paz”, termos que aliás nomeiam um dos maiores clássicos da literatura universal, tanto em sentido denotativo quanto conotativo, de autoria do russo León Tolstói.

O fonema está para a linguagem assim como o átomo está para a química ou a física

A distinção linguística e semiótica que se estabelece entre esses dois movimentos pendulares da humanidade, que oscilam ao longo dos séculos e milênios como marcadores do impulso destrutivo da humanidade, é estabelecida pela alternância entre os fonemas expressos pelas letras “p” e “b”.

Com essa característica, os exemplos se multiplicam. Ou seja, o fonema está para a linguagem assim como o átomo está para a química ou a física, em que a alternância de um deles ou mesmo uma partícula subatômica altera de maneira significativa a matéria decorrente.

Essa particularidade linguística relacional entre o fonema e o átomo já fora entrevista por pensadores notáveis da filosofia da linguagem e da lógica matemática, como Ludwig Wittgenstein e Bertrand Russell; mas é no filósofo da ciência, Francis Bacon, que ela aparece de maneira precursora em seu tratado sob o título de Novum Organum, onde se registram no aforismo VIII do Livro II as considerações de Bacon acerca da gama informacional possível de ser conseguida a partir das letras do alfabeto em analogia aos átomos que compõem os objetos.

No caso específico das letras – a representação gráfica dos sons, cuja interação é bem estudada por Ferdinand de Saussure em seu Curso Geral de Linguística –, em sua relação com o som, numa interatividade que resulta no fonema, a mínima modificação redunda em portas que se abrem para imaginários diversos, segundo a definição de Durand, estabelecendo nuances culturais significativas que muitas vezes aparecem na prática das traduções. Vale recordar que quem primeiro chamou a atenção para os sinais gráficos das letras e sua importância foi Santo Agostinho, durante as aulas que ministrou para seu filho.

Um estudo de caso representativo dessa ocorrência remissiva à relação fonema-átomos diz respeito a duas traduções distintas para o português brasileiro do romance clássico Os Irmãos Karamazov, do escritor russo Fiódor Dostoiévski.

Na tradução realizada por Paulo Bezerra e publicada pela Editora 34 em 2008, o leitor encontra esse peculiar diálogo entre Ivan Karamazov e ninguém menos que o diabo. A fala reproduzida é do agente infernal, que responde à dúvida de seu interlocutor quanto à descrença de que esteja diante do grande representante do mal:

Versão da obra de Dostoiévski pela Editora 34

– Pois não creias – disse o gentleman com um sorriso afável. – Que fé é essa que se faz por coação? Além disso, em matéria de fé, nenhuma prova ajuda, sobretudo provas materiais. Tomé não acreditou porque assistiu à ressurreição de Cristo, mas porque antes já desejava crer. Vê, por exemplo, os ESPÍRITAS… gosto muito deles… imagina, eles supõem que são úteis à fé porque do outro mundo os diabos lhes mostram os chifres. ‘Isso, alegam, já é uma prova, por assim dizer, material de que o outro mundo existe’. O outro mundo e as provas materiais, ô gente! E, por fim, se está provada a existência do diabo, ainda não se sabe se está provada a existência de Deus. Quero me filiar a uma sociedade idealista, aí vou lhes fazer oposição: ‘realista’, diria, ‘e não materialista, he, he!’.

Em 2013, a Editora Martin Claret lançou a tradução realizada por Herculano Villas-Boas. Com formação em Filosofia e Mestrado e Doutorado na área de Letras, o tradutor atua como docente na USP. O mesmo trecho do inusitado diálogo de Ivan com o diabo é assim traduzido por ele para a edição da Martin Claret:

Edição da Martin Claret para o clássico

De que vale acreditar, sendo obrigado? Aliás, prova alguma poderia ajudar a acreditar, muito menos as provas materiais. Se Tomé acreditou, não foi por ter visto Cristo ressuscitado, mas porque antes disso desejava acreditar. Consideremos, por exemplo, os ESPÍRITOS… Amo muito todos eles… Imagine: eles se acreditam úteis à fé porque, do outro lado, os demônios lhes mostram os chifres. ‘Isto’, eles dizem, ‘já é uma prova, digamos, material, da existência do outro mundo’. O outro mundo e as provas materiais, como assim? Pois a existência do diabo foi estabelecida, resta saber se a de Deus também o foi. Eu queria me inscrever nas listas de uma sociedade de idealistas, só para fazer oposição: eu sou realista, mas não materialista, he-he’!

Em ambas as traduções destacamos as palavras “espíritas” e “espíritos”, que remetem ao problema do imaginário e do fonema, conforme as conceituações apresentadas, além de ser remissivo ainda ao conceito de “autor implícito” do teórico da literatura, Wayne Booth. Isto porque pesquisas como as de Flávio Ricardo Vassoler, que publicou na revista acadêmica RUS, da USP, o artigo “Um diálogo entre Dostoiévski, Agostinho de Hipona e Allan Kardec: uma possível via crucis para a cicatrização do espírito?”, dão conta da relação de Fiódor Dostoiévski com o espiritismo kardecista, cujos fenômenos mediúnicos são interpretados pelo autor russo como sendo de manifestações sobrenaturais diabólicas.

A propósito disso, Os Irmãos Karamazov é obra conhecida por ser um repositório de ortodoxia cristã, o que não impediu que tivesse a admiração incondicional de intelectos como Albert Einstein e Sigmund Freud. A historiadora brasileira, Mary Del Pryore, informa em seu livro Do Outro Lado – A História do Sobrenatural e do Espiritismo que, à época de Dostoiévski, o século 19, a Europa foi invadida por uma onda de fenômenos mediúnicos ou psíquicos. O mundo da literatura se mostrou bastante interessado e sensível em relação à vasta fenomênica. Nomes como Honoré de Balzac, Charles Baudelaire, Victor Hugo e Charles Dickens, por exemplo, travaram conhecimento com a prática que ecoava a fantasmagoria medieva que é noticiada no rico material historiográfico dos franceses Jacques LeGof e Jean-Claude Schmidt, cujas pesquisas reverberam o fantasma do Hamlet shakespeariano.

Na mesma passagem de Os Irmãos Karamazov transcrita aqui, as traduções francesa, inglesa e espanhola referendam a escolha de Paulo Bezerra. Em português, a diferença entre os fonemas representados pelas letras A e O remete a imaginários diversos em suas sutilezas conceituais, embora bastante próximos, congêneres até, como pode ser observado no trabalho de Mary Del Pryore.

A partir desses dados, portanto, parece plausível a inferência de que o tradutor Herculano Villas-Boas tenha se equivocado ao escolher o termo “espíritos” em vez de “espíritas”, sacrificando algo dos pressupostos da coesão e coerência enunciativa dessa significativa passagem de Os Irmãos Karamazov. Enfim, agruras da espinhosa atividade de tradução.

Gismair Martins Teixeira é doutor em Letras pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com pós-doutorado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).

Myriam Martins Lima é bacharel em Biblioteconomia e mestranda em Comunicação pela Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da UFG.