O ikebana poético de Valéria Litvac no livro “Chama: Cor D’Alma”

15 agosto 2021 às 00h00

COMPARTILHAR
O protagonismo da Natureza está presente de modo repaginado no livro de poemas. A obra é uma celebração à natureza, especialmente ao universo imagético das flores
Simone Athayde
Especial para o Jornal Opção
Entre as várias talentosas poetas goianas que realizam seu mister literário quase no anonimato, podemos citar Valéria Litvac, atualmente radicada em São Paulo. Foi lá que, há muitos anos, pôde estudar e aprofundar-se no universo poético com alguns nomes proeminentes da literatura em oficinas de escrita.
Tais estudos, aliados a um olhar aguçado para a realidade que a cerca, fazem com que Valéria seja uma poeta que se utiliza da matéria concreta da natureza para criar poemas que brincam com as palavras, ressignificadas em imagens quase abstratas de grande valor simbólico.
Em “Os Sofrimentos do Jovem Werther” (Penguin/Companhia das Letras, 216 páginas, tradução de Maurício Mendonça Cardozo), obra inaugural do Romantismo, Goethe projeta na Natureza o estado de espírito do personagem principal. Assim, na primeira parte do livro ela é fonte de contentamento e deslumbramento; já na segunda fase, torna-se uma força destruidora a qual ninguém pode deter. Esse protagonismo da Natureza que foi tão característico do movimento romântico está presente de forma repaginada em “Chama: Cor D’Alma”, livro de poemas de Valéria Litvac lançado em 1997. Dividido em quatro partes, a obra é uma celebração à natureza, especialmente ao universo imagético das flores.
A natureza é, juntamente com a própria matéria poética, o centro dessa obra. Ao mesmo tempo ela é espaço, personagem e enredo; os elementos da natureza são personificados e metaforizados, exigindo que o leitor faça uma leitura atenta para desvelar toda riqueza simbólica oferecida pela autora. Tal como no Ikebana, na qual os elementos florais são arranjados seguindo regras de composição próprias dessa arte a fim de se obter efeitos estéticos, esculturais e simbólicos, também em “Chama: Cor D’Alma” a autora construiu seu mundo poético com precisão, racionalmente, sem perder a suavidade e a leveza. Vejamos, por exemplo, o poema “Inércia (Fogo)”:
O poema
vem
nos claros da lua cheia
Na água
que pinga da torneira
No susto da brisa
que acaricia o rosto
com mãos de anjo
Vem
quando estou submersa
E nada escuto
O silêncio
os tons verdes
escrevem
na palma da inércia
O poema

Logo na primeira estrofe ficará claro que a Natureza será a fonte de inspiração do eu-poético (a poeta) e que ela será personificada (“No susto da brisa que acaricia o rosto com mãos de anjo”) para tornar-se, assim, mais do que uma simples paisagem, uma personagem.
No poema “Moldura I” fica claro esse papel dual da Natureza como espaço e personagem poético:
“Rasga-se o véu
neblinado no mistério
do último canto do grilo
A coruja se apruma
no galho
A hóstia ressurge
na paisagem
resta o orvalho”
Interessante perceber que o eu-poético nos convida a ver o anoitecer através de uma janela abstrata em que a lua (a hóstia que ressurge) pode ficar despercebida numa leitura desatenta.
Essa formação de sentidos através de imagens metafóricas é um dos grandes predicados da obra. A autora lança pistas poéticas para a construção de um sentido total por parte do leitor, fugindo, assim, do lugar comum e da resposta pronta, como em “Espumas”:
Buzina o sorveteiro
chora a criança
caranguejo se esconde
Borboleta amarela
surfa ao vento
Borboleteando pranchas
o silêncio da espuma
fenece no rochedo.
Desde o título deste poema, a imagem de uma praia com seus elementos (o sorveteiro, os surfistas, a família) vai se construindo sem que, no entanto, em nenhum momento haja uma alusão direta à praia. Outro bonito poema onde a imagem da chuva caindo se constrói por transposição de sentidos é “Nuvens”:
“A menina brincava
de pega-pega
esconde-esconde
A nuvem que a teceu
desceu por fios d’água
Ficar no céu
perdeu a graça”
A menina aludida no poema pode ser interpretada como uma das tantas imagens que costumamos ver formarem-se nas nuvens. Por fim, essa “menina” se desmancha quando a nuvem que a formou cai como chuva.
Já em “Torrencial”, o que parece tratar-se de um temporal é, na verdade, a dor lancinante de saudade sofrida pelo eu-lírico:
Emerge
rasga
a terra
rompe
pedras
inunda rios
numa torrente
submerge
em mares de ausências
— Onde cabe tanta saudade?
Um poema um tanto diferente destes, mas que também brinca com o universo imagético é “Rotatória”, em que a mudança de perspectiva só pode ser percebida em sua totalidade com a leitura do título e da divisão do poema em duas partes:
Na frente
O nevoeiro
No retrovisor
O nascer do sol
II
Na frente
O nascer do sol
No retrovisor
O nevoeiro
A parte III da obra é dedicada à flora, num tributo mais claro à arte Ikebana. Com poemas bem curtos, que lembram haikais, Valéria constrói arranjos poéticos leves e belos. Na última parte do livro, destaco o poema “Esquina”, no qual a antítese esquerda/direita serve como alegoria para as diferentes opiniões e caminhos existentes no mundo e para a tolerância que deve existir em consequência dessa realidade:
“O meu esquerdo
Pode ser o teu direito
Há esquinas
Para canhotos”
E como um manifesto poético, que demonstra não somente a habilidade de Litvac para a criação de imagens oníricas, mas também para enxergar a poesia enquanto espaço de liberdade e lutas, temos a bela e forte:
“Pausa
Mesmo entre grades
com mãos algemadas
capuz no rosto
O pensamento é livre
como a pipa que dança
no firmamento
ao soltar-se da mão
Mesmo entre grades
com mãos algemadas
capuz no rosto
O desgosto
torna-se cristalino
na magia de tecer
o sofrimento
no agora dos sonhos
A treva
é uma pausa na hora
da aurora próxima”
Simone Athayde, escritora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.