Em “Noé”, Darren Aronofsky insere várias camadas dramáticas por meio de personagens coadjuvantes tornando a clássica história bíblica complexa e subversiva

Russell Crowe, em cena de “Noé”, o novo filme de Darren Aronofsky | Foto: Paramount
Russell Crowe, em cena de “Noé”, o novo filme de Darren Aronofsky | Foto: Paramount

Júlio Pereira
Especial para o Jornal Opção

Existem em “Noé”, de certa forma, dois filmes. O primeiro reconta a histórica bíblica de Noé transformando o personagem num arquétipo de ação e músculos, pronto pra porrada, rígido e destinado. Sendo um verdadeiro seguidor do Criador, recebe uma mensagem para salvar toda a espécie animal e varrer todos os pecadores da terra, recriando um mundo perfeito. Há gigantes de pedra, belas paisagens aéreas, construções digitais monumentais e, no meio disso, um personagem forte e emblemático, poderoso e indestrutível. Nada diferente da cartilha hollywoodiana.

Quando aparecem humanos questionando a moral de Noé, logo sabemos ser muito mais para gerar um conflito, uma luta maniqueísta entre protagonista e antagonista, do que refletir, de fato, sobre a moral de Noé — ou seja, o processo seletivo para entrar na arca. Esse primeiro filme é encerrado com uma sequência de espetáculo visual, bem orquestrada por Darren Aronofsky do ponto de vista geográfico e sequencial. Toda guerra é muito clara, sem rodeios, construída com base em belos efeitos especiais, assim feito o dilúvio. Em suma: infelizmente, nada que surpreenda, considerando sua condição de blockbuster.

E, de repente, aparece um lampejo de esperança. Finalmente, Aronofsky assume a direção. O segundo filme centra-se na família de Noé dentro da barca. Sempre muito cara ao diretor, notamos sua veia religiosa (vide “Pi” e, mais explicitamente, “Fonte da Vida”). Dessa forma, há uma exploração farta dos anseios do protagonista. Do macho-alfa dos filmes de ação para um humano frágil e repleto de aflições. Um Noé obcecado por sua missão divina, personagem típico do universo do diretor, cego por seus desejos, capaz de cometer qualquer ato para chegar a seu objetivo — o que nos remete diretamente a toda filmografia de Darren Aronofsky. Em contrapartida, não há, aqui, o fatalismo mórbido do diretor, tampouco há redenção, já que o protagonista se desvia do seu caminho justamente por um sentimento predominantemente humano: o amor. Importa, pois, é a aceitação pelo próprio personagem por sua condição humana repleta de falhas, errante feito qualquer outro, algo que não é necessariamente ruim, mas contradições inerentes à nossa raça. Nesse sentido, o personagem desta obra se difere em absoluto, por exemplo, do de Natalie Portman em “Cisne Negro”, uma vez que a bailarina era uma vítima irrecuperável de sua ambição. Tratamos, neste caso, de um filme de esperanças religiosas, afinal.

Aronofsky, além disso, toca em temas polêmicos do ponto de vista religioso. Problematiza-se, na obra, a opção de Noé por deixar até mesmo os inocentes sob a ótica cristã morrerem, alegando-se que são todos pecadores. E dá-lhe cenas das pessoas sendo cruelmente mortas pela água, enfatizando quão duvidosa fora a escolha do protagonista. Tor­nando a clássica história mais complexa e, portanto, mais subversiva, o roteiro insere várias camadas dramáticas por meio de personagens coadjuvantes. Por exemplo: o dilema moral dos filhos de Noé, sendo que um deles tem ameaçada a vida da criança que sua esposa carrega no ventre, tal como o outro é impedido de ter um caso amoroso com uma mulher: tensões geradas em decorrência da postura autoritária e intransigente de seu pai, ao passo que o antagonista, embora caricato e descartável narrativamente, é interessante por questionar a ausência de Deus, acreditando numa plena autonomia humana. É evidente, todavia, que o filme se opõe a essa crença, embora questione essa ausência, visto que o personagem responsável por carregar essa carga ideológica é justamente o vilão, o que não é uma opção muito criativa, considerando o autor da obra.

Filmando sempre o rosto obsessivo de Russel Crowe, o diretor não abusa de sua estética. Talvez por seu saudosismo dos épicos hollywoodianos, abandona a dita “montagem hip hop”, na qual intercala várias cenas visualmente sintonizadas, criando um efeito acelerado. Noé não deixa de ser, porém, um filme autoral. É admirável, portanto, que um diretor busque construir uma unidade temática em sua carreira, conseguindo fazer isso prevalecer dentro de um filme absolutamente comercial.

Júlio Pereira é crítico de cinema.