O ambiente do Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa (IDP), aos finais de semana intercalados em Brasília, tem me propiciado uma avalanche de livros e textos digitais para a produção de artigos acadêmicos, que adapto para a coluna. Para esta semana, trago a profunda afirmação que intitula o livro “Eu Só Existo no Olhar do Outro”, da psicanalista Ana Suy e do professor Christian Dunker, que é muito mais do que uma metáfora poética. É uma tese investigativa que mergulha nas fundações movediças do que chamamos de “eu”. Esta ideia, longe de ser apenas uma reflexão contemporânea, encontra sólida fundamentação em pilares do pensamento ocidental, criando um rico diálogo entre as angústias modernas e os clássicos da filosofia e da psicanálise.

A sensação de sermos definidos externamente é articulada com precisão pela filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre, que em O Ser e o Nada resume essa experiência na famosa frase: “O inferno são os outros.” Esta afirmação, frequentemente mal-interpretada, não significa que os outros sejam intrinsicamente maus, mas que é através do olhar do outro que nossa subjetividade livre é coagida a se tornar um objeto. Nos tornamos um “ser-para-o-outro”, capturados em uma definição que nos petrifica. A obra investiga essa angústia sartreana: a luta para afirmar nossa liberdade frente à objetificação imposta pelo outro, reconhecendo, paradoxalmente, que é esse mesmo olhar que nos confere a primeira centelha de autoconsciência.

Para entender como esse mecanismo é internalizado, a obra recorre à psicanálise de Jacques Lacan e sua teoria do “Estádio do Espelho”. Lacan postula que a primeira formação do ego se dá por meio de uma imagem externa. A criança, ainda com uma percepção corporal fragmentada, se reconhece como um todo unificado ao se ver no espelho físico ou, crucialmente, ao se ver refletida no olhar e nas reações de seus cuidadores. Lacan afirma que “o eu se constitui no campo do Outro”, uma ideia com a qual os autores dialogam profundamente, mostrando como, ao longo da vida, continuamos a buscar no “espelho social” uma imagem coerente de quem somos, frequentemente em detrimento de nossa autenticidade mais profunda.

Se Sartre e Lacan revelam a estrutura desse processo, a psicologia social detalha seu funcionamento prático através do conceito do “Self Espelho” (Looking-glass self) de Charles Horton Cooley. Segundo esta perspectiva, nossa autoimagem emerge de um ciclo triplo: imaginamos como aparecemos aos outros, antecipamos seu julgamento e desenvolvemos sentimentos sobre nós mesmos com base nessas percepções. A genialidade da obra de Suy e Dunker está em explorar as dinâmicas de poder e os sofrimentos psíquicos inerentes a esse processo, especialmente para aqueles cujo “olhar do outro” é historicamente um olhar de desprezo, estereótipo ou invisibilidade.

Um exemplo particularmente relevante pode ser encontrado na teoria de Michel Foucault sobre a constituição do sujeito. O filósofo francês demonstra como “o sujeito é constituído através de práticas de subjetivação” – processos sociais nos quais internalizamos normas, valores e formas de ser que nos são apresentadas pelo contexto histórico e cultural. O livro ressoa com essa perspectiva, ilustrando como internalizamos narrativas alheias e como a batalha pela autenticidade é, em grande parte, a batalha para desconstruir esses “scripts” impostos e ressignificar o próprio reflexo.

Na era das redes sociais, essa dinâmica se intensifica dramaticamente. A busca por “likes” e comentários pode ser entendida como uma busca moderna e multiplicada por esse “olhar do outro”, que confirma ou questiona quem somos. A reflexão proposta por Ana Suy e Christian Dunker é, portanto, um convite urgente à tomada de consciência sobre como participamos desse jogo de espelhos.

Em conclusão, “Eu Só Existo no Olhar do Outro” não é apenas um livro sobre psicologia; é um mapa para navegar o território mais complexo: o próprio eu. Os autores oferecem uma reflexão poderosa e acessível, mostrando que, embora sejamos forjados no olhar do outro, nossa liberdade mais profunda reside na coragem de questionar criticamente quais espelhos estamos dispostos a aceitar. A obra nos lembra que a autonomia começa quando compreendemos esse jogo de reflexos e passamos a participar ativamente da criação de quem desejamos nos tornar. Compreender que somos produtos do olhar alheio não é um sinal de fraqueza, mas o primeiro passo para a autonomia: a possibilidade de decidir, conscientemente, quais reflexos merecem definir quem verdadeiramente desejamos ser, encontrando um ponto de equilíbrio entre o reconhecimento necessário e a afirmação singular de si mesmo.