O crítico literário e tradutor Irineu Franco Perpetuo ensina a ler os russos (parte 1)
25 setembro 2022 às 00h00
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Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Início estes escritos com um depoimento pessoal. Lá se vão mais de duas décadas desde que dei os primeiros passos em busca de um olhar mais universal em torno da literatura.
Senti essa necessidade lendo a biografia do nosso escritor maior, Machado de Assis, naquela fase em que ele, um monoglota, necessitava conhecer outros idiomas para ter acesso à leitura dos grandes escritores da literatura mundial.
Autodidata de notável inteligência, nosso maior escritor deixou de ser monoglota ao tornar-se fluente em inglês, francês e espanhol. A partir daí, o “Bruxo do Cosme Velho” leu todos os grandes autores da literatura ocidental: desde o inglês Shakespeare, passando pelo francês Gustave Flaubert, até o espanhol Miguel de Cervantes e o irlandês Laurence Sterne (uma de suas grandes influências e autor de “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”). Toda obra de qualidade que chegava do exterior ao Rio de Janeiro passava pelo crivo do voraz leitor Machado de Assis.
Dois dos mais importantes romances do fundador da Academia Brasileira de Letras — “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” — não teriam existido se Machado não tivesse o domínio dos idiomas que ele se propôs a aprender. O Machado da fase romântica de “Helena” e “A Mão e a Luva” seria um grande escritor regional, mas só passou a ser louvado como escritor universal no momento que seus livros, fomentados por dúvidas como a traição ou não de Capitu (“Dom Casmurro” guarda influência de “Otelo”, de Shakespeare), levasse seus escritos ao patamar dos romances psicológicos.
Motivado pelo mesmo interesse e conforme o exemplo do grande Machado de Assis, este escriba, ancorado num patamar bastante inferior ao do panteão onde se encontra nosso maior escritor, ousou tornar-se fluente nas línguas que lhe possibilitaram ter acesso às grandes obras da literatura universal escritas em inglês, francês e espanhol. A partir daí, este locutor passou a navegar, com mais segurança, nas ondas das literaturas da América Latina, espanhola, francesa e inglesa.
Com a literatura russa sempre mantive um discreto namoro a distância, até o dia que li os romances “Lolita”, de Vladimir Nabokov, “Os Irmãos Karamázov”, de Fiódor Dostoiévski e, incentivado pela minha dileta colega e amiga Marina, do Instituto Bernardo Élis, “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói.
A partir daí, pude aquilatar que o peso dessa literatura equivale ao de outras grandes literaturas: inglesa, francesa e espanhola. E, assim, aquele distante namoro com os escritos dos autores russos se solidificou num noivado com grandes possiblidades de se transformar num casamento, como os que mantenho há décadas, com autores de outras grandes literaturas.
Passada a fase da descoberta materializada em encantamento, recebi de um amigo, professor de literatura da Unicamp, uma sugestão de leitura dos escritos de um livro que, inicialmente, chamou muito minha atenção. Trata-se de “Como Ler os Russos” (Todavia, 300 páginas), do jornalista, crítico literário e tradutor Irineu Franco Perpetuo (mais adiante farei a quem lê este ensaio as devidas apresentações).
Com o livro em mãos, li o índice, a apresentação e as orelhas. Concluída essa rápida investigação, tive a mesma emoção do escritor italiano Umberto Eco ao achar, num pequeno livro de um autor menor da Idade Média, o elo que faltava para concluir seu famoso romance “O Nome da Rosa”. “Eureca! Era isso que me faltava!”, disse ele, emocionado, com a preciosidade que tinha em mãos. E assim eu repeti: “Eureca! Era isso que me faltava”: um livro voltado para estudar outros autores que integram o verdadeiro céu de estrelas que é a rica literatura da Rússia.
O céu cheio de estrelas da literatura russa
O primeiro olhar de um leitor voltado para conhecer a obra dos grandes escritores russos verá duas estrelas brilhando no céu literário daquele imenso país europeu: Liev (ou Lev) Tolstói e Fiódor Dostoiévski. O olhar certeiro deste pesquisador enxergou dois escritores do primeiríssimo time da literatura russa: Tolstói é tido como o maior prosador de seu país, enquanto Dostoiévski é uma unanimidade quanto se trata de julgar os chamados escritores ideológicos. Não é por acaso que esses dois são os mais conhecidos autores russos no exterior — ao lado, quem sabe, de Anton Tchékhov, o contista e dramaturgo. Até aqui, o livro do professor Irineu Franco Perpetuo não acrescenta muito às descobertas deste neófito pesquisador.
“Como Ler os Russos” começa a fazer a diferença no momento que este leitor começa a tomar ciência de uma verdadeira legião de escritores não tão conhecidos no exterior como os autor de “Irmãos Karamázov” e “Guerra Paz”, mas, no âmbito interno da Rússia, colocados praticamente no mesmo patamar de importância de Dostoiévski e Tolstói. A partir dessa constatação, este pesquisador começa a perceber que o céu literário russo é repleto de estrelas de primeira grandeza. A restrição de espaço nos obriga a escolher um número limitadíssimo de grandes autores russos com assento certo entre os nomes mais representativos da literatura mundial. Pedindo desculpas aos inúmeros escritores que ficaram de fora, ater-me-ei a quatro outras estrelas da mesma grandeza: Aleksandr Púchkin, Nikolai Gógol, Ivan Turguêniev e Tchékhov. Posto isso, façamos um breve comentário a respeito da performance de cada um deles.
Púchkin, o Euclides da Cunha russo
Embora Púchkin seja menos conhecido no exterior que Dostoiévski e Tolstói, é aclamado, em prosa e verso, pelos seus compatriotas, como o maior literato da Rússia. É o pai da literatura russa moderna. Só para se ter ideia da importância dele para a literatura do seu país, Irineu Franco Perpetuo estabeleceu a comparação da estatura desse autor com outros grandes escritores de diferentes países com expressiva tradição literária.
Desse modo, enfatiza, o autor de “Como Ler os Russos”, que, sem qualquer exagero, “se os ingleses têm Shakespeare; os italianos, Dante; os alemães, Goethe; os espanhóis, Cervantes; os portugueses, Camões; os russos têm Púchkin (seu romance em versos, “Eugênio Onêguin”, foi traduzido, diretamente do russo, por Alípio Correia de França Neto e Elena Vássina. Foi editado pela Ateliê Editorial, do goiano Plinio Martins Filho, professor da USP e diretor da Edusp).
Nos tempos que Pedro I, o Grande, implementou reformas na Rússia procurando, assim, europeizar o país, o idioma russo foi preterido pelo francês, dessa forma, estabelecendo-se uma segmentação entre a língua materna do país, falada pelo povo, o russo, e o francês falado pelas elites do país. Nesse contexto, Púchkin ambientou suas obras enfatizando folclorismos, dialetismos que, posteriormente, foram incorporados oficialmente à língua escrita da Rússia.
Diferente de seus dois ilustres compatriotas, Púchkin é, antes de tudo, um autor popular voltado para entender a alma de seu povo. Produziu verdadeiras preciosidades literárias de fundamental importância para compreender a uma Rússia vista de baixo, ou seja, a Rússia de um povo sofrido, mas que se apoia na literatura de seu país a fim de entender a si mesmo para assim viver melhor.
Dentre os trabalhos mais relevantes desse grande intelectual, destacam-se o romance em versos “Eugênio Onêguin”, “O Cavaleiro de Bronze” e “A Dama de Espadas” (Editora 34, 285 páginas, tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher). As poucas traduções para o português das obras desse autor se devem ao fato de ele se expressar numa forma literária de difícil tradução para língua portuguesa — a poesia. Essa dificuldade se eleva, consideravelmente, devido a uma característica muito peculiar das poesias de Púchkin: elas não contêm metáforas. Tem-se a sensação de que os versos, elaborados meticulosamente pelo autor, deslizem “no cristal da língua russa”.
Infelizmente, Púchkin morreu de forma muito semelhante à de um dos nossos maiores escritores, Euclides da Cunha. Assim como o autor de “Os Sertões”, o autor de “A Filha do Capirão” se viu obrigado a desafiar, para um duelo, um possível amante da sua linda mulher. Nesse duelo foi gravemente ferido, vindo a falecer dois dias depois, aos 37 anos.
O talento do grande Tchaikóvski transformou a obra-prima de Púchkin, o romance “Eugene Onêguin”, na mais popular ópera russa.
Nikolai Gógol, autor de “Almas Mortas”
“Ele é o maior escritor russo”, assim era considerado um respeitável membro do seleto grupo de grandes escritores da Rússia — Nikolai Gógol (um dos ídolos literários de Nabokov). Na verdade, o autor, tido como um nome de relevância na literatura russa, não nasceu russo, mas sim na Ucrânia. Suas obras influenciaram diretamente nos escritos de outro monstro sagrado da intelectualidade do país do bailarino Rudolf Nureyev — Fiódor Dostoiévski. O autor de “Crime e Castigo” sempre enfatizou, em seus escritos, a importância desse enorme escritor nas obras da grande maioria dos escritores de primeira linha do país de Tolstói. “Todos viemos do ‘Capote’ de Gógol”, assim referencia o autor de “Os Irmãos Karamázov”, outra grande estrela do céu repleto de estrelas da literatura russa: Nikolai Gógol. Falemos um pouco dele. (“O Capote” saiu no Brasil pela Editora 34, com tradução de Paulo Bezerra.)
Nikolai Gógol, assim como Púchkin, teve uma vida breve e altamente produtiva. Faleceu pouco antes de completar 43 anos. Suas frequentes crises de depressão e misticismo religioso não impediram de ser o que em vida foi: um grande escritor que revolucionou ao ponto de extinguir a mania de escrever e ler versos. O ucraniano Gógol é considerado uma estrela da literatura russa por ter escrito suas obras nesse idioma. Por essa razão, ele contribui ativamente para elevar a literatura russa ao patamar da universalidade.
No Brasil, Gógol é o primeiro notável escritor russo a ter marcante presença na vida cultural brasileira. Suas principais obras traduzidas para o português são encontradas com facilidade no mercado comercial. Vale ressaltar que seu livro “O Inspetor Geral” se tornou um grande sucesso teatral entre nós. E há, claro, o romance “Almas Mortas” (Editora 34, 432 páginas, tradução de Rubens Figueiredo).
Gógol deixou para a posterioridade inúmeras obras de enorme sucesso. Dentre as principais, citam-se: “Serões numa granja perto de Dikanka”, “Diário de um Louco”, “Arabescos”, e outras.
Ivan Turguêniev, autor de “Pais e Filhos”
Ivan Turguêniev tem seu lugar garantido no céu de estrelas da literatura russa. No entender de Irineu Franco Perpetuo, poucos dos pares russos de seu tempo puderam rivalizar com ele no refinamento e no apuro estilístico. O caminho desse erudito autor rumo ao estrelado passou por uma rígida formação em filosofia na melhor universidade russa, a de São Petersburgo. Já filósofo, ele migrou à Alemanha para se aperfeiçoar na Universidade de Berlim. Lá ele foi aluno de um notável professor chamado Hegel (detalhe: Hegel também foi reitor dessa universidade).
Os anos vividos na Europa (Alemanha e França) foram decisivos para consolidar a visão ocidentalizada desse autor, que se tornou, em terras europeias, o maior divulgador da cultura de seu país (ele foi amigo, por exemplo, do escritor americano Henry James). Em seus escritos, o autor procura diferenciar o estilo de Turguêniev de seus pares mais ilustres, Tolstói e Dostoiévski. “Suas coisas perfeitas são às vezes as menos prolongadas”, disse ele. Portanto, Turguêniev, quanto à concisão da escrita, está mais próximo de Kafka do que de autores dos calhamaços “Irmãos Karamázov” e “Guerra e Paz”.
Ivan Turguêniev é um autor reconhecido, internacionalmente, pelas relevantes obras que produziu para a literatura mundial. Seu romance “Pais e Filhos”, de extraordinário valor literário, é a prova mais cabível de que um grande escritor é capaz de elevar a literatura ao patamar supremo da arte.
Ao avaliar esse romance, Irineu Franco Perpetuo ousa afirmar que, em certos momentos, o autor de “Pais e Filhos” (Companhia das Letras, 344 páginas, tradução de Rubens Figueiredo) chega a superar os dois monstros sagrados da literatura russa, Liev Tolstói e Fiódor Dostoiévski. Quanto a isso, Irineu Franco Perpetuo enfatiza: “É no final de ‘Pais e Filhos’ que Turguêniev atinge seu ponto culminante enquanto artista. As últimas 25 páginas são de grandeza e intensidade incomparáveis, dignas de Tolstói e Dostoiévski e, em alguns aspectos, essencialmente em sua mescla de força trágica e doçura silenciosa, superior a eles”.
O extraordinário talento desse escritor se fez presente em outras obras de relevante importância para a literatura mundial. Veja-se uma pequena amostra dos trabalhos desse autor expressos nos vários gêneros literários. Seja em prosa (“Rudin” e “Terras Virgens”), seja em contos (“O Diário de um Homem Supérfluo”, “O Relógio”), seja em novelas (“A História do Padre Alexei”), seja em peças teatrais (“O Comensal”, “Imprudência”) ou em poesia (“O Brigadeiro”), Ivan Turguêniev é uma das estrelas mais brilhantes a habitar o imenso céu de estrelas da literatura russa.
Anton Tchékhov, contista e dramaturgo
Anton Tchékhov é outro grande escritor que brilha intensamente no céu de estrelas da literatura russa. Oriundo de uma família humilde, esse talentoso autor, sem a condição financeira de alguns de seus pares, tornou-se médico sem abandonar sua paixão pela escrita. Para ele, “a medicina é minha esposa legítima e a literatura é minha amante”.
No entender de outro grande nome, Nabokov, “Anton Tchékhov e Púchkin são os escritores mais puros que a Rússia produziu em termos da harmonia completa que seus escritos transmitem”.
Sua forma concisa de enxergar o texto literário refletia o estilo de um autor, assim como Kafka, produtor de verdadeiras obras-primas de forma bastante concisa. O trabalho mais volumoso desse escritor foi “A Ilha de Sacalina” (Todavia, 464 páginas, tradução de Rubens Figueiredo), um assombroso e preciso relato de sua viagem à ilha-prisão no extremo Oriente. Vale ressaltar que esses escritos se enquadram na fronteira do ensaio, da reportagem e do relato científico.
Há uma excelente coletânea dos contos de Tchékhov — “A Dama do Cachorrinho” (Editora 34, 368 páginas, tradução de Boris Schnaiderman).
O legado literário deixado por esse extraordinário autor é extenso, dentre seus principais trabalhos, citam-se mais de 180 contos, inúmeras novelas e grandes peças teatrais apresentadas nos quatro cantos do mundo.
As peças “A Gaivota”, “Tio Vânia”, “Três Irmãs” e “O Jardim das Cerejeiras” foram traduzidas por Rubens Figueiredo e publicadas no livro “Quatro Peças” (Companhia das letras, 368 páginas). A Rússia, na qual as obras de Anton Tchékhov foram concebidas, vivia momentos de descrença geral nas utopias.
As inovadoras peças desse autor mudaram completamente a forma como eram apresentadas. Antes, essas eram declamadas. E, de forma absolutamente inovadora, elas passaram a ter uma abordagem psicológica, delicada e sutil.
A primeira peça de Anton Tchékhov apresentada no Brasil foi em 1946, na Faculdade de Direito de Recife. Um fato curioso ocorrido quando a peça “Três Irmãs” foi apresentada, em 1972, no teatro oficina de São Paulo é que houve divergências entre o diretor Zé Celso Martinez e Renato Borghi. Por conseguinte, a peça veio a contribuir para o rompimento entre esses dois conhecidos homens de teatro.
Encerro este breve resumo sobre as obras desse grande escritor relatando uma atitude dele que espelha o seu caráter. Ao ser convidado para integrar a seleta e prestigiada Academia Russa de Ciências, Tchékhov recusou o convite por não concordar com a expulsão de outro grande intelectual russo, Maksim Górki, que fora acusado de incentivar práticas revolucionárias.