Novo romance de Leonardo Valente resgata Essencialismo de obra de Ismael Nery
20 junho 2021 às 00h00
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Por Rodrigo Casarin*
“ainda sobre mentira, todo mundo adora meu penne ao funghi, dizem que é um dos pratos que mais revela meus dotes culinários por conta do sabor do molho. há, contudo, uma grande mentira nele. algo de falso e artificial que não estou preparada para revelar, nem mesmo para mim. aquilo que não conto ainda não sou eu, e prefiro manter em meu consciente a história perfeitamente crível e aceitável de que sou bom cozinheiro”.
Não, não há nenhum erro de digitação no parágrafo anterior. Quem narra “criogenia de D.” é um brasileiro ou uma brasileira, daí que ora lemos a pessoa dizer não estar “preparada” para revelar algo sobre sua receita, ora vemos se apresentar como bom “cozinheiro”. É pouco ou nada confiável o universo construído por Leonardo Valente em seu novo romance, que sai pela Mondrongo. O que há na narrativa é uma farsa explicitada com todas as letras, uma ambiguidade apodítica ou uma desconfiança permanente sobre o que está escrito. Ali, tudo é tão incerto quanto nosso mundo, onde a noção de realidade se dilui e se perde num emaranhado de fake news e invenções.
Quem constrói o jogo de muitas sombras de “criogenia de D.” sabe que “desnudar-me, na verdade, é tornar-me ilegível”. Na narrativa, o leitor encontra uma pessoa que enche as páginas para desabafar sobre antigos maridos, predileções sexuais pouco ortodoxas – e que já fizeram o presidente da República passar vergonha em redes sociais – e escarafunchar a própria relação com o amor. D., a forma como essa personagem se apresenta, também se debate contra certa culpa cristã e assimila boa parte do mundo a partir da boa cozinha. “casei-me apenas com crèmes brulées, profiteroles e tiramisus. a exceção é o quinto, nem farto, nem sofisticado, só será cardápio gourmet após a despedida”.
De cara, a referência mais óbvia para este novo romance de Valente é Hilda Hilst e o seu “A Obscena Senhora D”, um dos trabalhos mais importantes da escritora. Se Hilda está no imaginário e no explicitar de certas questões, logo toques de Clarice Lispector também se mostram presentes na narrativa carregada de introspecção. No entanto, é mesmo o russo Liev Tolstói e o seu clássico “Anna Karenina”, especialmente a tão trágica quanto clássica cena do trem, que se faz presente ao longo de toda a história.
Em “criogenia de D.”, Valente cria um jogo de verdades e mentiras – ou de verdades e verdades, ou de mentiras e mentiras – e estabelece uma dinâmica com a própria ideia do objeto livro. Do epílogo deslocado para o início da narrativa ao modo livre como lida com as letras maiúsculas, constrói um universo no qual os recursos gráficos ajudam a contar a história. A escrita fragmentada que deixa páginas quase inteiras em branco, as mudanças no tamanho do corpo da fonte e as autoedições fazem parte dessa ficção sobre ficções.
Três perguntas para Leonardo Valente
RODRIGO CASARIN. Pouco ou nada é confiável em “criogenia de D.”. De forma parecida, muito pouco ou quase nada é confiável num mundo cheio de mentiras que se espalham com imensa facilidade por aí. Como você lida com essa dificuldade de tentar captar o que é, de fato, real e o que é pura invenção?
LEONARDO VALENTE. D. pretende se fazer entender, e entender-se, em essência. Desnudar-se completamente pela palavra, e abrir as entranhas exige um exercício para muito além de uma narrativa factual, requer metáfora, símbolo. A realidade por vezes é tão dolorosa de ser compreendida, assimilada, que por instinto de sobrevivência recorremos aos símbolos, aos códigos. Os sonhos, não raro, nos chegam dessa forma, querem tocar em pontos que doem, querem alertar para temas importantes dentro de nós, mas só conseguem quando nos contam outras histórias, muitas vezes desconexas, aparentemente sem sentido. Viver a experiência humana é aprender a traduzir. Esta é uma pergunta interessante, pois realmente vivemos tempos em que verdade e mentira, fake e news se misturam, se confundem e provocam consequências nefastas para a sociedade. Mas, e dentro de nós, o que é verdade e o que é mentira? A contradição, a oscilação e o sentimento como um bicho solto talvez sejam o que há de mais verdadeiro dentro de nós em tempos que exigem constantemente a construção de fachadas. Neste sentido, só vejo verdades em D., verdades que não raro me atropelam como a locomotiva que a estraçalha todos os dias. Aliás, como afirmar que aquele trem, o mesmo que matou Anna e eternizou sua vingança contra Bibikov no romance de Tolstói não é um trem verdadeiro para D.? Morrer na ficção não é também uma forma de morte? Todo o romance é conduzido pelos trilhos desse trem da vingança de Karenina, e que virou a vingança de D. Os trilhos não são a fronteira entre verdade e mentira, nem mesmo entre realidade e ficção, mas entre o conhecido e o desconhecido de todos nós, o traduzível em palavras e o não traduzível, o que precisa de metáforas e alegorias. Essa locomotiva, portanto, é tão verdadeira quanto qualquer outra, ela atropela e esmaga quem não sai da sua frente, ou quem tenta atravessar esses trilhos, essa fronteira, sem olhar para ela.
RODRIGO CASARIN. Com o passar da narrativa, diversos personagens vão sendo nomeados como Damião. Damião, então, se transforma numa espécie de caleidoscópio de personalidades. Por que você decidiu utilizar esse recurso e por que a escolha do nome, que não me parece aleatória?
LEONARDO VALENTE. Diversos personagens que, sob outra perspectiva, são apenas um. Este é um livro repleto e ao mesmo tempo vazio de personagens, cheio de histórias que envolvem outros e outras, mas que na verdade dizem respeito ao universo de um único ser que carrega em suas costas os dilemas e dramas de nossa contemporaneidade. Quem D. amou? Com quem viveu? De quem se separou? Amamos um outro como ele é, um espelho ou um complemento? Relacionamo-nos com alguém ou com o que projetamos? Damião significa domador, vencedor, aquele que subjuga. Damião começa com D, uma das letras mais simbólicas da língua portuguesa em meu imaginário, de Deus e de Diabo, de doação, de dor, e também de D.
RODRIGO CASARIN. O livro joga muito com a ideia do próprio livro materializado: espaçamentos, tamanhos de corpos de fontes, deslocamento do epílogo… tudo isso faz parte de “criogenia de D.”. Quanto esses artifícios impactam ou ajudam a compor a narrativa em si?
LEONARDO VALENTE. Uma história escrita é inseparável de seu meio físico, está presa não apenas por letras, palavras e pontos, mas por papel, tinta ou por pixels. Se os sentidos extravasam, e essa é a magia do texto, o físico chama de volta, atrai os olhos, provoca reações, o que também é uma forma de produção de sentido. Isso está longe de ser uma ideia nova, o que dizer dos modernistas e pós-modernistas?, mas muitas vezes nos esquecemos de usá-la, seja por esquecimento real ou por estarmos presos a tendências e modismos, deixamos de aproveitar de forma intensa esses recursos, nos preocupamos muitas vezes em preencher páginas com textos sequenciais, quando o branco da folha, naquele momento específico, pode dizer muito mais. Queremos explicar, explicar, contar, contar, e às vezes o que pretendemos passar exige algo bem mais simples. A proposta de D., sua vingança, era converter-se em escrita e em livro, congelar-se em páginas, e isso exigiu de mim esse esforço de não me prender apenas a um modelo convencional de montagem das palavras, da esquerda para a direita, de cima para baixo, D. não se explica em uma reta, é um circuito oval, como acredito ser a vida.
Sobre o autor:
Leonardo Valente nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, em 1974. Tem três romances e uma antologia publicados, entre eles “Apoteose” (Mondrongo, 2018), “O beijo da Pombagira” (Mondrongo, 2019), finalista do Prêmio Rio de Literatura, e “Calote” (Mondrongo 2020). Em 2017, foi um dos vencedores do Prêmio José de Alencar de melhor romance, da União Brasileira de Escritores, com um original ainda inédito. É um dos organizadores da coletânea “Antifascistas” (Mondrongo, 2020), que reuniu alguns dos mais importantes nomes da literatura lusófona, e tem textos ficcionais em diversas publicações. Jornalista e doutor em Ciência Política, é professor de Relações Internacionais da UFRJ.