Nise da Silveira, a incrível e pioneira psiquiatra brasileira
18 julho 2021 às 00h00
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Ligada ao psiquiatra suíço Jung, a médica brasileira aliou coragem à humanidade ao se condoer da dor do outro. Merece ser mais lembrada por seu país
Simone Athayde
Especial para o Jornal Opção
Quando se fala em grandes personalidades brasileiras, há um desafio a ser vencido: o de procurar, escondidas nas redes da cultura machista, nomes de mulheres que tiveram atuações significativas em suas áreas de atuação ou mudaram paradigmas. De certa forma, a literatura e o cinema biográficos podem ajudar nesse trabalho arqueológico ao mostrar ao público algumas dessas mulheres e suas obras que merecem ser lembradas e ovacionadas. No filme “Nise — O Coração da Loucura”, lançado em 2015 e dirigido por Roberto Berliner, está retratada de forma competente parte da trajetória da psiquiatra alagoana Nise da Silveira em seu papel revolucionário no tratamento de pacientes esquizofrênicos. O filme foi resultado de muitas pesquisas e baseado no livro “Nise — Arqueóloga dos Mares” (E + A, 400 páginas), de Bernardo Carneiro Horta.
Nise da Silveira nasceu em Maceió em 1905 e morreu no Rio de Janeiro em 1999. Filha de um jornalista e de uma pianista, desde jovem iria mostrar determinação e coragem, começando por ser pioneira ao cursar a Faculdade de Medicina da Bahia como única mulher entre 157 homens, sendo também uma das primeiras mulheres no Brasil a se formar médica. Casou-se com um colega de faculdade, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, com quem viveu até a morte dele. O casal, altruísta e apaixonado pelo trabalho, entrou em acordo sobre não ter filhos para se dedicar totalmente à profissão.
Após o falecimento dos seus pais, Nise se muda com o marido para o Rio de Janeiro, onde teriam mais oportunidades de trabalho. Atuantes na questão social, Mário publicava artigos onde apontava as relações entre pobreza, desigualdade e saúde no Brasil, enquanto Nise cursava a especialização em psiquiatria, além de participar do meio artístico e de se interessar pelas relações entre a arte e a área médica. Nos anos 30, milita no Partido Comunista Brasileiro. Logo após terminar sua especialização, é aprovada em concurso e começa a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha, mas durante a Intentona Comunista (1935) é denunciada por uma enfermeira pela posse de livros marxistas, o que a leva à prisão em 1936 pelo período de 18 meses. No mesmo lugar também se encontrava preso o escritor Graciliano Ramos, que cita Nise em seu clássico “Memórias do Cárcere” (Record, 686 páginas): “Lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-se culta e boa. Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a recusar-se a tomar espaço”.
O sofrimento da prisão serviu para aperfeiçoar em Nise as profundas convicções humanitárias que levou para o seu trabalho, conforme ela mesmo disse: “Porque passei pela prisão, eu compreendo as pessoas e os animais que estão doentes, pobres, que sofrem. Eu me identifico com eles”.
Por razões políticas, Nise tem que permanecer afastada do serviço público até 1944, quando é reintegrada e inicia seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Ali ela passa a ser uma voz discordante da dos colegas psiquiatras, por ser contra técnicas agressivas aos pacientes, como eletrochoques, lobotomias e tratamentos vexatórios. Por isso, é transferida para o trabalho com terapia ocupacional, atividade menosprezada, numa ala abandonada e sem recursos daquela instituição.
Com seu espírito aguerrido, Nise funda a Seção de Terapêutica Ocupacional e cria ali um ateliê no qual, através dos pincéis, tintas, argila, além de música e teatro, os esquizofrênicos podiam expressar estados do inconsciente. O trabalho de Nise mostrou-se então revolucionário à medida que os pacientes, que chegavam sem nenhuma capacidade afetiva ou comunicativa e que só desenhavam rabiscos, passavam, com a arteterapia, a se tornarem mais calmos e produtivos, conseguindo pintar e modelar formas de muita beleza e ricas em simbolismos.
Nise também percebeu o valor da interação entre os doentes e animais domésticos que apareciam na ala psiquiátrica. O convívio com os bichos acalmava os pacientes que se tornavam seus tutores, sendo capazes de alimentá-los e cuidar deles, a ponto de Nise chocar a classe médica ao dizer que os animais eram seus co-terapeutas.
Em 1952, ela fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, um centro de estudo e pesquisa que funciona até hoje e é destinado à preservação dos trabalhos produzidos nos estúdios de modelagem e pintura que criou na instituição. O acervo inspirou a escrita de um de seus livros: “Imagens do Inconsciente” (Vozes, 344 páginas). Incansável, em 1956 fundou a Casa das Palmeiras, uma clínica voltada à reabilitação de antigos pacientes de instituições psiquiátricas. O local foi concebido para que eles expressassem livremente sua criatividade, numa etapa intermediária entre a internação e a reintegração à vida em sociedade.
Ao observar que havia uma transição recorrente nos trabalhos artísticos dos doentes que passava dos rabiscos ao desenho de mandalas, Nise escreveu uma carta ao psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961), que a respondeu, iniciando assim uma profícua troca de correspondências e de experiências profissionais. Nise estudou no Instituto Carl Jung, na Suíça, e divulgou a psicologia junguiana no Brasil. Também escreveu o livro “Jung — Vida e Obra” (Paz e Terra, 200 páginas). Outra realização de Nise, apoiada pelo famoso psiquiatra, foi a exposição A Arte e a Esquizofrenia — que ocupou cinco salas no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique, no ano de 1957.
No filme “Nise — O Coração da Loucura”, a psiquiatra é interpretada de forma magistral por Glória Pires. A atriz consegue imprimir à personagem a força, o desprendimento e a coragem que ela tinha, mesclada com a humanidade e a sensibilidade para se condoer da dor do outro. É bem apresentada a forma como a médica enfrentou, sem desistir e sem abaixar a cabeça, os preconceitos, as sabotagens e a violência institucional. Alguns atores que fazem o papel dos doentes são conhecidos, como Fabrício Boliveira e Flávio Bauraqui, e outros nem tanto, mas, no geral, o elenco convence ao mostrar as dores emocionais e físicas vivenciadas pelas pessoas que sofrem com seus delírios, alucinações e a incapacidade para se adaptar a um mundo dito como normal. A película ganhou o prêmio de melhor filme e de melhor atriz no Festival de Tóquio de 2015 e de melhor filme pelo Júri popular no Festival do Rio do mesmo ano.
Três dos artistas-pacientes revelados no trabalho de Nise: Adelina Gomes, Fernando Diniz e Octávio Ignácio podem ter suas obras visualizadas no site do Museu do Inconsciente através do link: https://www.mii.org.br/apresentacao.
Após serem tratados por Nise, esses artistas, antes estigmatizados, foram capazes de criar obras de valor estético e de ter uma vida pacata e bastante produtiva. Otávio Ignácio, por exemplo, produziu mais de 30.000 mil obras, entre desenhos, xilogravuras e esculturas. Vale a pena observar o uso das cores, a originalidade dos traços e refletir sobre o mistério que é como tanto talento pode ficar escondido nos recônditos de uma mente vista como disfuncional.
O trabalho e as ideias de Nise inspiraram a criação de museus, centros culturais e instituições terapêuticas em diversos lugares do Brasil e no exterior. Ainda em vida Nise foi agraciada, reconhecida e premiada. Em 2015, foi incluída na lista das Grandes mulheres que marcaram a história do Rio. Apesar disso, seu nome é pouco lembrado fora do círculo psiquiátrico, o que é uma pena, pois um espírito corajoso, empático e realizador como o dela merecia ser mais conhecido.
Frases de Nise da Silveira
1 — Criatividade
“Todo mundo deve inventar alguma coisa, a criatividade reúne em si várias funções psicológicas importantes para a reestruturação da psique. O que cura, fundamentalmente, é o estímulo à criatividade.”
2 — Indignação
“É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade.”
3 — Fúria
“Há no meu temperamento essa fúria. Quando eu quero uma coisa, eu insisto. Todo o dia, sem falta, eu levantava cedo, pegava o ônibus e ia trabalhar em Engenho de Dentro. Todo dia, todo dia… Nada me tirava daquele caminho.”
4 — Gato
“Desprezo as pessoas que se julgam superiores aos animais. Os animais têm a sabedoria da natureza. Eu gostaria de ser como o gato: quando não se quer saber de uma pessoa, levanta a cauda e sai. Não tem papo.”
Simone Athayde, escritora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.