“Às mulheres ensinam a amar ao próximo, mas nunca a si próprias. As mulheres deveriam ser mais amigas, mais solidárias. Somos a maioria, a força está do nosso lado”

Simone Athayde

Paulina Chiziane, escritora moçambicana vencedora do Camões de 2021, maior prêmio literário em Língua Portuguesa, já pensou em desistir da escrita por não receber o devido reconhecimento do seu trabalho. Ao ler “Niketche — Uma História de Poligamia”, lançado em 2003, compreendi a decepção da autora por esse reconhecimento que só veio agora, pois essa obra é primorosa, rica, envolvente e fala de forma profunda sobre a condição da mulher negra e africana.

A narradora da história é Rami, uma jovem senhora casada, mãe de quatro filhos, que lida com um esposo infiel e ausente, que ela chama carinhosamente de “meu Tony”. Na primeira cena do livro nos deparamos com um problema doméstico envolvendo um dos filhos, e ficamos sabendo que a figura do homem, na percepção da personagem, faz muita falta na estrutura de um lar. “Mas onde anda o meu Tony que não vejo desde sexta-feira? Onde anda esse homem que me deixa os filhos e a casa e não dá um sinal de vida? Um marido em casa é segurança, é proteção. Na presença de um marido, os ladrões se afastam. Os homens respeitam”.

Com o andamento da leitura, vamos entrando na história da poligamia não oficial de seu marido, que segue arrumando amantes cada vez mais jovens, deixando-as com filhos, com a solidão e praticamente na miséria. Rami resolve conhecer as mulheres que estão “roubando” seu marido, e é nessa empreitada e a partir das consequências dela que todo o enredo vai se desenrolar. Nós, leitores, passamos a descobrir os submundos das relações de poder entre homens e mulheres, nas quais estas são as que sofrem os abusos, os preconceitos, as sobrecargas e o abandono. Também adentramos uma cultura diferente, com suas superstições, seus dogmas, suas tradições seculares, que podem parecer, aos olhos ocidentais, anacrônicas, exóticas e brutais. Percebemos que mesmo com tantas particularidades culturais, o lugar que a mulher ocupa nessa sociedade é parecida com a de outras culturas pelo mundo afora, e o sofrimento que as africanas carregam se repete em outras regiões, o que faz com que a temática de Niketche seja universal e propícia a reflexões.

Os homens representados na obra detêm todos os direitos e regalias: as melhores carnes, ser servido de joelhos pela esposa, o adultério, o direito de espancar a companheira, apelidada de “tambor”. Rami, como mulher submissa, criada para servir, na tentativa de salvar seu casamento aceita as amantes como esposas legitimadas de seu marido, criando assim uma reviravolta na vida dele e do núcleo familiar. A propósito, o título do livro se refere a uma dança cerimonial feita para seduzir os homens e será um divisor de águas na história da protagonista. As amantes, ora adversárias ferrenhas, ora confidentes, vão ser ajudadas por Rami ao mesmo tempo em que demonstrarão a ela o papel de menos valia que ela tem na vida de seu adorado esposo. As consequências dessas revelações podem levar a dois caminhos: a aceitação do papel de submissão ao qual ela parece não ter como fugir, ou a vingança.

Paulina Chiziane: uma das mais importantes escritoras de Moçambique | Foto: Reprodução

Do ponto de vista da elaboração estilística da obra, podemos considerar que Paulina a constrói como uma prosa poética, na qual as metáforas são a figura de linguagem predominante. O paralelismo (repetições de palavras ou expressões) também traz essa configuração poética à escrita da autora: “Choro. Por mim. Pelos milhões de mulheres que vagueiam náufragas na lixeira da vida. Quem carrega no ventre os mistérios da criação e as sementes da eternidade, para dar luz à vida e iluminar a cegueira do mundo? Somos nós, mulheres, somos nós! Quem dá o conforto ao mundo? Somos nós. Quem faz os machos sentirem-se mais machos, vestirem as plumas da glória e vencerem todos os combates? Somos nós. Quem amacia a alma com flor, depois de um dia de labor? Somos nós.”

Mesmo os diálogos nos parecem poéticos, o que não tira a verossimilhança da obra, mas tornam-se marca de estilo. Destaque para o capítulo 35, no qual Rami se encontra com Lu, uma das amantes do marido, e elas têm uma longa conversa na qual há um belo apanhado do que é ser mulher num mundo machista e no qual o machismo estrutural também é mantido pelas próprias mulheres: “Aos homens ensinam a amar a si mesmos e só depois amar ao próximo. Às mulheres ensinam a amar ao próximo, mas nunca amarem-se a si próprias. […] As mulheres deveriam ser mais amigas, mais solidárias. Somos a maioria, a força está do nosso lado. Se juntarmos as mãos podemos transformar o mundo.”

Apesar do tema espinhoso, há elementos de humor e ironia na obra, o que lhe confere leveza enquanto trata de expor esses dramas humanos. Veja por exemplo esse trecho no qual a narradora reflete sobre a diferença entre os sexos: “Penso: quem inventou a moda feminina foi um homem, só pode ser. Inventou sapatos de salto alto para que a mulher não corra, e não lhe fuja do controle. Se pensasse nela, teria inventado botas e mocassins, sapatos do tamanho do chão, para ela poder caminhar, correr e caçar o sustento, como as amazonas. Inventou as saias apertadas para obrigar a mulher a manter as pernas fechadas, coladas. […] Em pleno século vinte e um, os homens vestem-nos as armaduras do tempo de Dom Quixote e dizem que estamos belas. Calcinha. Cinta. Soutien. Meia de vidro. Meia calça. Saia. Blusa[…] lenço. Cachecol. Colares. Brincos. Pulseiras. Anéis. […]E os homens? Só cuecas, calça e camisa. Livres para saltar, correr e caçar. Que diferença, meu Deus!

A narradora é uma espécie de contadora de histórias. O leitor é seu confidente, mas nem a ele Rami contará tudo, pois fica-se com a sensação de que nem tudo o que ela relata é realmente o que pensa. Por assumir esse papel de contadora de histórias, ficaremos sabendo através dela de dramas de outras mulheres vítimas da violência, e dos opressores que se revezam no poder, sempre deixando suas marcas de abuso. E costuradas nos relatos da protagonista e das outras personagens, estão as críticas e denúncias a essas tantas e diferentes formas de violências, especialmente contra os negros: “Respiro um ar amargo. A corda rebenta sempre do lado mais fraco. É o ciclo da subordinação. O branco diz ao preto: a culpa é tua. O rico diz ao pobre: a culpa é tua. A mulher diz ao filho: a culpa é tua. O filho diz ao cão: a culpa é tua. O cão furioso ladra e morde ao branco e este, furioso, grita de novo para o preto: a culpa é tua. E a roda continua, por séculos e séculos.”

Esse longo “poema-narrativo” chamado Niketche é uma epopeia feminina escrita com “sangue, suor e lágrimas”. Tal intensidade das metáforas, das histórias dos personagens, das denúncias colocadas como digressões entre os diálogos, faz com que essa obra seja recomendada como leitura para mulheres e para os homens. Para elas porque reconhecemos aqui o sofrimento de nossas iguais, e para eles porque é útil para entenderem esse sofrimento, o que pode levar a uma maior empatia e uma mudança de consciências.

“Deus, faz de mim a última mulher da geração do sofrimento!”

Simone Athayde, escritora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.