“Não me importo, é Holi.” Saiba como é um dos mais sagrados festivais indianos
18 abril 2015 às 17h20

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A segunda reportagem sobre a Índia detalha uma das principais celebrações religiosas do país. O Jornal Opção esteve no templo Jagdish, em Udaipur, no Estado do Rajastão

Marcello Dantas
Happy Holi! Happy Holi! Happy Holi! É a demonstração de maior felicidade para os hindus. Afinal, “bura a mano Holi hai”, em tradução literal, significa “não me importo, é Holi”. É entre o final de fevereiro e março que toda a Índia fica mais colorida e alegre. Imagine, aquele país, vibrante por si só, fazer os olhos pularem de alegria com tanta tintura. O Holi é um festival considerado dos mais sagrados e celebra a chegada da primavera.
Para participar, tem que ter disposição para receber um pó cheiroso e bem fino por todo o corpo, inclusive na boca, olhos, ouvidos e nariz. Não há critério por parte de quem o arremessa. Parece mais fino que o polvilho tupiniquim. Neste ano, o festival começou no dia 5 de março, mês conhecido como phalugna.
É importante lembrar que os hindus usam o calendário lunar, assim como os budistas. E, a cada três anos, é acrescentado um novo mês na contagem. Assim, acumula-se dez dias nesse período para acertar com calendário ocidental. Os indianos têm uns 30 calendários –– pasme.

Holika
Mas antes de relatar mais sobre o Holi é preciso destacar que na noite anterior é celebrada a tradicional Holika Dahan, ou a morte de Holika, uma demônia que fez penitência para Brahma (o criador) e conseguiu dele, como benção, uma roupa que a protegia do fogo.
E nada como estar em Udaipur, a cerca de 120 quilômetros de Jaipur, capital do Estado do Rajastão, para receber a enorme carga religiosa e cultural do festejo.
Vamos lá: primeiramente, a Holika é marcada pela queima de enormes fogueiras de palha que iluminam e esfumaçam toda a cidade. A iluminação pública, bem amarela, fica mais quente com o calor do fogo. Pela tradição, você coloca um ramo da planta nas chamas, pedindo para que todas as coisas ruins que aconteceram no ano passado sejam queimadas. Em seguida, dá três voltas ao redor da fogueira, acompanhando o círculo que foi traçado. E tem que ter cuidado para não se queimar. As mulheres faziam isso muito bem e copiosamente. É emocionante ver. E isso tudo acontece à noite, lembrando as festas juninas do Brasil.
Tocar fogo na palha significa trazer à memória Prahlad, um fiel devoto do deus Vishnu. Conforme os ensinamentos hinduístas o pai dele, Hiranyakashipu, tentou de todas as formas matá-lo, pois odiava Vishnu, do qual seu filho era devoto (em situações de apuros, o deus mantenedor sempre salvava).
Todo ódio do pai surgiu a partir da morte de seu irmão, pois teria sido Vishnu o responsável por tirar a vida de seu querido. Foi aí que Holika se ofereceu para ajudar a tirar a vida de Prahlad, seu sobrinho. Os dois foram colocados na fogueira, mas a demônia tinha a proteção do manto sagrado. Contudo, Vishnu interveio, assoprando um vento que retirou o escudo dela, que morreu queimada. O outro saiu ileso.
Como de costume, os indianos saem às ruas distribuindo pedacinhos de doce leite em cubo (iguais aos brasileiros), batatas chips e sorvetes deliciosos; tudo bancado pelos moradores. Há também a queima de fogos, que fazem enormes faíscas –– eu perdi minhas imagens desta noite, leitor! Mas tudo bem. A criançada aproveita para fazer farra, gritar e pedir fotos. São muitas pessoas nas ruas e haja deuses para protegê-las.
Movimento
Voltando ao dia 5, marcado pelos maiores festejos, logo pelo amanhecer já dá para perceber o movimento nas ruas. Mais que o normal, os indianos saem de casa em suas motos, carros, bicicletas e tuk tuks buzinando à beça. Os motoqueiros, especialmente, não usam capacete. A proteção da cabeça é o pó, que deixa o rosto, descoberto, multicolorido.
Pareceu que os hindus aproveitam a data para consumir bebida alcoólica (o que é proibido pelo governo), afinal é carnaval. Aliás, não! É mais como se a Índia tivesse ganhado as copas do mundo de críquete e futebol ao mesmo tempo.
O primeiro contato com o Holi foi no meio da manhã: parecia tudo normal até passarem os primeiros veículos próximo ao Ram Pratap Hotel –– onde me hospedei ––, em frente ao pomposo lago Fateh Sagar. Atravessar a rua já basta para ser alvo da tinta. Uma verdadeira gangue de jovens percebeu o movimento de turistas, estacionou as motos em que estavam no meio da via e… dá-lhe pó.
Mas o termo “gangue” é só para expressar a quantidade de gente. Na verdade, a única maldade foi constatada no fato de os rapazes sempre (sempre!) darem em cima das garotas, beijando e abraçando.
Passado o start, uma corrida de tuk tuk foi o canal entre o hotel e o templo Jagdish, a principal casa de oração de Udaipur, no Centro da cidade. A atmosfera de lá parecia leve e gostosa, como sorriso de criança ao saborear o primeiro doce. Ao mesmo tempo, uma bagunça ocupava todo o campo de visão, pois havia pessoas e motos espalhadas por todos os lados.
Interior
Foram poucos os minutos no meio daquela bagunça que misturava cor, calor, água e excitação. Depois a beleza do Jagdish tomou a atenção, com uma escadaria íngreme e pomposos elefantes dos dois lados, desejando as boas vindas. Foram boas horas dedicadas ao seu interior, que estava vazio e bastante colorido. Ah, mas antes de entrar, retire os calçados. É que os hindus acreditam que os acessórios levam impurezas externas para os locais sagrados (fazem assim também nas residências e estabelecimentos comerciais).
Entre a entrada e o templo é possível ver uma estátua instalada no alto de um pequeno altar. É a Garuda, uma figura mitológica de olhos esbugalhados, numa mistura de gente e águia, que servia como montaria para Vishnu. Já nas paredes do templo principal, representações de Vishnu, Ganesha (das artes, ciência e sabedoria) e Shiva (o destruidor). Todos bem coloridos pelo pó sagrado holi. O topo é enfeitado com esculturas de dançarinas, elefantes, cavaleiros e músicos; talvez, essa tenha sido a deixa para que se iniciassem as cantorias e danças.
Enquanto percebia e registrava isso, fiéis e turistas entravam e reverenciavam Vishnu, o patrono do templo, talhado em pedra negra. Mas sua imagem ainda estava escondida por um pano bonito e dourado. As batidas dos instrumentos de percussão, como o dholak, o imenso daf e o manjira (um par de pequenos pratos que faz um barulho agudo) encheram o templo de uma musicalidade impressionante. A interação entre os músicos e os presentes foi interessante, pois trocavam sorrisos e aceitavam pedidos de canções.
As mulheres não só dançavam alegremente com movimentos sensuais e habilidosos, mas aproveitavam o descuido de turistas para (tentar) praticar pequenos furtos. Chovia pó, de baixo e de cima, e a mistura do vermelho, amarelo, roxo, alaranjado, azul, verde, rosa e outras convergiam em um dourado forte e cheiroso. E acredite: é possível encontrar (poucas) pessoas limpas, sem um grão de pó.
Algumas vezes, tudo parava quando os responsáveis pelo templo gritavam pedindo para que as pessoas deixassem o caminho entre o altar e a porta de entrada livre, como se fosse para as boas energias entrarem, e as ruins, saírem. Após a pausa, o pano revelava Vishnu ao fundo do altar. Em um momento, os fiéis levantaram as mãos em reverência.
Quando a animação cessou, as pessoas se debandaram e a polícia colocou muitos para correr, na escadaria. Os militares, alguns com os cabelos pintados com cor caju, usavam cassetetes de madeira para dispersar o público.
O retorno ao hotel foi marcado por ruas, veículos, paredes (e tudo mais que pudesse ficar exposto ao pó) bem coloridos, como se tivessem sofrido alterações dos típicos filtros de aplicativos de edição de fotos. Até as vacas estavam pintadas. Felizes ou cansados, os indianos ainda desejavam uma boa primavera de cores, cheiros e muitos sabores.
E andar a pé por Udaipur rende surpresas: um motorista de tuk tuk te para e não te oferece corrida, mas sim diferentes tipos de drogas ilícitas como marijuana, ópio, haxixe, ketamina, cogumelos mágicos e heroína.
Bebida Sagrada
Um tempero a mais para a festa é uma típica bebida feita com água, sal, açúcar, limão e bhang, uma bola verde e umedecida a base de cannabis sativa. Segundo a mitologia hindu, o líquido de cor esverdeado e escuro era consumido por Lord Shiva para fins meditativos. “Enjoy in the silent of Shiva”, dizia um senhor montado em uma bicicleta de barra circular azul, ao explicar as origens do bhang, ícone sagrado para a cultura daquele país.

Reza a lenda que apenas homens podem usufruir de seus efeitos, que são fortes. Com cem rupias (R$ 5) é possível comprar 250 mililitros do produto. Detalhe: o cara que faz a mistura fica sentado na posição de lótus, em um pequeno cômodo que dá acesso à rua, e lava o copo que você irá encostar a boca na mesma água turva que limpa as próprias mãos. A dica é entregar a sua própria água para que ele faça seu pedido, e criar coragem para dar uns bons goles. Enjoy Holi!