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A máxima “Mudam-se os instrumentos, permanecem os motivos”, uma adaptação do célebre verso de Camões (“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”), serve como um profundo axioma para se observar a trajetória do homem e da sociedade. Se na poesia do português a mudança é inevitável e a vontade, volúvel, a nossa proposição sugere uma constância ainda mais fundamental: a da natureza dos impulsos humanos. Através das lentes dos grandes escritores clássicos brasileiros, percebemos que a maquinaria social se moderniza, as ferramentas se sofisticam, mas os motivos que movem o homem – a ambição, o poder, a luxúria, a hipocrisia, a luta pela sobrevivência e o anseio por dignidade – permanecem tragicamente inalterados. A literatura, nesse sentido, não é um mero registro histórico de costumes, mas um diagnóstico perene da alma.

No Brasil do Segundo Reinado, Machado de Assis ergueu o mais preciso e cruel retrato desses motivos eternos. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o defunto autor nos presenteia com uma sociedade cujos instrumentos são as cartas de amor, os salões aristocráticos, os casamentos por conveniência e a retórica política vazia. O motivo por trás de tudo? A vaidade e a busca pelo status. Brás Cubas, Quincas Borba, o Conselheiro Aires – todos são movidos por uma necessidade de se afirmar perante os outros, de possuir não por valor intrínseco, mas por ostentação. A genialidade de Machado foi demonstrar que, mesmo com a abolição da escravidão chegando e o mundo mudando ao redor, a elite brasileira continuava a operar com a mesma lógica de exploração e farsa. Os instrumentos legais poderiam mudar (o chicote dando lugar a outras formas de subjugação econômica e social), mas o motivo do dominador permanecia: a preservação de seu privilégio a qualquer custo.

Avancemos no tempo e no espaço com Euclides da Cunha e Os Sertões. O instrumento em questão aqui é a mais avançada tecnologia de guerra do Estado Brasileiro republicano: os canhões Krupp, os fuzis de repetição. Contra eles, o sertanejo de Antônio Conselheiro empunha facões, foices e uma fé inquebrantável. O conflito de Canudos é a colisão brutal de dois Brasis, de dois conjuntos de instrumentos radicalmente diferentes. No entanto, ao desvendar o drama, Euclides revela que os motivos de ambos os lados são arcaicos e espelhados. De um lado, o poder central age movido por um medo do diferente, pelo preconceito e pela necessidade de eliminar o que não se compreende e ameaça a ordem estabelecida. Do outro, o sertanejo luta por sobrevivência, por fé e por um lugar no mundo que lhe foi negado. A guerra moderna é, no fundo, a mesma guerra tribal de sempre: a do homem que teme e tenta destruir o que é estranho. Euclides mostra que a República, com toda sua nova roupagem, era movida pelos mesmos impulsos de exclusão e violência do Império.

Na virada do século XX, Lima Barreto grita as dores dos excluídos por meio de Triste Fim de Policarpo Quaresma. Seu personagem principal é um visionário que acredita nos instrumentos oficiais da pátria: as leis, os hinos, os símbolos nacionais. Ele crê que o motivo do Brasil é o amor à terra e à sua cultura. Sua tragédia é descobrir que os motivos reais que regem a República são a hipocrisia, o clientelismo, a corrupção intelectual e a ganância. Os instrumentos do Estado – o cargo público, a delegacia, o hospício – não são usados para o bem comum, mas para perpetuar o jogo de interesses de uma elite medíocre e egoísta. Policarpo Quaresma defendeu o tupi-guarã e a agricultura nacional, instrumentos de uma paixão genuína, e foi esmagado pelos instrumentos de uma sociedade cujos motivos são mesquinhos e cínicos. Lima Barreto demonstra que a mudança de regime (Império para República) nada alterou na coreografia do poder.

A obra máxima de Graciliano Ramos, Vidas Secas, talvez seja a expressão mais crua e poética desta tese. Os instrumentos da família de Fabiano são primitivos: o chicote, a enxada, a espingarda de pederneira, a linguagem rudimentar. Eles lutam contra a seca, a fome, o patrão e o soldado. Os motivos são os mais básicos e universais: sobreviver, alimentar os filhos, preservar um resto de dignidade. A sociedade que os cerca já possui instrumentos mais complexos: a lei escrita (usada para oprimir), o dinheiro (que concentra poder), a autoridade do soldado (arbitrária e violenta). Os motivos dessa sociedade, no entanto, são os mesmos que movem Fabiano, mas distorcidos pela posse do poder: dominar, explorar, subjugar. Graciliano expõe a ossatura bruta da existência, onde não há romantismo possível. As ferramentas do jagunço e as do coronel são diferentes, mas a luta por poder e sobrevivência é a mesma, travada desde os primórdios da humanidade.

Não se pode falar dos motivos perenes sem mencionar a paixão, outro instrumento de eterna repetição. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, os instrumentos da desconfiança são um ciúme retroativo, uma memória seletiva e um olhar interpretativo. O motivo, porém, é o ciúme, o medo da traição, a insegurança masculina – sentimentos tão antigos quanto a própria relação amorosa. A tecnologia do romance é a escrita, mas a emoção que o propulsiona é primal.

O que esses autores clássicos nos legaram foi um diagnóstico atemporal do Brasil e, por extensão, da condição humana. Eles perceberam que o progresso é, com frequência, apenas uma casca. O telefone celular de hoje substitui a carta de amor de Brás Cubas; as redes sociais são o novo salão aristocrático onde a vaidade é exercida; a retórica política moderna é tão oca quanto a do tempo do Império; e as novas tecnologias de controle e opressão simplesmente dão mais eficiência a motivos que sempre existiram.

A grande lição da literatura clássica brasileira é que, para entender o presente e mudar o futuro, não basta olhar para os novos instrumentos. É preciso cavoucar fundo e encarar os motivos que permanecem, inalterados, em nosso caráter. Eles são a matéria-prima com a qual lidam os escritores, e contra a qual, alertam eles, devemos lutar perpetuamente se quisermos, um dia, não apenas mudar os instrumentos, mas finalmente transformar os motivos.

*Abílio Wolney Aires Neto, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.

Fontes:
O título nasceu de uma mensagem escrita do Prof Eguimar Chaveiro da UFG.
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Typographia de Gazeta de Notícias, 1881.

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1899.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa: António Gonçalves, 1572.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Laemmert & Cia., 1902.

BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1915.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.