Mosca Espanhola, a saga de um trio de golpistas no interior dos EUA na década de 1930

19 junho 2022 às 00h00

COMPARTILHAR
Romance do escritor canadense relata a sucessão de caçadas a otários promovida pelo casal Virgil e Rose, pela ótica do jovem comparsa Jack McGreary
Mariza Santana
Em época de crise, como a que vivemos atualmente, proliferam os golpistas. Nos dias de hoje os golpes são aplicados de forma virtual, seja por meio do número falso de WhatsApp pelo qual se pede dinheiro emprestado a amigos e familiares; ou no chamado fishing, no qual o desavisado tem seus dados pessoais “pescados” por meio das artimanhas para serem utilizados de forma ilícita para um pedido falso de empréstimo ou outras marotagens que geram prejuízo financeiro à vítima. É preciso estar atento para não cair no “canto da sereia” das falsas promoções e de outros atrativos indecorosos que pipocam nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens.
Também foi assim no século passado, após a Queda da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, que levou a economia mundial ralo abaixo, causando quebradeira geral das empresas e aumento do desemprego. Ocorreu naquela época, nos Estados Unidos o que é chamada a Era dos Golpistas. Dezenas de marginais, dito espertos, buscavam arrancar dinheiro das pessoas, sem recorrer a atos violentos como assaltos a bancos, mas tendo como instrumentos somente muita lábia e criatividade. Eles aplicavam os mais diversos golpes, como o do troco, do cheque fraudado, do investimento na fazenda de cães, entre outros
O romance “Mosca Espanhola” (Companhia das Letras, 424 páginas, tradução de Celso Mauro Paciornik), do escritor canadense Will Ferguson, conta a saga de uma dupla de golpistas, formada por Virgil Ray e Rosalind Scheible, que viajavam pelo interior do Sudoeste dos Estados Unidos aplicando pequenos golpes, numa verdadeira caça aos otários. O jovem Jack McGreary se juntou ao casal quando este passou pela cidadezinha onde ele morava, realizando o trabalho de recolher dólares de pessoas crédulas. E é o jovem que relata as aventuras dos golpistas, a partir daquele momento. Ele detalha cada ação do trio, que vivia de depenar os cidadãos, contando apenas com a ambição e a falta de atenção de suas vítimas.
Jack, senhorita Rose e Virgil se estabelecem em Silver City, uma cidade do Estado norte-americano do Novo México. De uma sobreloja em cima do Café Wong, o quartel-general dos bandidos, eles partem de carro para aplicar seus golpes nas cidades vizinhas. As tramoias para arrecadar dinheiro sem trabalho duro são de diversos tipos, mas o que acaba enriquecendo mesmo o trio é a fabricação e venda do pó Mosca Espanhola, denominação de um inseto que supostamente teria propriedades sexualmente estimulantes. O placebo, na verdade, nada mais era do que um punhado de bicabornato de cálcio, embalado e oferecido como uma espécie de Viagra da época, que se tornou um sucesso de vendas.

Mas, para um golpista da categoria de Virgil, faltava na venda da Mosca Espanhola a emoção de estar arrancando pessoalmente dólares de alguém por meio de alguma artimanha. Dessa forma, o trio aplica parte do dinheiro apurado na comercialização do placebo para abrir, em Silver City, empresas fantasmas de prestação de serviço, nos segmentos de corte de árvores e impermeabilização de telhados, que cobravam barato porque não executavam o contratado com os clientes. A sorte da trupe de golpistas, entretanto, começa a sofrer um revés quando o fiscal da Prefeitura aparece para cobrar a legalização dos negócios.
Antes de se mudar de Silver City, os marginais decidem realizar uma última ação fraudulenta, por meio da agência fake de detetives especializados em desmascarar cônjuges infiéis. A partir daí, os caçadores se transformam em caça, sendo obrigados a acelerar a aplicação de golpes na cidade para levantar uma grande quantia de dinheiro. No momento crucial, o jovem aprendiz de escroque mostra todo o seu talento e o discípulo acaba superando o mestre.
Enquanto vai relatando a saga dos golpistas, “Mosca Espanhola” apresenta o contexto histórico: a Europa está à beira de uma guerra, conforme conta o noticiário diário do rádio e dos jornais da época. Mas os Estados Unidos garantem que manterão a neutralidade diante do conflito. As peças no continente europeu vão se movendo ao longo do romance, com o nazista Adolf Hitler dando sinais de que avançará com suas tropas, o que acaba se concretizando no final do relato, com a invasão da Polônia, em setembro de 1939. Assim, a obra situa historicamente aquela década de 1930 e o desenrolar dos fatos que iriam culminar na Segunda Guerra Mundial, e no posterior envolvimento dos Estados Unidos, após o ataque japonês a Pearl Harbor.
Ambiguidade moral dos personagens
Will Ferguson nasceu em Fort Vermilion, no Canadá. É autor dos best-sellers “Por que Odeio os Canadenses e “Como Ser um Canadense”, que juntos venderam mais de 230 mil cópias. O romance “419”, de sua autoria e publicado em 2012, foi vencedor do Scotiabank Giller, prêmio literário concedido a escritores canadenses. A obra conta a história de uma mulher que queria se vingar do vigarista que matou seu pai, e trata da ambiguidade moral, incerteza e corrupção.
A ambiguidade moral também está presente em “Mosca Espanhola”. Para Virgil, o mestre dos golpes, seu trabalho duro, de enganar otários, evitava o trabalho duro. E não havia nada de errado nele, já que a pessoa ludibriada entregava seu dinheiro de boa-fé, não era ameaçada ou coagida a fazer isso. A obra do autor canadense detalha a figura do malandro trapaceiro, alguém fácil de ser encontrado também no Brasil.
Mariza Santana é jornalista e crítica literária. E-mail: [email protected]