Rapper paulistano diz que assassinato da ex-vereadora carioca é a prova da “estatística racista e violenta que o Brasil carrega” do extermínio de jovens negros

Rincon Sapiência apresenta no palco a força do disco “Galanga Livre”, um grito de liberdade do povo negro 130 anos depois da abolição da escravatura | Foto: Fernanda Leonor/365Sshows

O paulistano Danilo Albert Ambrósio, 32 anos, de Ar­tur Alvim, Co­hab 1, na Zona Leste de São Paulo, veio a Goiânia duas vezes em 2017. Na primeira, se apresentou do Cerrado Mix Festival no dia 7 de abril, quando tinha na bagagem de sua carreira solo o EP “SP Gueto BR”, lançado em 2014, e abriu para Flora Matos (DF) e os Racionais MC’s (SP). Na segunda passagem pela capital goiana, fez show com capacidade máxima para 600 pessoas no Galpão Complexo Criativo, no do­mingo 25 de julho, dois me­ses depois do lançamento do disco “Galanga Livre”.

Desta vez, era 1h25 do domingo 13 de maio, data que marca os 130 anos da abolição da escravatura no Brasil, quando o já conhecido e premiado Rincon Sa­piência subiu ao palco principal do 20º Festival Bana­nada como uma das atrações mais aguardadas da noite por um público formado por 6,5 mil pessoas.

No mesmo dia, o artista lançava o videoclipe da mú­sica “Crime Bárbaro”, que abre seu disco de estreia, pela Boia Fria Produções. No clipe, Sapiência, também conhecido como Ma­nicongo, vive um escravo contemporâneo que foge do capitão-do-mato fardado dos dias atuais, que o persegue a pé, em uma moto e dispara bombas e tiros contra o fujão que matou o senhor de engenho e luta pela liberdade.

Minutos depois de en­cantar o público do Bana­na­da com seu rap de rimas certeiras e misturas de ritmos bra­sileiros, africanos e da cultura pop, o paulistano con­versou no camarim com o Opção Cultural sobre ra­cismo, o momento da cultura na defesa da diversidade, a aceitação da arte da periferia nos grandes eventos musicais, futebol e a violência sofrida pelos jovens negros.

Você prefere ser chamado de Rincon ou Danilo?
Danilo. Tô zuando, mas Danilo está bom.

De onde partiu esta história de criar o conto fictício do “Galanga”, que se tornou o disco “Galanga Livre”, e discutir o racismo no Brasil pela música?
A princípio a inspiração foi a música “I Shot The Sheriff”, do Bob Mar­ley, no contexto de ser uma can­ção em que ele fala que atirou no xe­ri­fe e que, em tese, matou o xerife. Não necessariamente se trata de um ato violento, mas de um contexto geral.

Quando eu produzi essa música – “Crime Bárbaro” –, tinha só o instrumental e me dava um ar de fuga. Aí acabei criando de forma fictícia mesmo essa história. Mas, ao longo do tempo, fui construindo o disco, achei que a música tinha uma simbologia muito grande. É que nem falei no show: o senhor de engenho nos dias de hoje dá para se interpretar de várias outras formas.

Acho que existe a opressão racista, como a machista também, a homofóbica e religiosa. A simbologia de matar o senhor de engenho é de eliminar esses valores que privam a gente de ser a gente mesmo e buscar es­sa liberdade que todo mundo almeja.

Você veio a Goiânia no ano passado e se apresentou no Galpão Complexo Criativo, e voltou agora como uma das atrações principais da penúltima noite do Bananada. Qual foi a principal diferença daquele show e do público de 2017 para o desta noite [madrugada de 13 de maio]?
Fora um pouco de mudança do repertório, e também do formato do show, em que hoje levei um tecladinho e tirei uma ondinha lá, acho que é o momento, a atmosfera muda de tudo que passou nesse último ano. A atmosfera do festival, do cenário social do Brasil. Todo esse clima já dá uma atmosfera simbólica, mas procuro me divertir e dar o meu melhor em todos os lugares, dos de menor porte aos maiores. E procurei fazer o que sei fazer de forma natural.

Nas viagens da turnê do “Galanga Livre”, você tem visto esta diversidade nos festivais e shows pelo Brasil, com uma drag queen no pal­co como uma das artistas principais [a entrevista foi gravada enquanto a drag queen Pabllo Vittar começava seu show no Bananada] e outros ar­tistas negros e LGBTQs com destaque? É comum ver essa seleção de artistas negros protagonizando festivais de música em outros Estados?
Eu tenho achado isso bem positivo. Também fizemos nos últimos tempos… eu não vou lembrar todos, mas Coquetel Molotov (PE), Lollapalooza Brasil (SP), Radioca (BA). Fizemos bastante festival. Eu já fico feliz de dividir o palco com outras pessoas, com artistas de outros gêneros, porque eu sou muito fã de outros artistas que não são do rap. É a oportunidade de encontrar, colocar as ideias em dia, fazer amizade e colaborações.

Acho muito especial tocar em festivais. Acho que a gente está nesse volume maior como artistas pretos e periféricos não por uma cota e sim pelo trabalho que tem sido relevante. Se você pegar o que tem de mais relevante acontecendo entre várias coisas legais, temos a Pabllo, temos a Titica, que é uma artista incrível de Angola, que está participando também. O que está acontecendo é algo natural, espontâneo, é o resultado de um trabalho nosso de muitos anos.

Você fala isto muito, inclusive nas letras de “Ponta de Lança” e “Linhas de Soco”, que representa o Mestre de Cerimônia (MC) com qualidade e que não está abaixo da média. Mas você imaginava que quando começou a fazer música em Arhur Alvim, na Cohab 1, um dia chegaria onde está na carreira?
Ah! [para e pensa] As perspectivas profissionais eram muito outras, o jeito de atuar fazendo rap era muito outro, mas a gente tinha um lance no nosso interior que é o nosso sonho, as nossas vontades. Considerando que fazer música é o que eu amo e já sei desse amor desde adolescente, que é isso que eu gosto de fazer, sempre foi algo que eu almejei conseguir fazer, que é fazer esse trabalho de uma forma ampla, e de conseguir circular.

Porque a gente faz toda uma obra e quando ela está pronta a gente quer doar para as pessoas. Então um grande presente que a gente recebe é quando a gente tem a oportunidade de sair girando e mostrando essa construção, né, esses dias de estúdio, dias de composição, de conversa, de tudo, que acabam virando música. Tudo vale a pena quando a gente tem oportunidades como essa.

A alegria que você demonstra no palco dançando o tempo inteiro e que contagia o público, que responde e vai junto, tem a ver com a libertação que você conseguiu daquele tempo em que a música “Elegância” saiu, em 2009, e ter de esperar até 2014 para lançar o primeiro EP – “SP Gueto BR”? O que aconteceu nesse período?
São altos e baixos. Boa parte disso faz parte de uma má administração profissional. Eu reconheço isso. Durante muito tempo você está conectado em fazer arte, fazer rima, e profissionalmente dizendo, existem vários fatores nos entornos que são necessários. Durante muito tempo eu não tinha um staff, não tinha uma equipe, não tinha quem me vendia, quem me representasse. As coisas eram mais difíceis. Mas a parada foi rolando, cara.

Outra coisa que penso é que quando lancei o “Elegância” já era um ponto fora da curva, né? Muitas das minhas propostas de música fugiam de um padrão. Valeu a pena passar esse tempo todo até isso acontecer porque agora que aconteceu eu tenho tudo do meu jeito. Consigo vestir o que eu gosto de vestir, consigo usar uma saia, consigo dançar, consigo falar o que eu sinto sem nenhum tipo de privação. Porque foi isso que construí.

E para construir isso acabou levando esse tempo. Até as pessoas entenderem que você tem uma linguagem, que você tem uma pesquisa, que você tem várias coisas leva um tempo. E acho que o universo foi sábio comigo.

Como a Zona Leste de São Paulo se relaciona com a sua música? Como o seu trabalho é recebido?
É bem positivo. Até porque falando de rap sempre foi um lugar de muita referência nos anos 1990, no começo dos anos 2000. Xis, DMN, Consciência Humana, DeMenos Crime. Se hoje temos bancas que têm 1Kilo, Damassaclan, já naquele tempo a gente tinha o DRR [Defensores do Ritmo da Rua], que era um coletivo de vários grupos. A Zona Leste sempre foi uma grande vitrine do rap. E ao longo do tempo se perdeu um pouco a referência de artistas despontando de forma grande, vamos dizer assim, da Zona Leste.

Depois que meu trabalho começou a acontecer mais assim, muitas pessoas se sentiram contempladas com isso porque passei a ser um influenciador de batalhas, de novos artistas. Considerando que tenho 32 anos, hoje eu vejo uma molecadinha nova, na Cohab mesmo, que são pessoas novas. Do tempo todo que eu morei lá, essas pessoas eram crianças, e agora maiores, mais velhas, começando a fazer suas músicas, muitas de lá se inspirando em mim. Me sinto honrado, né? Porque outros artistas fizeram isso comigo, me inspiraram também.

Você escancara o racismo, faz crítica social, mas também usa muita referência do futebol. Fala do ex-jogador Zé Roberto em “Afro Rep”, Ro­nal­dinho Gaúcho na “Resenha de Fu­tebol” [parceria com Karol Conka e Rael da Rima]. Qual é a sua relação com o futebol? Torce, vai a estádio?
Estádio, nunca fui muito. Fui muito de ir a campo de várzea, né? É um lugar aconchegante de se ir aos domingos de manhã, ficar na batucada e assistir a um jogo. Isso eu fiz bastante. Fora que joguei várzea também, sonhei em ser jogador de futebol durante muito tempo. E o futebol foi onde eu me situei com o mundo. Que é aí que você conhece o que é o quê, assim. Você sabe a relação da polícia com a gente, você sabe quem pratica tal atividade, quem que faz isso, quem… Enfim.

Toda aquela experiência típica de periferia de você se conectar com aquela realidade chocante do crime, droga, polícia, racismo. Como é um esporte muito sociável, pensa numa quadra, um monte de próximos, gente de ascendência nordestina, preto, branco. O futebol é quem me trouxe uma conexão de conhecer mais a rua. E naturalmente, para você fazer rap você precisa ter esse norte, né? Então diria que tudo começou com o futebol.

Acho muito especial tocar em festivais. Acho que a gente está nesse volume maior como artistas pretos e periféricos não por uma cota e sim pelo trabalho que tem sido relevante.”

Você tem citado muito a morte da vereadora Marielle Franco (Psol-RJ) nos últimos shows. Como esse crime te impactou?
O raciocínio infelizmente… É algo que ganhou notoriedade o que aconteceu, repercutiu com muitas notícias. E de fato foi algo que mereceu essa atenção toda. Penso muito que o caso da Marielle não pode ser um boom de mídia e depois se esquecer. Acho que tem de ser tratada como mártir ou algo assim, lembrada sempre. Principal­mente porque ela tinha uma atuação muito positiva pra gente. Era uma grande referência, e lutava por nós como vereadora.

Outro dado é que ali se demarcou com grande visibilidade como acontece esse afrogenocídio. Existe uma taxa muito alta de homicídio nas periferias, nas favelas. A grande maioria é de jovens, e o perfil desses jovens é de pretos e pretas. Isso é uma estatística racista e violenta que o Brasil carrega.

O caso da Marielle mostra que isso é uma verdade, que é um fato. Há quem questione a gente, há quem fale que quando a gente reivindica é mimimi, é vitimismo, mas não é. E esse fato demarcou realmente que o Brasil precisa corrigir essa violência e esse racismo, né?

Mesmo com o bom momento que o “Galanga Livre” vive, você ainda sente racismo de alguma forma?
Acontece de diversas formas. Dependendo do ambiente que você está, mesmo um ambiente de música, às vezes você não tem o perfil da ideia que o segurança tem do que é um artista, às vezes você percebe o tratamento, o olhar. Mas, de certa forma, estou muito treinado, há muito tempo sabendo dessa realidade. Tive muita instrução do meu pai e da minha mãe. Então é uma situação que eu consigo me posicionar de uma forma muito boa, reverter tudo isso e enfrentar, sabe?

Mas consigo enxergar, sim, que ainda é algo novo a nossa presença em determinados lugares, determinados festivais, e por aí vai. Mas de qualquer forma, a gente é sempre bem tratado.

O momento é de valorização da cultura pelo governo federal?
Esse último governo não valoriza da forma que deveria a cultura, mas, em contrapartida, vivemos um momento de muita manifestação cultural, de muito artista legal, artista mulher, artista drag, artistas gays fazendo um trabalho muito legal em São Paulo, em BH, no Ceará, em Belém do Pará, Recife, no Norte, Sul também. E não só na música, nas artes visuais, no teatro.

Conheço muita gente legal que está escrevendo peças, que está fazendo grifes, marcas de roupas, trabalho com moda alternativa independente, moda sustentável. Está rolando um monte de coisa interessante, e isso acaba sendo uma resistência diante desse governo que a gente tem.

Você falou sobre violência policial, chegou a ver o novo videoclipe do Childish Gambino, “This Is America” [lançado sete dias antes de “Crime Bárbaro”]?
É um clipe interessantíssimo, necessário, que demarcou a grandiosidade dele como artista. Ele é um cara incrível como ator, roteirista, trabalho corporal, cantor, rimador. É bem interessante um trabalho visual desse. Acabou de sair o meu clipe também: “Crime Bárbaro”. Dá um confere lá que é legal também.