Marcelo Franco

Morreu o pintor José Cláudio. Na terça-feira, 12, aos 91 anos.

Conheço pouquíssima coisa sobre artes plásticas; a pintura de José Cláudio, contudo, sempre me encantou, talvez porque ele fosse pernambucano e Pernambuco tem lugar cativo aqui no meu peito, um pouco para o lado esquerdo, na parte ainda não necrosada.

O gloriosíssimo Estado merece as nossas preces diárias de agradecimento — no susto e sem pensar muito, sei que lá nasceram: José Cláudio, Cícero Dias, Vicente do Rego Monteiro, os irmãos Brennand, Joaquim Nabuco, Barbosa Lima Sobrinho, Gilberto Freyre, Edson Nery da Fonseca, Manuel Bandeira, Evaldo Cabral de Mello, João Cabral de Melo Neto, Geraldo Holanda Cavalcanti, Raimundo Carrero, José Condé, Nelson Rodrigues, Osman Lins, Alceu Valença, Bezerra da Silva, Luiz Gonzaga e Geraldo Azevedo (“Moça bonita, o seu corpo cheira/ Ao botão de laranjeira./ Eu também não sei se é,/ Imagine o desatino, é um cheiro de café,/ Ou é só cheiro feminino,/ Ou é só cheiro de mulher.”). Ah, sim, e o inigualável Reginaldo Rossi.

Mulher e Gato, pintura de José Cláudio

Agradeçam, meus amigos, e agradeçam de joelhos. Mais: vi José Cláudio num documentário sobre Cícero Dias e o homem tinha verve, era um tipo de causeur com quem tomaríamos, noite adentro, uma pinguinha de engenho. Além disso, dessa sua origem que é, por si só, um passaporte para os meus escaninhos cerebrais onde mora o “Gosto!”, José Cláudio era o dono de uns verdes que me fazem pregar os olhos em suas paisagens, como se vê aí na fotografia. “Verde que te quero verde./ Verde vento. Verdes ramas.”

José Cláudio ainda publicava crônicas mensais na versão digital da “Continente”.

Conhecia também esse riscado, o velho Zé Cláudio: ele escrevia com a facilidade com que pintava (eu sei, eu sei, a facilidade vem de anos de esforço) e não tinha, mesmo nos textos mais pessoais, aleluia, aleluia, aquele estilo quase diabético que só permitimos ao grande Rubem Braga, que o soube domar e transformar, com a insulina do seu gênio, em literatura de alto nível — vocês sabem: “Passarim é um bicho tão bonito, passarim preso é muito triste, voa, voa, passarim”.

Pois o pintor-cronista José Cláudio mostrava Pernambuco ao mundo e o mundo a Pernambuco, com graça e elegância, colocando uns verdes mais intensos nas palavras quando estava mais saudosista ou mais nordestino — há uma crônica sua sobre a rapadura pernambucana que… bem, é de dar água na boca.

Agora a parte trágica, o resultado de muito ruminar (“Em cismar, sozinho, à noite”…). É preciso ler os pernambucanos antes de destruirmos tudo aquilo, aqueles engenhos centenários, aquele Recife em que esculturas são furtadas e casarões ruem, aquela nesga de terra que orgulha o Brasil e será, com a nossa diligência destrutiva e à semelhança do resto do país, chão arrasado; é preciso ler os livros e ver as pinturas da boa gente pernambucana antes de tudo ser levado ao olvido, o que, como no poema do recifense Manuel Bandeira, fatalmente ocorrerá:

“Recife…

Rua da União…

A casa de meu avô…

Nunca pensei que ela acabasse!

Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife…

Meu avô morto.

Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro

como a casa de meu avô.”

(Escrevo tudo isto e penso vagamente que preciso voltar ao Recife, terra de amigos queridos com quem passei, em Olinda, uma virada de ano memorável; o dono da pousada em que estávamos, seu Paolo, um italiano aqui esquecido e aqui se esquecendo das tranqueiras que acumulamos, velho minerador e namorador de vida aventurosa, varou a madrugada conosco e nos permitiu lá permanecer até a chegada dos hóspedes seguintes, no dia 2 ou 3 de janeiro, sem mais nada nos cobrar — que Deus bem cuide dos italianos aventurosos que se perderam em Olinda, amém.)

Pois é: morreu o pintor José Cláudio, dias atrás, e os jornais estão cheios de futricas políticas.