“Moonlight” retrata a intimidade humana sem desprezar a luta por igualdade racial

21 fevereiro 2017 às 08h34

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Filme de Barry Jenkins é uma pedrada na vidraça da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que foi acusada de racismo na última edição do Oscar

“Quem é você, Chiron?”. A pergunta que aparece no trecho final de “Moonlight: Sob a Luz do Luar” se arrasta pelas entrelinhas de todo o novo filme de Barry Jenkins, desde o começo. Mas as cenas iniciais não são sobre o protagonista Chiron.
Juan, vivido por Mahershala Ali, é um traficante de bairro que evita conflitos e não se orgulha do que faz. Na rotina de um dia qualquer é interrompido pela correria de crianças — o menor, fugindo do bullying, tenta evitar ataque dos maiores que o perseguem. Assim somos apresentados a Chiron: acuado, arisco, desconfiado. Apelido, “Little”.
O filme acompanha três fases da vida do franzino “Little”. A infância, período em que se afiniza à figura masculina de Juan e luta contra a violência viciada de sua mãe, que finge que educa e tem ciúmes de quem quer que se aproxime durante sua constante ausência; a adolescência, em que firma sua independência em relação à vida caótica da genitora, mas ainda não se posiciona firmemente perante a vida social na escola e na vizinhança; e a fase adulta, na qual ganha mais autonomia, toma posse de sua masculinidade e se escora no corpo forte e avantajado para se impor como traficante, mas que ainda não tem muita certeza sobre nada.
O filme aborda de forma genérica questões raciais, sexuais, sobre drogas e também abandono familiar. Mas não se esgota só nisso.
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Depois de muitos protestos Hollywood afora — inclusive na noite do 88° Oscar, no ano passado, em que Chris Rock vestiu a roupa de camaleão e subiu no muro para tentar desempenhar a diplomática missão de, ao mesmo tempo que receber e valorizar as críticas à falta de reconhecimento a artistas negros no mercado cinematográfico, promover uma reconciliação destes com a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas — “Moonlight” é uma verdadeira pedrada na vidraça.
Indicado a oito categorias da maior premiação do cinema americano, mas injustificadamente não tão ouriçado quanto “La La Land”, de Damien Chazelle, o filme conta com um elenco principal só de artistas negros. Além de Trevante Rhodes, estão no casting a cantora Janelle Monaé, Naomie Harris (“Mandela: O caminho para a liberdade”), Mahershala Ali (“Um Estado de Liberdade”), André Holland (“Selma”) e Edson Jean (“Cães de Guerra”). Barry Jenkins conduz a locomotiva (dirigindo e roteirizando) demonstrando, de uma vez por todas, que a Academia não pode — e nem se quisesse, conseguiria — deixar passar batido o poder da cultura negra.
Aliás, aqui cabe uma observação importantíssima sobre o papel do filme em toda essa discussão sobre o reconhecimento do trabalho de artistas negros. Se você pegar os principais filmes americanos protagonizados por negros nos últimos anos, ou com um envolvimento mais direto desses artistas, dá para chegar facilmente à constatação de que a temática acaba se esgotando na luta pela igualdade, na denúncia ao preconceito e na retrospectiva histórica das conquistas negras (esse ano mesmo, temos em destaque “Estrelas além do tempo”, “Loving”, “Eu não sou seu negro” e “Um limite entre nós”). Não que devamos dar pouca importância a isso — de maneira alguma! É indispensável que a humanidade nunca se esqueça das atrocidades já cometidas em nome da supremacia branca, e que continue avançando na eliminação das desigualdades. Principalmente no já surrado território americano.
Mas há que se convir que a produção cinematográfica (e cultural, de maneira geral) não pode ficar restrita a essa temática — aliás, à temática alguma! A igualdade se alcança, também, na liberdade de explorar temáticas universais que estão lá, sempre existiram, mas que ainda perdem em urgência para temas mais profundos como a luta pela igualdade racial.
Assim é que Barry Jenkins consegue deixar um pouco de lado as mazelas advindas do preconceito racial e de gênero (ainda que não os abandone completamente — nem poderia, já que Chiron é um negro americano da década de 80, em plena descoberta de sua sexualidade) para permitir-se tratar de um tema universal: o “conhece-te a ti mesmo”. O interessante é que, de forma inteligente, nas entrelinhas, ainda assim Barry nos joga essa verdade crua da busca pela igualdade: O Templo de Delfos também aconselha negros e homossexuais. Como não? Filmes “de negros” também podem falar sobre temáticas intimistas e universais de forma belíssima, sem desprezar todas as lutas coletivas.
Nesse contexto um pouco mais intimista, a beleza de “Moonlight” se revela em cada detalhe. Na trilha sonora meticulosamente inserida — delicada, melancólica, introspectiva. Na fotografia de cores frias, por vezes revelando a dureza do mundo contra o qual Chiron luta, e no qual quer se inserir. Nos olhares e diálogos curtos, mas significativos, instigando a busca permanente pela essência do que é “viver” e “ser”.
No fundo, Chiron só quer se descobrir e ser aceito. Percebemos isso quando ele estranha o calor com o qual é recebido, inicialmente, por Juan e sua esposa Tereza. Se surpreende com a compreensão que depois vira beijo, oferecidos pelo melhor amigo. E, por fim, busca sofregamente por um colo, alguém que lhe compreenda sem julgamentos e lhe ofereça perspectivas, carinho, ligação. A rejeição está nos meandros da rotina comum.
“Sob a luz do luar, garotos negros ficam azuis”, diz um dos diálogos. Azul de uma melancolia profunda e individual. Azul de ainda inexplorado, misterioso, quase lacônico. E azul de uma sensualidade latente. Assim se descobre Chiron. Assim se revela ao mundo, ansiando que alguém o descubra — e o acolha. Azul é a cor mais profunda.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG