O escritor desenha um mundo novo, no qual é permitido às crianças serem o que de melhor são: crianças. “Reinações de Narizinho” inova em linguagem e gênero

Soninha dos Santos

Especial para o Jornal Opção

Em 1921, José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948 — viveu 66 anos), inaugura com sua obra “Reinações de Narizinho”, publicada pela Editora Brasiliense, um mundo novo na história da literatura brasileira e que passaria, tempos depois, a ser vista, criticada e analisada como Literatura Infantil e Juvenil. Inaugura porque, até então, ela não existia no Brasil e nem tinha estatuto de arte; novo porque até essa data, final do século 19 e início do século 20, nenhum outro autor ou autora havia se embrenhado pelas intrincadas vias de acesso ao imaginário infantil.

Mas o que coloca Lobato nesse contexto inicial da LIJ? Comecemos então, pelo princípio, ou seja, o de como, quando e porque Lobato é colocado pela crítica e pelos estudiosos de sua obra, nesse lugar ganhando inclusive a patente de “pai” da LIJ brasileira.

“Reinações de Narizinho” surge em meio a uma virada de século, numa época em que a criança, usando palavras de Cora Coralina, “não valia mesmo nada” e “não era incômoda, pois nem mesmo tinha o valor de incomodar”. Falamos de um período histórico singular. Um período de mudanças sociais, políticas e econômicas significativas para a sociedade. A mulher começava a entrar no mercado de trabalho modificando drasticamente a rotina familiar; a educação infantil começa a ser questionada, estudada e os moldes tradicionais da família começam a mudar.

A mulher começa a deixar os afazeres domésticos para trabalhar fora e contribuir para o sustento da família e o tempo dedicado aos filhos diminui. A criança, até essa época como as frases de Cora bem definem, ainda não tinha seu status completamente definido. Era vista como um adulto em miniatura usada para o trabalho como adulto, mas recebendo como criança. Lobato descobriu essa criança, lhe deu vida e voz, resgatando-a por meio de sua obra, do mundo desumano, punitivo e desigual dos adultos. Como? Inicialmente, criando uma família diferente da família tradicional padrão; a casa onde as crianças moram é um sítio, lugar lindo e propício à fertilidade da imaginação das crianças; não há pai ou mãe “comandando” esse lar recém-criado; a adulta responsável é uma avó; não há referência aos pais de Narizinho. Pedrinho tem uma mãe, Antonica, que mora em São Paulo. Quem melhor do que uma avó para permitir que crianças brinquem e se divirtam como crianças de fato?

Dessa maneira, Lobato desenha um mundo novo. Nesse mundo, é permitido às crianças serem o que de melhor são: crianças. Seu livro inova em linguagem e gênero. Traz à tona um ser humano, criança, mas capaz de pensar, sonhar, sofrer e querer como qualquer outro ser humano. Uma criança que brinca, brinca muito e exercita seu melhor lado: o de ser criança sempre, mesmo ao crescer.

Soninha Santos, mestre em Literatura pela Universidade de Goiás, é professora e colaboradora do Jornal Opção.