Mariza Santana

Quem vê as crianças de hoje passando o dia conectadas ao celular, craques nas redes sociais e dominando a tecnologia digital, podem não se lembrar que 130 anos atrás a vida das crianças brasileiras era bem diferente, principalmente daquelas que moravam em cidades pequenas do interior. O livro “Minha Vida da Menina” (Companhia das Letras, 328 páginas), da escritora mineira Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Garcia Brant), fala de uma infância que não existe mais.

A autora escreveu suas memórias no final do século XIX, (de 1893 a 1895) em forma de diário, no período em que tinha de 12 a 15 anos de idade. A obra é mais do que reminiscências ingênuas de uma garota do interior mineiro. Traça um amplo panorama do país em uma época logo após a abolição da escravidão e a Proclamação da República, quando os ventos das mudanças políticas começariam a influenciar novos costumes e novos valores.

Lançamento do livro “Minha Vida de Menina”, em 1942 | Foto: Reprodução

A protagonista de “Minha Vida de Menina” é Helena, que mora com os pais e três irmãos em Diamantina, norte de Minas Gerais. O pai trabalha na mineração, em busca de diamantes que já foram fartos na região, mas cujas lavras já dão sinais de esgotamento, condenando muitas famílias a uma vida de dificuldades financeiras. A mãe é dona de casa, oriunda de uma família numerosa que conta com uma matriarca abastada, a vó que ainda mantém em sua chácara muitos ex-escravos libertos que se negaram a abandoná-la, seja por falta de alternativa, por idade avançada ou por apego à ex-proprietária.

Helena leva uma vida simples. Em seu diário, iniciado em uma quarta-feira, 5 de janeiro de 1893, relata seu cotidiano de menina do interior, as brincadeiras com os irmãos e os primos, os inúmeros tios e tias, os personagens populares de Diamantina, os festejos, as cerimônias religiosas católicas, os passeios na zona rural. Os momentos de folga da família são passados em um rancho à beira do rio, onde a diversão da meninada é pescar lambari e armar arapuca para capturar passarinhos (essa última atividade hoje seria condenada pelos defensores dos animais silvestres). Em casa, cada um tem suas obrigações domésticas. Cada um dos filhos mais velhos é dono de uma galinha, da qual coleta os ovos, para comê-los ou para vendê-los.

Alice Dayrell Caldeira Brant, autora de “Minha Vida de Menina”, que assinou com o pseudônimo de Helena Morley, com o qual se tornou famosa no Brasil e no exterior | Foto: Reprodução

Os textos escritos pela menina Helena têm um quê de ingenuidade, mas não são apenas bonzinhos. Ela às vezes confessa seus maus pensamentos, malcriações e outras ações não tão elogiáveis, mas que ajudam a traçar um perfil humano da protagonista, pois na realidade ninguém de nós é totalmente herói ou vilão. Também apresentam os pensamentos e a cultura da época, com alguns preconceitos velados em relação às pessoas negras, que hoje chamaríamos claramente de racismo. Mas temos de lembrar que a garota é fruto de sua época. E está neste detalhe a ser considerado a maior riqueza da obra de Helena Morley, fato que torna seu livro um clássico da literatura brasileira.

A avó da protagonista é um dos elementos centrais da narrativa, ao lado da mãe e dos irmãos Luisinha e Renato. Helena diz claramente que é a favorita da vovó, em meio a um grupo numeroso de netos, pois esta a considera a mais esperta e inteligente de todos, e não se cansa de agradá-la, o que causa um certo incômodo, mas também muito orgulho à personagem. A morte da matriarca a deixa inconsolável, e a briga dos filhos na hora do inventário é narrada com tristeza por uma menina que vê a família se desagregar por causa da herança (o que ainda acontece muito nos dias de hoje).

Alice Dayrell Caldeira Brant: jovem | Foto: Reprodução

Livro obteve sucesso no Brasil e no exterior

Um fato que me chamou a atenção é quando Helena conta como o avô, quando vivo, determinava o casamento de suas tias. No Natal ele escolhia dois pretendentes para as filhas que ficavam noivas e se casavam no Natal seguinte. Nenhuma delas tinha o direito de reclamar. Só escaparam dessa situação de casamento arranjado uma tia, pois o noivo escolhido sofreu um imprevisto, e sua mãe, que teve a sorte de atingir a idade de contrair matrimônio quando o vovô já havia falecido.

Aliás, outro detalhe é que ela sempre reforça que a mãe gosta muito do pai, fica triste quando ele se ausenta nos dias de semana na labuta de minerar diamantes, e chega até a deixar os filhos com a avó para cuidar do marido quando ele adoece no trabalho. Para os goianos, é interessante saber que os moradores de Diamantina também gostavam (e ainda devem gostar) de saborear o pequi, essa fruta que é um clássico da gastronomia de Goiás. No texto escrito na sexta-feira, 11 de outubro de 1895, Helena relata: “Hoje Maria Antônia me convidou para ir a sua casa comer pequi. A única casa em que a gente pode se fartar de pequis, mangabas, magarinos e outras coisas da roça é a casa de seu Marcelo porque ele recebe aos alqueires de uns amigos do Mendanha.”

À medida que vai deixando de ser menina e se tornando uma adolescente, Helena começa a gostar de frequentar festas com os primos e, às vezes, confessa que por isso negligência a escola. Aliás, ela estuda e tem como sonho se tornar professora (uma das poucas alternativas profissionais da época para as mulheres do interior além do casamento). Confessa que também que costumava fazer uma “cola” das matérias para passar nos exames finais escritos (quem nunca fez isso?) e decorava os conteúdos, mesmo sem entendê-los, para as provas orais.

“Minha Vida de Menina” é um livro delicioso, que deve ser degustado devagar, da mesma maneira que a gente saboreia um doce de leite mineiro com queijo fresco, aos poucos, capítulo por capítulo, para se embrenhar nos “causos” desse tipo de infância que se perdeu nas brumas do tempo. Helena Morley nasceu em 1880 em Diamantina. Quando tinha 12 anos de idade, começou a escrever um diário, que foi publicado em 1942. A obra logo alcançou grande sucesso. A escritora faleceu em 1970, no Rio de Janeiro.

“Minha Vida de Menina” é a única obra de Helena Morley, talvez por isso mesmo seja tão grandiosa. O livro ganhou o aplauso dos notáveis críticos Alexandre Eulálio e Roberto Schwarcz e foi publicado no exterior. Helena Morley é o pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant.

Mariza Santana é crítica literária. Email: [email protected]