Miguel Jorge, o problema da linguagem e a conexão com Guimarães Rosa
30 julho 2023 às 00h00
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Carlos Augusto Silva
Miguel Jorge é um patrimônio da cultura goiana. Em Goiás, vê-se Miguel Jorge como símbolo de arte e movimento. Seu campo de atuação é a literatura, seja na poesia, no teatro, no romance ou conto, mas sua figura pública transcende a do escritor, tornando-se símbolo de inteligência e engajamento.
Sua contribuição é vastíssima e de peso, tanto pela quantidade, como pela qualidade, pela pluralidade de sua temática e forma. Mas mesmo assim, como acontece com todo competente escritor, há em sua literatura uma unidade: ela se funda e se estabelece na busca do moderno, do presente, da linguagem como engrenagem da edificação de sua obra.
O conto “Que mais digo ao senhor?”, do livro Lacraus”, de 2004, é uma peça assim: moderno em sua estrutura, ousado em sua temática, mas ligado a uma tradição da modernidade literária, desde o seu início, até os limites dessas experiências modernas, que desaguaram na subversão de gêneros e tiveram seu clímax no século XX. Nessa literatura do século XX a busca da linguagem, de uma forma singular de expressão artística, é recorrente, daí surgirem técnicas como o fluxo de consciência, técnica cinematográfica, noveau roman, entre outros.
Na esteira dessa filiação de inovação e reconfiguração da literatura, a oralidade também encontrou o seu lugar, e sua expressão mais contundente, no que diz respeito à experiência brasileira, é o romance “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa.
Neste romance de Guimarães Rosa, talvez um dos três maiores da literatura brasileira, e por que não dizer, um dos mais inventivos do século XX em todo o mundo, um sujeito conta a um interlocutor, cuja voz não aparece, suas experiências, e guarda, dentro da narrativa explícita, um segredo que se revela apenas no final do livro, dando à tradição oral uma perspicácia especial na construção de seu enredo.
Lá em “Grande sertão: veredas, um dos temas é o amor metafísico que Riobaldo, um velho homem sertanejo, sentiu por Diadorim, que ele acreditava ser um de seus parceiros de bando. O problema da sexualidade é fortemente apresentado, já que Riobaldo jamais desejara outro homem, tendo tido até ali uma vida plenamente resolvida em sua heterossexualidade. Riobaldo percebe haver por parte de Diadorim a mesma apreciação por sua pessoa, mas velado permanece esse amor, velado permanece esse desejo.
Ao final, revela-se que Diadorim na verdade era uma mulher vestida de homem, e a heterossexualidade de Riobaldo, colocada em jogo durante toda a narrativa, é elevada a uma categoria de extrassensorial, pois pode ele perceber, nos olhos de Diadorim — que Riobaldo exaustivamente contempla durante o livro, sendo a única parte do corpo do personagem que é objeto de seu desejo a ser descrita e contemplada com louvor —, a mulher que habitava aquele corpo de homem.
O conto “Que mais digo ao senhor”, de Miguel Jorge, apresenta o relato de um presidiário que descobre, dentro da prisão, a possibilidade de busca pelo prazer na figura de outro homem. Ele narra ao carcereiro toda a sua trajetória vivida com seu antigo companheiro de cela, e como foram separados. Ao final, pede-lhe um favor: que este leve ao outro um cordão através do qual eles se comunicaram durante o ato sexual, podendo assim compartilhar o gozo solitário de suas atividades sexuais. Este conto estabelece profundo contato com a narrativa de João Guimarães Rosa, tanto pela forma, como pelo conteúdo.
Pela forma, em primeiro lugar, por se tratar de um discurso oral que se destina a um interlocutor cuja personalidade podemos identificar pela profissão somente, e que não se manifesta durante toda a projeção do discurso do personagem que se apresenta pela fala. Pelo conteúdo, em segundo lugar, porque dialoga com as temáticas da sexualidade e suas variantes nas vertentes heterossexual e homossexual, e de como a posição do personagem em afirmar recorrentemente ao seu interlocutor que ele “é um homem” deixa clara a ideia de que há uma problematização da ocasião que o leva à relação com seu companheiro de cela, e que esta problematização deixa este personagem em uma fronteira densa e particular do lugar de sua orientação sexual.
Esta relação é óbvia e facilmente percebida, logo, é apenas a cortina na qual se funda a narrativa de Miguel Jorge. O seu problema, tanto como em João Guimarães Rosa, é outro.
Engana-se quem identifica nesse conto a temática homoerótica como mola mestra, leitmotiv ou mote principal do tema. O que funda a narrativa de “Que mais digo ao senhor” é o problema da comunicação, da expressão de um sentimento, da sua transubstanciação corporal e material, tanto que, na ausência do corpo, um cordão substitui a presença, a pele, a linguagem.
Esses personagens, periféricos em suas essências, tal como são a maior parte dos personagens de Louis-Ferdinand Céline, vivem um dos mais explorados dramas da literatura moderna: a solidão e a liberdade. Essa situação limite – o cerceamento da liberdade de ir e vir (o que mais resta a um homem que perdeu isso?) – leva as figuras aos escombros de suas personalidades, e nesse contexto de carências e essências expostas, o outro como afirmação da vida parece ser a única senda através da qual o que lhes resta de humanidade pode se manifestar. Aqui, o cordão que une também possibilita a existência do prazer compartilhado.
Solidão e linguagem. Gozo e sobrevivência. Exaustão e encantamento.
Carlos Augusto Silva é crítico literário. Colaborador do Jornal Opção.