Joel Cavalcanti

O ano de 1913 marcou o 300º aniversário da dinastia Romanov, e vivia-se naquele momento o auge econômico do império russo, que perduraria até 1917, quando a Revolução pôs fim ao regime absolutista dos czares.

Naquele ano, foram lançados 332 livros de poemas no país que experimentava uma verdadeira ebulição no campo das artes com o surgimento do futurismo, que propunha uma radical inovação estética da literatura. Foi em 1913 também que foi lançado “Eu!”, o primeiro livro de Vladimir Maiakóvski (1893-1930), então com 20 anos de idade, transformando-se na melhor realização poética dos experimentos que vinham sendo gestados pelo grupo artístico a que ele pertencia. É esta obra seminal que chega agora em tradução inédita para o português por meio do poeta Astier Basílio.

Maiakóvski: poeta russo que viveu apenas 36 anos | Foto: Reprodução

A obra “,Eu! + todos os poemas anteriores” (Arribaçã, 150 páginas, R$ 50) está em pré-venda e reúne ao todo 20 poemas, dos quais 14 foram escritos por Maiakóvski e os demais são traduções de autores com os quais Maiakóvski manteve um diálogo intertextual. “O que se vê é um Maiakóvski em busca de sua voz. Alguns poemas foram compostos respeitando o sistema de metrificação vigente, uma plataforma tradicional em torno da qual era posta a inovação metafórica com ênfase no universo urbano. Aos poucos, Maiakóvski vai arriscando na criação de novas estruturas rítmicas, trabalhando com a quebra do verso e encontrando o estilo que veio consagrá-lo. Nesta obra, temos o primeiro Maiakóvski, poeta que é uma espécie de unanimidade por aqui na Rússia, mesmo quem não o aprecie, reconhece a grandeza de sua produção inicial”, destaca o tradutor.

Astier Basílio já publicou 11 livros de poesia e mora na Rússia desde 2017. Lá se tornou mestre em literatura russa pelo Instituto Estatal Púchkin e atualmente é doutorando pelo Instituto de Literatura Maksim Górki. É de lá que ele mantém a coluna semanal aos sábados no “Jornal A União”. Para a edição bilíngue de “Eu!,” ele incluiu textos, comentários e notas, além de ilustrações feitas pelo próprio Maiakóvski, com a reprodução do fac-símile do livro. Alguns poemas selecionados já haviam sido traduzidos pelos irmãos Augusto de Campos e Haroldo de Campos. O maior desafio para o tradutor foi entender os poemas, porém todas as dúvidas foram solucionadas por meio da fortuna crítica acumulada sobre Maiakóvski, em uma pesquisa que acabou se tornando objeto dos conteúdos de apoio à leitura dos poemas.

“Imaginei que poderiam ser as dúvidas do leitor e sempre que eu lia comentários que me esclareciam ou que procuravam interpretar o poema, eu resolvi compartilhar. Há muita referência a Lili Brik, com quem Maiakóvski teve um relacionamento amoroso por toda a vida e que se dedicou à sua obra. Muita coisa que era óbvia ao leitor russo do começo do século, como, por exemplo, bonecos numa vitrine de uma loja do Centro de Moscou, hoje são obscuros e precisam de uma nota para ajudar o leitor a se sentir dentro do universo poético. No prefácio, procurei estabelecer distinções entre o Maiakóvski da Rússia e o do Brasil: a recepção é diferente nos dois países. Há um texto especificamente sobre o livro, no qual chamo atenção para o verso ‘eu amo ver como as crianças morrem’ — verso escandaloso até para a sensibilidade dos dias de hoje”, exemplifica.

A linha estética que se sobressai na obra é evidentemente o futurismo, definido pelo tradutor como “o canto de exaltação ao barulho da nova paisagem que surgia no século 20”. “Maiakóvski, desde sempre, vai se interessar em registrar o espetáculo do futuro que estava ocorrendo diante dos seus olhos. Há muito ferro, muita rua, prostitutas, luzes, barulho, bondes…”. Mas o que mais impressiona Astier Basílio na construção poética de Maiakóvski é a transposição dos elementos das artes plásticas para a poesia. “Os deslocamentos de perspectiva, a relação entre os espaços, quebra do figurativo, tudo isso transposto, com mestria, nesses poemas iniciais. David Burliuk, fundador do futurismo e primeiro mestre de Maiakóvski, escreveu depois que a seu pupilo interessava a ‘natureza-morta’ urbana: os cartazes, letreiros, as propagandas”, lembra Astier Basílio.

Óssip Brik, Lili Brik e Maiakóvski | Foto: Reprodução

Para estabelecer essa compreensão ajuda saber que, quando escreveu o livro, Maiakóvski estudava na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou. A recepção de “Eu!,” em 1913, contou com a análise de um dos mais importantes críticos da época, Valéri Briussov, poeta simbolista que escreveu uma resenha positiva sobre o livro. Há também uma nota escrita por Maksim Górki, àquela altura, um dos mais respeitados escritores do país, sobre o livro.

 Fora do escopo da publicação original, “todos os poemas anteriores” referem-se aos versos que foram publicados em revistas, muitas das quais editadas pelos próprios futuristas, como foi o caso da coletânea “Uma bofetada no gosto do público”, e depois publicados no segundo livro do poeta, em 1919, e, posteriormente, ordenados cronologicamente nos volumes de obras completas do autor.

Astier Basílio: escritor e tradutor brasileiro | Foto: Facebook

A escolha do pronome pessoal em primeira pessoa do singular para nomear a obra não vem por uma razão biográfica ou personalística. O que justifica isso é a influência do além-homem, de Nietzsche, cuja leitura influenciara os simbolistas, como aponta o tradutor. “Coincidência ou não, poucos meses depois de lançar o seu livro Eu!, Maiakóvski estreava no teatro como ator e dramaturgo. Qual era o nome da peça? Vladimir Maiakóvski”, remonta ele.

Ainda sobre o título do livro, há uma coincidência com o homônimo primeiro e único livro de poemas do paraibano Augusto dos Anjos, lançado alguns meses antes, no Rio de Janeiro. “Talvez tenhamos aí um bom tema para quem quiser se debruçar em estudo de literatura comparada. Talvez haja um ponto em comum entre ambos que seja a forma como os poetas observam a paisagem urbana: o Recife de Augusto dos Anjos e a São Petersburgo e Moscou de Maiakóvski. Fica a sugestão. Pode render um ótimo ensaio.”

Joel Cavalcanti é jornalista. Email: [email protected]. O texto é transcrito com autorização do editor do “Jornal A União”. O título original é “O poeta russo do ‘Eu!’, mas o Jornal Opção optou por mudá-lo.

Um poema de Vladimir Maiakóvski/Tradução de Astier Basílio

E você?

Eu lambuzei logo o menu

e a tinta que do copo entorna;

na geleia de boi eu mostrei o

osso do mar de cara torta.

Escama um peixe férreo e nele

eu li o chamar dum lábio novo.

E você

noturnos podia

verter

na flauta de um cano de esgoto?