O pesquisador Daniel Aarão Reis mergulha em documentos e depoimentos preenchendo as lacunas sobre Prestes

Luís Carlos Prestes seguiu um caminho diferente daqueles que, como ele, figuram na galeria dos grandes políticos brasileiros. Talvez por isso tenha feito história | Foto: Reprodução
Luís Carlos Prestes seguiu um caminho diferente daqueles que, como ele, figuram na galeria dos grandes políticos brasileiros. Talvez por isso tenha feito história | Foto: Reprodução

Salatiel Soares Correia

Ser fiel a si mesmo em um mundo onde tudo à sua volta joga contra suas ideias requer muita coragem. Só a solidez do caráter, alimentada pela firmeza das convicções, constrói homens desse gênero, que, aliás, são raros, muito raros. Quem segue por esse caminho de coragem precisa ter, antes de tudo, muita fé e ser consciente daquilo que irá enfrentar. Muitos, os mais fracos, acabam sucumbindo às tentações. Com isso, desistem da luta ou são cooptados pelo status quo. Os mais fortes pagam o preço de nadar contra a corrente. Passam, às vezes, a vida inteira lutando e tendo a consciência de que, como Moisés, jamais alcançarão a “terra prometida”. Estes são pregadores.

A vida pública brasileira teve políticos que ocupam seu lugar na história. Dom Pedro II, Getúlio Vargas e Juscelino Kubistchek frequentam a galeria de nossos maiores estadistas. Todos eles, de uma for­ma ou de outra, tiveram a consciência do papel histórico que desempenharam no momento que comandaram os destinos da nação. São reconhecidos por isso. Nenhum deles, entretanto, seguiu um caminho solitário e alicerçado unicamente na­quilo que acreditavam. Eles almejaram e alcançaram aquilo que todo o político almeja: o poder.

Em busca do poder ou procurando nele se manter, souberam, como animais políticos que foram, fazer a quadratura dos círculos. Tiveram aquela habilidade que bem ensina  Nicolau Maquiavel em seus escritos a respeito da esperteza da raposa.

O personagem que passo, neste espaço, a comentar seguiu um caminho absolutamente distinto de Getúlio Vargas, Juscelino Kubistchek e Dom Pedro II. Inseriu-se na história da política na­cional tanto quanto eles e, seguramente, na história da política internacional mais do que eles. Construiu esse caminho de uma maneira absolutamente solitária, o que lhe custou muito caro: precisou pagar durante toda a vida o preço dessa caminhada. Um caminho movido única e exclusivamente por suas convicções. Para ele, viver foi sinônimo de luta. Lutou até sua morte, que veio aos 90 anos.

Soube impor sua liderança desde os primeiros tempos de estudante de engenharia na Escola do Exército, no movimento tenentista, na epopeia empreendida, por dois anos, por aqueles bravios sertões brasileiros já nos anos da década de 1920; liderança que o tornou conhecido internacionalmente. Com a vitória da Revolução de 1930, viu seus antigos aliados seguirem o rumo do poder na corte getulista e ele, convertido ao marxismo, tornar-se um pregador solitário do “diabo que come criancinhas” num Brasil movido pelo conservadorismo oligárquico: o comunismo. Foi perseguido, preso por nove anos, caçado muitas vezes como um rato de casa em casa, num bairro do Rio de Janeiro, pela polícia política de Getúlio Vargas, viu a esposa grávida ser entregue à Alemanha nazista para ser assassinada, sofreu por anos a dor do exílio. Sofreu o inferno aqui mesmo na terra, sem nunca perder a fé, sem nunca perder a esperança.

Quando se fala da causa comunista no Brasil o nome que emerge da história política do país é um só: Luís Carlos Prestes. É bem verdade que outros comunistas existiram, mas são, sinceramente, secundários quando comparados a Prestes. Quem se propôs a mergulhar, durante cinco anos, em uma extensa pesquisa a respeito da vida desse grande homem de lutas, foi o historiador Daniel Aarão Reis e, assim, brindou-nos, esse pesquisador, com um belíssimo ensaio de mais de 500 páginas, intitulado “Luís Carlos Prestes –– Um revolucionário entre dois mundos”. Apresentemos, pois, o autor aos leitores destas linhas para, em seguida, percorrermos juntos sua extensa pesquisa a respeito do caminhar que foi a vida do “Cavaleiro da Esperança”, vida essa que se confunde com um período muito importante da história do país.

A vida nunca foi fácil para Prestes. Órfão de pai militar, desde criança, teve de ajudar a mãe, Leocádia, no sustento da casa cheia de irmãs. Foi trabalhar logo cedo. Entrou para o Colégio Militar, onde cumpriu suas obrigações com grande afinco. Aqueles tempos repletos de adversidades ajudaram a formar o caráter do líder. Da adversidade, veio a eterna cumplicidade com a mãe Leocádia, que perdurou en­quanto ela viveu.

Aluno brilhante, Prestes entrou para história da escola militar como um de seus três melhores alunos (os outros dois foram Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva). Já engenheiro militar, Prestes logo se enveredou para o primeiro grande movimento político liderado entre oficiais de média e baixa patente contra o governo federal governado por Arthur Bernardes: o tenentismo. Foi um líder nato e reconhecido entre seus pares desse movimento.

Os companheiros Juarez Távora, Miguel Costa, entre outros, eram unânimes em afirmar “a franca lealdade [de Prestes] que fala com clareza e simplicidade, argumentando com dados convincentes, como se estivesse empenhado em resolver uma equação fazendo largo uso da linguagem algébrica na explanação de todos os problemas”. Outro companheiro de luta, João Alberto, relata que “Prestes estava à altura da missão que escolhera. Infatigável, aparecia em toda parte, apressando a tropa para marchar, dando ordens e tomando providências”.

Outros viam nele um homem “muito respeitado por todos os sublevados, como um homem decidido, corajoso e inteligente”. Certamente, o movimento tenentista e a decisiva liderança do ‘cavaleiro da esperança” seriam o germe para a maior epopeia, que se tem notícia, vivida naqueles bravios sertões do Brasil, nos anos da década de 1920: a Coluna Prestes.

Epopeia

Mestre pela Universidade de Paris VII, Daniel Aarão Reis militou por muitos anos no movimento estudantil. Entre outros livros, lançou “Revolução Perdida” e “Ditadura e democracia no Brasil” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Mestre pela Universidade de Paris VII, Daniel Aarão Reis militou por muitos anos no movimento estudantil. Entre outros livros, lançou “Revolução Perdida” e “Ditadura e democracia no Brasil” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

A Coluna Prestes é uma consequência direta do movimento tenentista e de um conceito que seu líder mais expressivo sempre defendeu para enfrentar o poderio das tropas do governo federal: o de guerra de movimento. Para ele, “a guerra no Brasil, qualquer que seja o terreno, é a guerra de movimento. Para nós, revolucionários, o movimento é a vitória. A guerra de reserva é a que mais convém ao governo que tem fábricas de munição, fábricas de dinheiro, e bastantes analfabetos para jogar contra as nossas metralhadoras”.

E foi movimentando de norte a sul este país a cavalo e vencendo os sertões bravios daqueles anos que a Coluna Prestes percorreu, durante dois anos, uma distância equivalente a ida do Brasil a China: 24 mil quilômetros. Em um Brasil sem nada. Sem estradas, vencendo matos, florestas… Lá iam os revolucionários na frente e o exército vinha atrás.

O sentimento de aventura e fidelidade entre os chefes e integrantes da Coluna eram aspectos muito fortes. Lutavam, comandantes e comandados, pela mesma causa, que se centrava em derrotar o governo do então presidente Arthur Ber­nardes. A respeito dessa coesão entre os integrantes da Coluna Prestes, Daniel Aarão Reis, referindo-se aos escritos de Italo Landucci, revela que “só a cega confiança nos seus chefes e a solidariedade fraternal, cimentada pela sequência ininterrupta de perigos comuns, podiam realizar o milagre daquela coesão”.

Sim, era preciso coisas invisíveis tais como a coesão, ideal e coragem para enfrentar os desafios dos frios do sul do Brasil, cruzando Minas Gerais, entrando em Goiás e indo rumo ao nordeste e, retornando por Goiás, indo rumo à Bolívia, em um ziguezague sem cessar, tendo as tropas do governo em encalço. Muitos bravos morreram pelo caminho. Em média, cavalgavam trinta e seis quilômetros por dia. Apresenta-se a seguir o relato de um integrante da coluna, Lourenço Moreira Lima, a respeito do dia a dia da coluna.

“Acordávamos às quatro horas da manhã. Fazíamos as nossas abluções, tomávamos café e às vezes comíamos um churrasco e começávamos a viajar às cinco da manhã. […] quando não havia café, servia-se um abundante xibéu, uma beberagem feita de várias coisas: cravo, canela, erva-doce, limão e de uma variedade imensa de folhas: cajueiro, goiabeira, laranjeira, limoeiro, açoita-cavalo, capim-santo […] entre dez e onze horas, parada para sestear. Almoçávamos, dormíamos até cartoze horas, novo café ou copioso xibéu, e mais marcha até cinco ou seis horas da tarde… ou seja, oito a dez horas de marcha por dia […] quando dava, aproveitava-se o luar para a realização de grandes etapas; outras vezes, acampávamos noite feita, para aproveitar aguadas e pasto.”

A epopeia da Co­lu­na Prestes terminou com o exílio de seus principais líderes e integrantes na Bolívia e na Argentina. Com a mudança de governo foram eles, paulatinamente, perdoados sem jamais terem sido derrotados. Expressivos líderes da Coluna Prestes, a exemplo de Juarez Távora e Cordeiro de Farias, seguiram os novos rumos vitoriosos da Revo­lução de 1930, que colocaria Getúlio Vargas no poder. Prestes iniciaria, a partir daí, um novo caminho, solitário e inteiramente coerente com as convicções às quais acabaria por converter-se na Argentina, a partir das exaustivas leituras de Lenin e Marx: o caminho do comunismo.

O comunismo se tornou a grande razão de viver do “Cavaleiro da Esperança”. Em nome dessa causa, viu um a um de seus antigos companheiros do movimento tenentista dele se afastarem. A fé no comunismo foi o combustível que deu energia a Prestes e a coragem necessária para enfrentar os inúmeros obstáculos que teria pela frente, por defender esse sistema, em uma sociedade tão conservadora como era aquela do Brasil das décadas de 1930 a 1950. Desde os anos de clandestinidade, não tinha o líder da causa comunista nenhuma residência fixa. A perseguição da polícia varguista, comandada por Filinto Müller, era implacável.

Prestes amargou, sem nunca se abalar, longos nove anos de prisão. Sofreu com a deportação da companheira Olga Benário para Alemanha nazista, levando com ela, em seu ventre, a filha Anita Leocádia. Sim, a vida do filho de dona Leocádia foi uma eterna provação de fé no ideário comunista. Vale ressaltar que, no breve período em que esse sistema político se tornou um partido legal no país, o “Cavaleiro da Espe­rança” se elegeu senador com uma votação im­pres­sionante. Nada disso era surpreendente, pois há muito o líder comunista já era um mito popular nos quatro cantos do país.

A lua de mel do conservadorismo brasileiro com os comunistas na legalidade duraria pouco tempo. Logo, o partido voltaria à clandestinidade. Uma nuvem negra cairia sobre o país. Era o Golpe de 1964. A caça aos comunistas se tornara implacável. E a Prestes. Assim, mais uma vez, Prestes iria parar em um lugar que ele já havia vivido por três anos: na União Soviética. A situação agora era diferente. Ia com ele sua se­gunda esposa e seus sete filhos, que não falavam uma palavra de rus­so, para enfrentar as duras temperaturas do inverno daquele imenso país.

Tendo Prestes se tornado um líder cuja grandeza era reconhecida internacionalmente, o lógico seria pensar que, na União Soviética, esse reconhecimento deveria se tornar mais evidente. Deveria, mas não foi. De um lado, os soviéticos reconheciam sua importância para a causa e, por essa razão, em certos momentos, o governo daquele país o tratava como estadista ao ponto de Prestes ser recebido pelas maiores autoridades do Kremlin.

De outro lado, nos momentos de maior distanciamento, os russos colocavam intermediários do segundo escalão do partido para se relacionarem com ele como que evidenciando certa perda de prestígio político de Prestes junto à alta cúpula. Numa das últimas visitas do filho da dona Leocádia na terra de Tolstói, o governo russo chegou a mandar um enviado com o recado de que ele não era bem-vindo na União Sovié­tica. Não seria esta atitude o reflexo das lutas internas dentro do Partido Comunista Brasileiro e que culminaria com o desligamento de Prestes do PCB? A Cuba de Fidel Castro sempre respeitou e venerou a figura do “Cavaleiro da Esperança” como um grande expoente do comunismo internacional. Fidel sempre foi a ele mais fiel que o Kremlin.

O Partido Comunista no Brasil mais se parecia com uma colcha de retalhos que refletia inúmeras lutas internas em torno do poder. Prestes tinha consciência de sua importância histórica. Em nome dela, procurava se manter distante das disputas internas. Como acirramento dessas lutas, o filho de dona Leocádia acabou, já no final de sua militância política, abrigando-se em outra sigla de esquerda, sem jamais deixar de ser o que sempre foi: comunista. Eram tempos de abertura democrática e o “cavaleiro da esperança” voltaria para o país para viver seus últimos anos de luta no caminho solitário que seguiu.

Moisés brasileiro

Fora do partido comunista e sem as subvenções que o partido lhe concedia para manter sua imensa família, a Prefeitura do Rio de Janeiro ofereceu a Prestes uma aposentadoria vitalícia de 10 salários mínimos. O filho de dona Leocádia, prontamente, recusou. Lembrou, ele, ao prefeito Roberto Saturnino Braga do momento nada bom pelo qual atravessava a Prefeitura ante a falta de recursos que demitia funcionários. Era a coerência expressa no caráter de um homem que foi íntegro a vida inteira.

Prestes foi salvo pelo seu grande amigo de toda uma vida, o também comunista, o arquiteto Oscar Niemayer, e por um grupo de amigos. Relata o autor que “Niemayer doara um apartamento na aprazível Rua das Acácias, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, onde Prestes residiria até o fim de seus dias. O sustento seria complementado, segundo Dênis de Moraes e Francisco Viana, por uma ‘razoável quantia em dólares’ oferecida por partidos comunistas europeus”.

Fora do PCB, o comunismo se manteve latente em Prestes, mes­mo fora do partido que não existiria no país sem a história desse homenzinho de pequena estatura (1,63 metro), mas gigante nas ações, no caráter e na coragem de quem viveu a vida para lutar. Já quase com noventa anos continuava o seu papel de Moisés em torno da “terra prometida”.

Lutou junto com Leonel Brizola pelas Diretas Já, pregava o ideário comunista pelo país afora, retornou à União Soviética. Pouco depois de retornar de lá, já um nonagenário, o velho gigante sucumbiu. O “Cavaleiro da Esperança” estava morto. Daniel Aarão Reis assim descreve seus últimos momentos: “No dia 7, na companhia da mulher e de Mariana, Anita e Yuri [filhos], chegado havia pouco da União Soviética, Prestes perdeu a última batalha. Não teve agonia, ‘foi apagando lentamente’ no dizer de Yuri. Eram duas e meia da madrugada, do dia 7 de março de 1990”.

No dia 7 de março de 1990, Leonel Brizola, que era um homem forte para as coisas da vida, sucumbiu de emoção. Na época, não entendi porque aquele homem de tantas lutas se fragilizava ante ao caixão de Luís Carlos Prestes. Concluídos os escritos de Daniel Aarão Reis, hoje, compreendo o porquê. Nenhuma figura pública ombreou com a história desse pequeno grande gaúcho. Sua história de vida desperta paixões. Desde as lutas no movimento tenentista, a epopeia da coluna Prestes, seu caminho solitário e corajoso em relação à causa comunista até as consequências que esta decisão lhe propiciou ao longo da vida.

Prestes foi um Moisés com uma diferença quanto a este grande personagem bíblico: Moisés conduziu seu povo à “terra prometida”, mas não chegou lá. Prestes fez sua pregação a vida inteira, de acordo com suas convicções sempre buscando a “terra prometida”; no entanto, o Brasil, tão conservador e culturalmente arraigado aos valores capitalistas, foi como aquela amante que quanto mais se ama, mais se é traído. O “Cavaleiro da Esperança” foi, sem dúvida, a mais apaixonante figura pública da política brasileira!

Resenha

 

 

 

Luís Carlos Prestes – Um Revolucionário Entre Dois Mundos
Autor: Daniel Aarão Reis | Companhia das Letras
Pre­ço: R$ 52,90

 

 

 

 

Salatiel Soares Correia é engenheiro, bacharel em Administração de Empresas e mestre em Planejamento pela Unicamp.