Livro organizado por Gustavo Franco discute os 30 anos do Plano Real
22 setembro 2024 às 00h00
COMPARTILHAR
Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Acabo de concluir a leitura de “30 Anos do Real” e vejo-me imerso nas reflexões e memórias que essa obra traz à tona. O livro, organizado por Gustavo Franco, é uma verdadeira viagem no tempo, guiada pelas mãos de três dos mais brilhantes economistas que o Brasil já conheceu: Franco, Edmar Bacha e Pedro Malan. É como se, ao virar cada página, eu estivesse ao lado deles, sentindo a pressão e o entusiasmo de criar algo que mudaria para sempre a história econômica do país.
Essas crônicas, escritas em meio ao turbilhão dos acontecimentos, capturam a essência de um período em que o Brasil, finalmente, ousou enfrentar seus fantasmas inflacionários. Não são meros relatos técnicos; são narrativas carregadas de emoção, de quem viveu intensamente cada decisão, cada acerto e cada dúvida. A leitura me fez refletir sobre o poder da imaginação quando aplicada com rigor e propósito, algo que esses três economistas demonstraram com maestria.
“30 Anos do Real” convida-nos a revisitar um momento crucial, quando o sonho de uma economia estável se tornou realidade a partir de um plano que não apenas resolveu um problema imediato, mas que, sobretudo, plantou as sementes para um futuro mais promissor. Ao concluir a leitura, percebo que este livro é mais do que uma obra sobre economia; é uma celebração do esforço humano, da capacidade de imaginar e realizar, e da importância de se manter fiel a um propósito maior, mesmo diante das maiores adversidades.
Uma usina de ideias
Gustavo Franco, na introdução do livro em coautoria a Pedro Malan e Edmar Bacha, para comemorar os 30 anos do Plano Real, destaca, de forma incisiva, o papel decisivo do Departamento de Pós-Graduação e Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) na concepção e implementação do Plano Real. Franco enfatiza como a PUC-Rio transformou-se em uma usina de ideias, fornecendo a base intelectual e a mão de obra altamente qualificada que foram fundamentais para o sucesso desse projeto econômico, considerado um dos mais imaginativos e transformadores da história recente do Brasil.
A influência da PUC-Rio na formulação do Plano Real e na administração de grandes instituições econômicas do país é inegável, revelando uma conexão profunda entre a academia e a prática econômica que ainda guarda muitos mistérios a ser desvendados.
Ao longo de seus 45 anos de história, o Departamento de Pós-Graduação e Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) formou um total de 490 mestres em Economia. Desses, 210 seguiram para completar seus doutorados em universidades de primeira linha na Europa e nos Estados Unidos, consolidando a reputação da PUC-Rio como uma das principais formadoras de economistas de alto nível no Brasil.
Ademais, o departamento também formou 91 doutores diretamente na instituição, além de milhares de graduados que seguiram carreiras de destaque em diversas áreas. A excelência acadêmica e a capacidade de formar profissionais preparados para enfrentar os desafios globais colocaram a PUC-Rio no centro das decisões econômicas do país, influenciando significativamente tanto a teoria quanto a prática da economia brasileira.
Essa excelência na formação de mestres e doutores reflete o rigor acadêmico e a qualidade do corpo docente do Departamento de Economia da PUC-Rio, que, ao longo das décadas, tem atraído talentos e mentes brilhantes, tanto do Brasil quanto do exterior. O impacto desses profissionais não se restringe à academia; muitos deles ocupam ou ocuparam posições estratégicas em instituições econômicas de grande relevância.
Entre os ex-alunos, destacam-se 22 que se tornaram diretores do Banco Central, com 6 deles alcançando a presidência da instituição. Além disso, 10 ex-alunos integraram a diretoria do BNDES, dos quais 4 chegaram à presidência do banco, e 3 presidiram o IBGE. A contribuição do departamento para a formulação do Plano Real é especialmente notável, com 6 membros da equipe que criou o plano sendo oriundos da PUC-Rio.
Essa trajetória de sucesso consolida o Departamento de Economia da PUC-Rio como uma referência nacional e internacional, uma verdadeira ilha de excelência na formação de economistas que têm desempenhado papéis decisivos na construção e implementação das políticas econômicas que moldaram o Brasil contemporâneo. A PUC-Rio, ao longo desses 45 anos, não apenas formou profissionais de destaque, mas também se tornou um centro de ideias e inovações que continuam a influenciar a economia global.
Quem elaborou o Plano Real
O Plano Real, implementado em 1º de julho de 1994, foi um marco na história econômica do Brasil, especialmente no setor elétrico, no qual representa um verdadeiro ippon nas contas geradoras de “esqueletos” das empresas estatais. A extinção da Conta de Resultados a Compensar, no setor elétrico, da Conta Petróleo, no setor de petróleo, e da Conta Mobilização de Recursos, na Rede Ferroviária Federal, colocou fim à prática de inflar balanços com receitas inflacionárias não oriundas da produção real, levando muitas empresas ao estado falimentar.
Fernando Henrique Cardoso (FHC), apesar de algumas oscilações críticas, demonstrou grande habilidade política, alavancada por sua formação acadêmica, ao atrair as mentes mais brilhantes da inteligência econômica do país. Ele conseguiu manter o plano no rumo certo durante sua presidência, transformando-o em um pilar de sua plataforma política.
Rubens Ricupero, mesmo após o escândalo das parabólicas, desempenhou um papel competente na liderança do plano, enquanto Ciro Gomes, que teve uma passagem relâmpago de três meses no Ministério da Fazenda, pegou carona no sucesso do Plano Real, mas sua contribuição real foi limitada.
A verdadeira alma do Plano Real foi a dupla André Lara Resende e Pérsio Arida. Eles formularam brilhantemente toda a sustentação teórica do plano, incluindo a criação da Unidade Real de Valor (URV), que foi essencial para a transição entre a antiga e a nova moeda. Sem essa dupla de gênios, o plano simplesmente não existiria.
Edmar Bacha, com seu doutorado pela Universidade de Yale, foi fundamental na implementação do plano, atuando mais como um excelente gerente do que como um criador. Gustavo Franco, com PhD por Harvard, também desempenhou um papel crucial na gestão do plano, mas a criação de fato veio da dupla André Lara Resende e Pérsio Arida.
Pedro Malan, um gerente culto e eficaz, preparadíssimo com seu doutorado pela Universidade da Califórnia, contribuiu significativamente para a sustentação do plano, mas não foi o criador. Já Aluísio Mercante, um economista teoricamente fraco, errou ao aconselhar Lula a criticar o Plano Real, uma postura que o isolou politicamente e resultou em críticas à sua tese de doutorado na Unicamp.
Em resumo, o Plano Real é um exemplo de sucesso que teve seus heróis, como Lara Resende e Arida, seus gestores eficientes, como Malan e Franco, e também os caronistas como Ciro Gomes e aqueles que, ao tentar prever seu fracasso, “caíram do cavalo”. Ao longo de 30 anos, o plano provou ser sustentável, consolidando-se como um dos pilares da estabilização econômica do Brasil.
Um plano sustentável
Como o subtítulo de “30 anos do Real” já sugere, o livro é uma coletânea de crônicas construídas no calor do momento. Ou seja, os três autores escreveram esses textos em jornais e revistas especializadas justamente quando era necessário explicar algum fato relevante, como as crises na Rússia, ou, quem sabe, para, de forma sutil, desmascarar os equívocos de previsão ou os oportunistas de plantão que, mais tarde, tentaram pegar carona no sucesso e apresentar-se como verdadeiros autores do Plano Real.
Uma dessas crônicas, intitulada “Oito anos do Plano Real”, foi escrita pelo economista Gustavo Franco, que aproveitou a ocasião para lembrar que, após oito anos, o plano ia muito bem, obrigado. Nesse sentido, ele afirma: “O Plano Real estava concluído quando a inflação brasileira, na margem, atingiu níveis internacionais. Em cerca de dois anos, portanto, a inflação foi reduzida de 50% mensais para praticamente zero”. E tudo isso, claro, sem os tradicionais e milagrosos remédios previstos pelas heterodoxias. Quem não se lembra , dos confiscos, dos congelamentos, das tablitas, e por aí vai? Parece que o simples funcionou melhor do que o complicado, não é mesmo?
E Gustavo Franco, com a sagacidade de quem sabe usar bem a ironia, não deixou de alfinetar um crítico tradicional do Plano, o ex-ministro Delfim Neto, recentemente falecido. Sobre ele, Franco comenta: “Nada mal para o porta-bandeira honorário do Parque Jurássico, o deputado Delfim Neto, que deu ao Plano Real apenas quatro meses de vida e até hoje insiste que fracassou”. Ah, Delfim, quem diria que o plano sobreviveria a todas as suas previsões catastróficas?
Já o ex-ministro Pedro Malan não poupou críticas ao oportunismo de Ciro Gomes. Segundo Malan, “Ciro Gomes apoiou totalmente o Real, àquela altura já um extraordinário sucesso de público”. Assim não vale, grande Ciro, aderir depois que a onça já foi morta não vale! Ah, esses caronistas de última hora…
Quando o Plano Real completou nove anos, Pedro Malan expôs, na crônica “Escolhas Difíceis”, algo que trazia preocupação para os formuladores do Plano Real: o elevado ciclo político dos donos do poder no país, caracterizado pelo abandono dos projetos do governo anterior pelo seu sucessor – que entra e abandona os projetos dos governos precedentes. A respeito desse assunto, o ex-ministro da Fazenda elogia a maturidade com que foi feita a transição do governo de Fernando Henrique Cardoso para o de Luiz Inácio da Silva. Para ele, “a inédita e exemplar transição pós-eleitoral entre a administração que terminava e a que assumia; uma firme e coerente condução da política macroeconômica pelo novo governo, reafirmando, agora, na prática, compromissos com a estabilidade e recusando voluntarismos e efeitos especiais”. Resultado, o compromisso com a estabilidade foi mantido pelo novo governo, o que possibilitou o Plano Real manter o sentido de direção do governo anterior.
Essa prática de maturidade política foi fundamental para o Plano Real manter-se consistente ao longo do tempo. Dessa vez, Lula não deu bola para os conselhos de Aloizio Mercadante, que tinha a seu lado, gente mais inteligente para iluminar o processo decisório. O Plano Real estava acima das questões ideológicas.
Por ocasião da passagem dos 10 anos do Plano Real, Gustavo Franco, numa crônica de sua autoria – leia-se: “Convergência” – mostra-se um economista maior ao comentar uma anomalia cultural existente no país – há muito superada por país do primeiro mundo –, especialmente aqueles países que têm um passado de guerras: questões de interesse nacional transcendem o interesse menor dos partidos políticos. A respeito desse assunto, um dos pais do plano real alerta que “nos primeiros anos do Real não tínhamos a cultura política dos ‘temas suprapartidários’, coisa que os países do Norte aprenderam durante as guerras”.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.