Larissa Rezende de Oliveira

Especial para o Jornal Opção  

“A Terra Inabitável — Uma História do Futuro” (Companhia das Letras, 374 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leites), de David Wallace-Wells, é um livro assombroso e, ao mesmo tempo, esclarecedor. Não porque o autor queira nos assombrar com as notícias do clima, mas porque o esclarecimento sobre o clima é realmente assustador.

David Wallace-Wells não é um cientista da área de ciências naturais voltadas para o clima, mas um jornalista em pleno domínio de seu ofício que, ao longo de décadas, soube reunir, com critério e parcimônia, as “informações mais quentes” sobre as questões do clima em andamento.

Falar em “informações mais quentes” é como falar em corda em casa de enforcado. Pois a questão básica de todo o livro é o desastre iminente da vida humana na Terra, causado pelo aquecimento do planeta, em razão de nossos maus hábitos nos métodos de produção e consumo.

David Wallace-Wells: especialista em jornalismo científico | Foto: Reprodução

Mudar os hábitos de uma pessoa aqui e outra ali é uma coisa. Coisa bem diferente é levar toda ou grande parte da população a um grau de consciência a ponto de proceder a mudança de hábitos coletivamente. Pense em fazer um viciado em ópio a mudar de hábito, deixando o vício. Nossa espécie, sobretudo depois do início da revolução industrial, é viciada em poluir, a se conduzir em fornalhas de luxo, queimando combustível fóssil e lançando gases de efeito estufa na atmosfera.

Neste livro magistral, farto de informações, de escrita fluente e poderosa, sem jargões incompreensíveis, com as ideias encadeadas por graciosa lógica, que nos leva a atordoante compreensão dos fatos e argumentos, o autor começa nos avisando que a situação é “muito pior do que se imagina”. É realmente uma abordagem de impacto.

Traça depois uma gradação de cenários que vai do menos pior ao pior dos mundos, num aquecimento de 2ºC a 8°C, sendo que o desastre causado por 2°C, 4°C ou 8°C, com diferentes tamanhos de  tragédia, “serão determinadas preponderantemente pelo que decidirmos fazer hoje”.

 Em qualquer dos cenários, haverá elevação dos mares e alagamentos em cidades como Miami, Hong Kong, Xangai, Rio de janeiro e em mais uma centena de grandes cidades e pequenos países. Num grau mais elevado, não haverá terras agricultáveis em quantidade suficiente para alimentar a população, florestas tropicais serão varridas por tempestades de fogo e as costas serão assoladas por furações cada vez mais  intensos, o manto das doenças tropicais se estenderá, abrangendo partes do que hoje chamamos de Ártico.

Cerca de um terço do planeta ficará inabitável pelo calor direto e as ondas de calor literalmente sem precedentes passarão a ser condição cotidiana dos seres humanos sobreviventes. Veremos o esgotamento da água doce no planeta, a dizimação da flora e da fauna, inclusive marinha. A questão dos expatriados do clima crescerá exponencialmente e o populismo contra os migrantes certamente levará a guerras em várias partes do mundo, quando não a uma só guerra de amplitude global. O autor convida o leitor a refletir como seria a população inteira viver em Meia Terra, com essa meia terra sendo muito menos salubre, receptiva e amena do que o estado em que se encontra.

Protocolo de Kyoto: aumento da emissão de gases

Parece evidente que o aviso de perigo só tem causado efeito contrário, ampliando o desejo de se arriscar, colocando a população inteira a viver perigosamente. O autor demonstra, com séries históricas, que, depois da assinatura do Protocolo de Kyoto, um tratado internacional ambiental de 1977, com rígidos compromissos para a redução  da emissão  dos gases de efeito estufa, o lançamento desses gases  foi duas vezes maior do que nos 40 anos anteriores.

David Wallace-Wells: seu livro sugere que os humanos precisam “sair” de sua área de conforto e mudar de verdade | Fotos: Reprodução e Jornal Opção

O Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas, fundado em 1988, pela ONU, tem trazido fartas e imprescindíveis informações sobre as violentas alterações climáticas. No entanto, até agora, governos e populações têm feito ouvidos moucos e vistas grossas, sempre engendrando uma indiferença, como se o desastre anunciado e já em andamento não lhes dissesse respeito. Lembra também, de uma forma hilária, não fosse dramática, que, nos últimos 30 anos, depois que Al Gore publicou seu primeiro livro de preocupação climática, lançamos mais gases de efeito estufa do que em toda a história.

Ironicamente, Al Gore, em vez de chamar a atenção para a busca da solução do problema, foi um gatilho para turbiná-lo ainda mais.

O autor levanta uma série de questões comportamentais. Por que nos mantemos indiferentes diante de questões tão tragicamente cruciai? Será que não temos compromissos com a posteridade de nossa espécie? Seria por um sentimento de morte na gênese da vida? Por uma ambição irresponsável sem limites? Seria por acreditar que tendo dinheiro não exista problema sem solução, daí se enriquecermos com a destruição do meio ambiente podemos reconstituí-lo e ainda ficar com um bom saldo de lucro?

Seria porque, a despeito a inequívoca clareza da ciência preditiva que todos os esboços de cenários climáticos são acompanhados de ressaltas: possivelmente, talvez, provavelmente etc.? Seria por acreditar que a tecnologia, com seus robôs humanoides, poderia reverter a situação em nosso lugar e por nós? A ameaça seria tão grande e externa de forma que nós humanos não teríamos como lidar com o problema por isso esperamos que um Deus particularmente providencial que viesse em nosso socorro, quando chegasse o estado de singularidade, recompondo tudo nos eixos.

Parque Lagoa Vargem Bonita: uma área preservada perto do Campus II da UFG, em Goiânia | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Após abordar o conjunto de problemas relativos ao aquecimento global, na I Parte, sob o título de “Cascata”, o livro apresenta uma II Parte — Elementos do caos, em que o autor divide a matéria em subtemas e desce específica e profundamente, levantando questões mais de fundo, tratando os assuntos técnicos e científicos, numa linguagem jornalística, para que possa ser entendido pelo público leigo. Os itens vão do calor letal a “sistemas”, passando pela fome, afogamento, incêndios florestais, desastres não mais naturais, esgotamento da água doce, morte dos oceanos, ar irrespirável, pragas do aquecimento, colapso econômico, conflitos climáticos. 

Aportes relevantes estão sob nosso controle

Na III parte — O caleidoscópio climático —, o autor compila uma série de ideias, pensamentos e narrativas, buscando compreender por que chegamos aonde estamos e a razão de nosso comportamento embotado e indiferente, diante de ameaça tão brutal. Nessa parte, os itens vão de narrativas à ética no fim do mundo, passando por capitalismo de crise, igreja de tecnologia, política do consumo, história depois do progresso.

Na IV parte, O princípio antrópico, o autor aduz outras reflexões sobre a condição humana, nosso aparecimento e permanência como seres tardios na cadeia evolutiva, nosso modo de pensar, de adquirir conhecimentos e como agimos diante de nossos dilemas, sobretudo os mais ameaçadores. São abordagens mais profundas e científicas, aqui também com o autor evitando equações complicadas, numa didática de “Física Quântica para poetas”. O livro traz uma farta e rica bibliografia e notas para quem desejar conhecer temas específicos com maior profundidade.

Al Gore: seu alerta foi discutido mas não posto em prática pelos países | Foto: Reprodução

“O caminho que seguimos enquanto planeta deve aterrorizar todos os que vivem nele, mas, pensando como povo, todos os aportes relevantes estão sob nosso controle, e nenhum misticismo é exigido para interpretar ou controlar o destino da Terra — apenas aceitar a responsabilidade, afirma David Wallace-Wells.

O problema está colocado de forma clara e exemplar, com a ameaça se avolumando dia após dia, e a única espécie que pode fazer alguma coisa para reverter a situação é a nossa. No entanto, de posse de tantos avisos e soluções possíveis, nós ainda não manifestamos o desejo de tomar as providências devidas.

Uma providência, que antecede às ações de fato, pode ser a leitura de  “A Terra Inabitável” e se municiar das informações necessárias e atuais para se posicionar de forma ativa e consciente de tão grave problema. Comportar-se individualmente consciente com repercussão coletiva. Como disse  o historiador Timothy Snyder na orelha do livro: “Se você não quer que nossos netos nos odeiem, você precisa ler este livro.”

Larissa Rezende de Oliveira, bióloga e mestra em Ciências Ambientais e Saúde pela PUC-Goiás, autora do livro a sair: “Guia Prático de Educação Ambiental em Zoológicos”.