Everaldo Leite

Especial para o Jornal Opção

A vida boa não é uma vida que poderíamos ter tido ou ainda podemos vir a ter, mas a vida que já temos — John Gray

O livro “Filosofia Felina — Os Gatos e o Sentido da Vida” (Record, 140 páginas, tradução de Alberto Flaksman), de John Gray, é um criativo ensaio filosófico sobre a condição humana. Nele, o autor apresenta diversos meios argumentativos — biográficos, históricos, literários, científicos e filosóficos —, que apontam para uma valiosa janela de emergência, de onde nos arremessa ao real. Como um moderno Platão, guia com argúcia o olhar dos acorrentados da caverna para um lugar onde possam discernir uma réstia de luz, acusando a incontornável natureza à qual pertencem e como aprender a conviver com ela.

A janela de emergência? A vida dos gatos. É pedagógico, para o filósofo, que o leitor possa atingir a veracidade de si mesmo pelo filtro da natureza, no caso, da natureza felina. Observar um animal tão próximo de nós, em nosso cotidiano doméstico e urbano, contrapondo nossas percepções sobre as coisas que achamos importantes ou essenciais, pode nos levar a um autoconhecimento prático e emocional, segundo o autor. Além disso, ao refletir acerca das relações afetivas entre pessoas e gatos, tal leitura também possibilita uma imersão crítica em nossos processos dolorosos de convívio com o inexorável.

De fato, num momento em que filósofos contemporâneos, como o francês Luc Ferry, buscam explicar uma terceira natureza, a transumanista, cujas ideias intrínsecas são as de fazer o ser humano evoluir artificialmente a partir de tecnologias, John Gray utiliza um método curioso: Olhemos para os outros animais! Ora, não sabemos, ainda, como os humanos “melhorados” irão lidar com os seus medos, suas angústias, seus desejos, seus amores ou suas diversões, mas podemos verificar hoje como se comportam os gatos virtuosos – no sentido de Aristóteles – quando todos esses ardores lhes avocam. Olhemos, assim, para os gatos.

John Gray: filósofo britânico | Foto: Getty Images

“Os humanos são humanos, os gatos são gatos. A diferença é que, enquanto os gatos não têm nada a aprender conosco, nós podemos aprender com eles maneiras de aliviar o peso que resulta de sermos humanos”, afirma John Gray. Vejamos. Se agimos diariamente, por dever ou por querer, direcionados “racionalmente” às coisas que mantemos e que nos mantém, que desejamos e que nos desejam, que elaboramos e que nos subjugam, é porque estamos tentando criar nossas próprias histórias e dar um sentido para as nossas vidas. Para o filósofo – e para os gatos –, entretanto, essa seria somente mais uma de nossas lutas inglórias: “as nossas vidas são modeladas pelo acaso e nossas emoções, pelo nosso corpo”, adverte.

Sem embargo, o pós-modernismo filosófico preconizou a ideia de que não há uma natureza humana e sim “histórias” criadas pelos humanos para si mesmos. Gray questiona: “se os humanos foram, como os outros seres vivos, gerados aleatoriamente pela evolução, como poderiam criar suas próprias naturezas?”. Indubitavelmente, se existe uma “segunda natureza”, como dizem os pós-modernos, a sua principal característica seria a contradição perene e fatal, constituída ainda por comportamentos divergentes e antagônicos se chocando pelo mundo. A natureza deve ser entendida como um sistema, não como uma “história de cada um”, demandada universalmente. “Será que a ideia de que cada um de nós possui uma natureza própria pode ser apenas uma ficção metafísica?”, alfineta o filósofo.

João Fidelis e o gato Serafim-Dito: convivência dos diferentes | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

O que sabemos é que a grande questão — natural e metafísica — para as religiões e para a filosofia é sucessivamente a mesma: a morte. Um livro de filosofia que se preze, sobre o sentido da vida, é um livro que fala sobre a morte humana. O sentido único da vida é a morte. Albert Camus, na primeira frase de seu ensaio “O Mito de Sísifo”, disse que “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”. A verdade é que estamos sentenciados ao fim desde a concepção e, autoconscientes e não raramente temerosos, sempre lutamos contra isso, como o próprio John Gray expõe em outro dos seus ensaios, “A Busca pela Imortalidade: a obsessão humana em ludibriar a morte”. Os gatos, por sua vez, estão entregues à sua própria programação: “o dia chegará em que saberão que estão próximos da morte, mas não passam a vida temendo sua chegada”.

Mas, se há uma finitude na existência sem sentido, Gray, por outro lado, afirma que não há uma finalidade universal que seja benéfica para a humanidade. As finalidades, aquelas que alguns achavam essenciais no caminho da felicidade, nos levaram, na prática, aos extremos do nazismo, do comunismo e do capitalismo. As ideias modernas de progresso e de racionalismo são ideias pervertidas, mas, como mostra Gray, são prontamente defendidas no dia a dia da ética e da política humana. Os ensaios do filósofo mostram que não se deve confundir nossa evolução técnica, tecnológica, produtiva, com uma visão de progresso moral. Não há possibilidade de nenhuma superioridade moral a partir das noções monoteístas sobre o bem e o mal. Da moral não se deduz o progresso. Nesse sentido, Gray é nietzschiano.

Bola Sete-Mamadu e João Fidelis: parceiros da fuzarca | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Para os gatos a finalidade é o aqui e o agora, enquanto que a finitude, até que chegue, é efetivamente irrelevante. Gray, então, distingue da modernidade as visões de vida e de mundo dos filósofos antigos, do ocidente e do oriente, e mesmo dos medievais, contornando as perspectivas incongruentes do progresso e do racionalismo a caminho da felicidade. O autor, portanto, revisita Aristóteles, os Estoicos, Pascal, Montaigne, Spinoza, o taoismo e outros, a fim de demonstrar que há pensamentos – que outrora dominaram o nosso modo de viver – que podem ainda nos assinalar caminhos menos dramáticos que os sentidos modernos da morte.

Não que se possa evitar alguma preocupação, como afirma o autor, “o ser humano que não dá nenhuma importância à morte não existe”. De toda forma, o certo é que em nenhum tempo anterior à modernidade se viveu um desespero de forma tão evidente quanto o dos humanos atuais em relação à morte. Se pode dizer, sem dúvida, que todas as ocupações laborais, os hábitos religiosos, os amores luxuriosos, as reflexões cansativas e as ações obsessivas, percebidas enganosamente como busca de uma finalidade, são, na verdade, uma forma prática de se evadir do pensamento da morte.

Nas palavras de John Gray: “A imagem de nós mesmos vivendo ao longo do tempo vem junto com a percepção de que morreremos em breve. Uma boa parte das nossas vidas é gasta fugindo da nossa própria sombra. (…) Com medo de qualquer coisa que lembre a própria mortalidade, os humanos reprimem boa parte da sua experiência para uma área inconsciente deles mesmos. A vida se torna uma luta para ficar no escuro. Sem precisar dessa escuridão interior, os gatos, por sua vez, são criaturas noturnas que vivem à luz do dia”. Temos os gatos, segundo o autor, para nos lembrar de que a vida humana não precisa ser contemplativa para ser uma vida que vale a pena ser vivida, nem precisa ser uma busca desesperada por um biombo que oculte a morte.

Enfim, talvez esse seja o ensaio de Gray que mais se aproxima da filosofia da vida boa. Todavia, não é o que irá trazer alento aos leitores de livros de autoajuda. Suas alternativas ao desespero são bastante subjetivas, e estão listadas pelo filósofo em dez sugestões “felinas”, que quase nada devem servir para muitos leitores. Vão servir a muito poucos, na verdade. O que pode mais interessar nesse ensaio curto, mas intenso, que trata da busca humana pelas melhores formas de atravessar as mais variadas adversidades, são as ricas experiências (ficcionais e não ficcionais) que ele conserva e que nos move internamente. É óbvio que as religiões ainda estão por aí, tentando resgatar seus deuses, mas nem todos acreditam mais neles. Extinguindo as histórias que os humanos precisam criar para si mesmos, sobra a enxuta e felina compreensão do filósofo de que “a vida boa não é uma vida que poderíamos ter tido ou ainda podemos vir a ter, mas a vida que já temos”.

Everaldo Leite é economista. É colaborador do Jornal Opção.