Carlos Barreira Martinez

Especial para o Jornal Opção

Das várias definições que encontrei, após uma rápida consulta ao doutor Google, quanto ao significado da palavra rebelde, a mais apropriada e que escolhi para apresentar o autor do livro “Crônicas de um Rebelde” foi esta: “Pessoa que se rebela, que se revolta”. E eu diria mais: pessoa que se indigna ante a realidade que o cerca.

Salatiel Pedrosa Soares Correia é exatamente assim: crítico, corajoso e altamente compromissado com a realidade de seu Estado, Goiás. Digo isso porque o conheço há mais de 33 anos, desde que cursávamos a pós-graduação em Energia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O tempo nos fez amigos e, hoje, somos quase irmãos, pois, como Salatiel, considero-me um rebelde. Não por acaso fui escolhido, na condição de docente da Universidade Federal de Minas Gerais, diretor do sindicato dos professores.

Salatiel Pedrosa: intelectual goiano, mestre pela Unicamp | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Ainda guardo na memória os calorosos debates que esse meu amigo-irmão travava com professores críticos da Unicamp, como era o caso dos professores-doutores Osvaldo Sevá e André Furtado, este acabou tornando-se seu orientador no mestrado. Estabelecidas essas considerações a respeito do autor, passo a comentar o último livro que o rebelde Salatiel disponibilizou ao mercado brasileiro.

Proposta para temas espinhosos

“Crônicas de um Rebelde” entrega ao mercado exatamente o que o autor se propôs a fazer: um livro repleto de vários temas que interessam aos leitores ávidos por assuntos delicados, como é o caso de  corrupção, erros médicos e de um mercado clandestino que prosperou no meio universitário e que veio a atender a uma demanda de professores universitários que, por falta de fôlego intelectual, partiram para  aquele “jeitinho brasileiro” de comprar dissertações e teses, respectivamente, de mestrado e doutorado.

Um dos pontos altos do livro se atrela à maneira pela qual o autor analisa os dois ciclos políticos do desenvolvimento do Estado de Goiás, o crescimento com desenvolvimento iniciado na gestão do doutor Pedro Ludovico Teixeira (assumiu o governo, como interventor, em 1930) e que foi concluído na gestão do engenheiro Irapuan Costa Junior (1979); o segundo ciclo inicia no governo de Ari Valadão e conclui-se no governo de Marconi Perillo. Quanto a esse assunto, o espírito rebelde de Salatiel divide-se entre a rebeldia e o elogio.

Irapuan Costa Júnior e Salatiel Correia | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

No que tange a esse tema, indaguei ao autor qual seria sua avaliação quanto aos ciclos que identificou em seus escritos. E ele, prontamente, respondeu-me: “Meu dileto amigo Carlos, comparar esses dois ciclos é como sair do céu e ir para o inferno sem passar pelo purgatório”. E, ao ler esses textos voltados para o desenvolvimento político, pude, então, entender o que o autor quis dizer. Ou seja, de Pedro Ludovico a Irapuan Costa Junior, Goiás cresceu e desenvolveu-se. Sendo assim, os goianos, nesse ciclo, viveram uma época de confiança no futuro. Por sua vez, essa confiança cedeu lugar à desesperança no período de completa entropia do sistema político que teve início com o supra identificado segundo ciclo.

Para confirmar essa avaliação do autor, basta recordar que, no primeiro ciclo, deram-se a construção de Brasília, da rodovia Belém-Brasília, da Usina Hidroelétrica de Cachoeira Dourada e as bases para industrialização do Estado, estas fomentadas no excelente governo do engenheiro Irapuan Costa Junior. Terra em transe, contudo, fez nascer a descrença no futuro quando do segundo ciclo, que se caracterizou pela absoluta renúncia ao planejamento e o que disso resultou: invasão do público pelo privado, a causa direta da brutal perda de ativos públicos, como foi o caso da privatização da Usina Hidroelétrica de Cachoeira Dourada, da venda da Celg e do enfraquecimento e, inclusive, extinção de várias estatais goianas.

Questões energéticas, García Márquez e Proust

A segunda proposta perceptível do autor com seus leitores se atrela à especialização técnica de um profissional na procura de uma formação mais humanista. Perguntei-lhe, então, o porquê dessa mudança, e ele me respondeu assim: “Caro Carlos, senti que, na condição de apenas técnico, eu veria o mundo de forma racional. Daí me voltei para leitura incessante de outras áreas do conhecimento — a exemplo da literatura, política e economia”. A partir dessa percepção pessoal do Salatiel, comento, sucintamente, as partes que compõem o todo do livro.

 Já no primeiro capítulo, “Crônicas de um Rebelde” oferece ao leitor análises breves de obras clássicas da literatura, como é o caso de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, “Em Busca do Tempo Perdido”, do francês Marcel Proust , ou “Dom Casmurro” , do nosso imortal Machado de Assis.

Continuando a desagregar a proposta do autor, deparamo-nos com o capítulo “História, Política e Economia”, no qual lemos uma ampla gama de análises de variados temas, tais como: as reflexões do notável pensador italiano Norberto Bobbio a respeito da delicada relação entre os intelectuais, o poder e  a política a partir da experiência pessoal que teve o autor na viagem que fez a Cuba.

Mario Henrique Simonsen, economista | Foto: Reprodução

No capítulo destinado a avaliar personalidades, Salatiel flerta com o realismo mágico ao construir o artigo “O dia que Simonsen voltou do Além”. Nessa crônica, o autor discute, com o já falecido Mario Henrique Simonsen, a realidade da economia brasileira. Apresenta, ainda, nesse capítulo, comentários sobre o governo do presidente Juscelino Kubistchek, bem como uma avaliação da extensa biografia do líder palestino Yasser Arafat. O capítulo contém outras preciosidades que deixo para o leitor de “Crônicas de um Rebelde” destrinchar.

No capítulo quatro, Salatiel focaliza um tema relacionado à sua área de atuação profissional: a energia. Sobre esse assunto, o autor sintetiza trabalhos por ele desenvolvidos e apresentados nos congressos brasileiro e latino-americano de energia realizados na cidade do Rio de Janeiro e em Campinas-São Paulo.

Em tal contexto, destaca-se a análise técnica dos programas de irrigação e eletrificação rurais que se tornaram verdadeiros símbolos da má gestão expressa pelo desequilíbrio econômico-financeiro da Celg. Nesse sentido, a conquista da estabilidade da economia consolidou as críticas do autor contra a submissão da diretoria da Celg aos inquilinos da Casa Verde; de uma maneira mais ampla, essa submissão intensificou-se durante os governos populistas que comandaram a política goiana. Ainda nesse capítulo, o autor dá mérito a quem o tem. Para isso, faz referência às competências técnicas de engenheiros como o ex-governador Irapuan Costa Junior e o ex-presidente da Celg Oto Nascimento.

No capítulo cinco, Salatiel justifica sua rebeldia apontando fatos vivenciados no transcorrer de sua vida profissional. No âmbito das centrais elétricas de Goiás, suas críticas sempre causaram incômodo a praticamente todos os governos de Goiás e a todas as diretorias da empresa da chamada era populista.

O livro “Crônicas de um Rebelde” estende seu olhar crítico a assuntos que fomentaram a alma cidadã do autor. O primeiro desses assuntos se atrela ao erro médico, fato tão frequente na medicina. E esse assunto Salatiel apresenta em três crônicas, as quais aconselho que sejam lidas numa sentada só.

Outro assunto que merece ser debatido se atrela ao mercado de compras de dissertações e teses, materiais fundamentais para legitimar situações de professores que viram ameaçadas suas zonas de conforto ante novas exigências do Ministério da Educação, no tocante à qualificação dos docentes do ensino superior no Brasil.

Encerro este voo panorâmico sobre o livro “Crônicas de um Rebelde” recorrendo aos escritos do grande escritor argentino Jorge Luis Borges. Este entende que os bons livros transformam os leitores que entendem a mensagem do autor, pois eles saem pessoas melhores do que eram antes.

Conheço as lutas quixotescas do meu amigo Salatiel. Em “Crônicas de um Rebelde”, percebo que mantém a alma rebelde de um intelectual que se recusa a manter vínculos políticos. Ele entende, com essa postura, não perder as únicas armas que tem, porque sabe que o intelectual só tem duas armas de combate nesse mundo repleto de controvérsias: a crítica e o elogio. Todas, absolutamente todas, as previsões oriundas dos modelos matemáticos por ele utilizados tornaram-se uma realidade. Mais que um escritor, o autor fez-se um profeta. Conhecendo a obra e seu autor, como o conheço, recomendo a leitura de “Crônicas de um Rebelde”. Quando terminar a leitura, você será, no mínimo, uma pessoa mais informada que antes.

Carlos Barreira Martinez é doutor em Planejamento Energético pela Unicamp. É professor na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Federal de Itajubá.