Entre a economia e o rebelado ministro da Saúde, o presidente Jair Bolsonaro escolheu 2022, quer dizer, a reeleição. Prevaleceu a realpolitk

Fernando Bueno Oliveira

Especial para o Jornal Opção

Se você fizer uma busca rápida pelos sites de pesquisa à procura do conceito de autobiografia logo absorverá que se trata de um gênero literário em que uma pessoa narra a história da sua vida, uma biografia escrita ou narrada pela pessoa biografada. Essa foi a maneira escolhida pelo médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta ao escrever o livro “Um Paciente Chamado Brasil — Os Bastidores da Luta Contra o Coronavírus” (Objetiva, 240 páginas), publicado em setembro de 2020.

Já que no Brasil tem se tornado hábito a busca por informações na plataforma Lattes de gestores e candidatos a tal, não há registro algum do autor por lá. Entretanto, as informações rápidas da internet e validadas nas últimas páginas de seu livro dão conta de que Mandetta é especialista em ortopedia e em gestão. Na vida pública, ingressou em 2005, quando assumiu a Secretaria Municipal de Saúde da cidade de Campo Grande (MS). Em 2011 tomou posse como deputado federal eleito por seu Estado, sendo reeleito em 2014. Não disputou as eleições de 2018. Em 2019 assumiu o Ministério da Saúde, onde permaneceu por um ano e quatro meses, até ser exonerado em 16 de abril de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro. Ele nasceu em 1964, portanto tem 56 anos.

Como dizia o filósofo francês Michel Pêcheux (1938-1983), numa análise do discurso de orientação francesa, não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. Independentemente do “viés ideológico” (expressão comum do cotidiano das redes sociais, mesmo que muitos nem saibam de seu sentido e aplicabilidade), a escrita de si é quase sempre carregada de um narcisismo teórico, de sentimentos e tendências da vida pessoal, de posições políticas, da representatividade social, de visões de mundo e interpretações recheadas de ideologias, utopias e de concepções filosóficas (as que estão na moda ou não), além das marcas do inconsciente que também se fazem presentes no dizer.

Em seu livro, ao escrever a respeito de si, Luiz Henrique Mandetta narra em detalhes, numa linguagem informal e numa postura quase heroica, a sua atuação, enquanto ministro da Saúde, no combate à Covid-19 no Brasil. O recorte temporal vai desde sua participação no Fórum Econômico Mundial ocorrido em janeiro de 2020 em Davos, uma pitoresca comuna da Suíça, até a sua exoneração do cargo de ministro.

Luiz Henrique Mandetta e Jair Bolsonaro: pensando em 2002, o presidente puxou o tapete de seu ministro da Saúde e o demitiu | Foto: Reprodução/Internet

Conta a narrativa que, ainda em Davos, notícias de um novo vírus que se propagava pela China e de potencial ainda desconhecido começavam a chegar. Depois de contatos efetivados e apostados, Mandetta retorna ao Brasil. A imprensa, ávida por informações sobre o tal vírus, ansiosamente lhe aguarda. Para alguns, o então ministro “não fala nada, não aparece. Uma espécie de ninguém sabe, ninguém viu”.

As coisas vão acontecendo… Carnaval brasileiro se aproximando, portos e aeroportos brasileiros abertos e ainda com o fluxo normal de cargas e pessoas, o já tão falado novo coronavírus se espalhando com mais força pela China, a cidade de Wuhan bloqueada e com brasileiros por lá, quatro aviões enviados para o resgate deles, dois alarmes falsos de contaminação aparecem por aqui, a expressão “vírus chinês” surge, o cruzeiro Diamond Princess, atracado na costa do Japão, em quarentena.

Finalmente o primeiro caso de contaminação chega ao Brasil: no dia 24 de fevereiro, às sete horas da noite, um brasileiro vindo da Lombardia deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, com os sintomas da nova doença. Antes, porém, o mesmo paciente havia feito um almoço familiar contando com a presença de trinta e duas pessoas. Dessas, quatro desenvolveram a doença e contaminaram mais seis. O vírus participou da festa de carnaval.

As entrevistas coletivas passaram a ser praticamente diárias (aliás, a imprensa parecia ser uma grande aliada). O colete azul entra em cena, o álcool em gel também. Lá pelo Palácio do Planalto tinha gente que não estava acreditando no risco de contágio. Uma visita ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, trouxe gente contaminada. No dia 11 de março a Organização Mundial de Saúde decreta a pandemia do novo coronavírus. Medidas de isolamento são estabelecidas. Audiências públicas e reuniões sobre a pandemia envolvendo o Ministério da Saúde acontecem a todo o tempo. Uma nova realidade ou o “novo normal” (mais um daqueles termos da moda) vai se desenrolando.

Parou tudo: eventos e aulas nas escolas e universidades, atividades de atendimento ao público, restaurantes, bares, lojas, salões de beleza, academias, shoppings. Teve cidadezinha do interior, em pânico, que já havia fechado padaria, borracharia e mercadinho.

Num tom de denúncia, o autor destaca os seus desencontros com o presidente da República: a famosa expressão “gripezinha” chega ao texto. Num estilo de super-homem, próprio de autobiografias, Mandetta descreve a sua atuação frente ao avanço do novo vírus, embora os números não fossem nada animadores. Médicos e especialistas brasileiros em doenças transmissíveis falavam em 30, 60, 80 e até em 180 mil óbitos (já morreram mais de 176 mil pessoas). Se bem que tais projeções eram bem menos trágicas que a simulação aterradora para o Brasil da Imperial College of London com o seu estrondoso número de 529 mil mortes e 120 milhões de infectados pelo novo coronavírus, modelo pelo qual Mandetta era simpatizante.

No meio do caminho uma autodenúncia e lembranças de sua nomeação: à época, o autor respondia a um processo relativo à fraude em licitação e caixa dois na ocasião em que exercia o cargo de secretário municipal de Saúde de sua terra natal, Campo Grande. Justificativas e preocupação com a divulgação do caso pela imprensa são narradas. No fim, não foi isso que o impediu. Num passeio de barco em meio ao lago Paranoá soa-se uma pergunta-chave: “E o Mandetta é o ministro da Saúde? Se for, tem que definir agora”. Imediatamente um “sim” foi pronunciado. Estava prestes a integrar o corpo ministerial de um governo apoiado por exclusão, já que para Mandetta, no período pré-eleitoral, não sobraram alternativas.

Porém, não foi o “sim” presidencial. Na realidade, durante a formação de sua equipe, o presidente projetava outro nome para o Ministério da Saúde. Entretanto, com a forcinha dos apoiadores deu tudo certo. Mandetta foi nomeado. Diga-se de passagem que aquele outro nome volta à lembrança do presidente em abril de 2020.

Campanha pelo isolamento nas coletivas. A cloroquina entra no palco, aliás, um elemento chave na narrativa. Na avaliação do ministro um medicamento que poderia agravar o estado de saúde das pessoas e levar à morte. Uma jogada é proposta: o governo não compraria cloroquina e o médico, se quisesse, poderia prescrever.

O incentivo ao uso da cloroquina é lançado pelo presidente, afinal, sem o desenvolvimento de vacina e diante de uma situação emergencial, era tudo o que se tinha: ao menos, uma chance de tratamento e, além de tudo, um medicamento de fácil aquisição. Aliás, como um remédio tão perigoso estaria à disposição nas farmácias? Inclusive “a Fiocruz produz, tem genérico”. Na mesma situação aparece a ivermectina, receitada como alternativa para melhorar o sistema imunológico dos pacientes.

Entre usar ou não a cloroquina, o fato é que em abril de 2020 as mortes por Covid-19 se intensificam e as desavenças do ministro com o presidente se tornam ainda mais evidentes. O tempo fecha: Mandetta fica ou não fica? O clima esquenta. Pega fogo após uma entrevista ao programa “Fantástico”, da Rede Globo: “um caminho sem volta”. Entre a economia e Mandetta, o presidente escolhe 2022. Um recado chega bem baixinho aos seus ouvidos: “Presidência, dezesseis horas”. Literalmente, a hora da demissão. A narrativa sinaliza o desfecho.

Típico das escritas de si, o leitor poderá ser facilmente conduzido pelas intencionalidades da narração cujas páginas embebidas de uma mensagem de bravura trazem à tona todos os feitos de um ministro, numa mescla de críticas e acusações ao governo. Mas um governo em que Mandetta era partícipe. Lembro-me do filósofo italiano Umberto Eco que dizia que o posicionamento individualista dos cidadãos diante de fatos constrangedores vem à tona somente se os afetam diretamente, senão continuariam a ser ignorados.

Ao som de “Hey Joe”, de Jimi Hendrix, a história do autor (ou suposto autor?) como ministro chega ao fim. Essa canção retrata uma história de traição e fuga: qualquer semelhança é mera coincidência. O heroísmo não tratou o paciente Brasil.

O livro não deixa de ser interessante e envolvente, típico para os leitores que não dispõem de muito tempo para a leitura, podendo ser lido, sem maiores dificuldades, durante cafezinhos, no ônibus enquanto se chega ao trabalho ou numa única tarde de domingo.

Fernando Bueno Oliveira é doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Goiás.