Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

[Primeira parte da resenha do livro “Mega-Ameaças — Dez Perigosas Tendências Que Ameaçam Nosso Futuro e Como Sobreviver a elas”, de Nouriel Roubini — Editora Crítica, 352 páginas, tradução de Maria de Fatima Oliva do Coutto]

“Muito entusiasmo para pouco resultado.” Talvez seja essa a definição mais apropriada para que os leitores — os que não têm muita informação sobre economia ou não dominem o efeito deletério das bolhas — possam entender como elas são formadas no transcorrer do processo do crescimento econômico.

Outro assunto, que interessa aos curiosos nesse tema da economia, é a lei da oferta e da procura. Essa lei estabelece a seguinte lógica: quanto mais as pessoas procuram um produto, o valor desse, no mercado, aumenta. Por outro lado, quanto menor for menor a demanda, no mercado, menos valor o produto terá.

A teoria econômica relata que as bolhas distorcem a lei da oferta e da procura pelo fato dessa demanda ser baseada numa prática que a economia real rejeita: a especulação.

De acordo com o economista Hyman Minsky, especialista em crises financeiras, a formação das bolhas passa pelas algumas fases. Faço um resumo a seguir.

Deslocamento — esse é o momento em que os investidores identificam, como oportunidade, um produto novo ou uma tecnologia inovadora.

No boom, os preços começam a subir. De início, essa subida ocorre lentamente para, num outro momento, ganhar impulso. A partir daí, aumentam-se a atração dos investidores e o sentimento de perda de oportunidade para quem não acredita nessa subida.

Euforia é o instante de extremo otimismo, que reflete na disparada de preços. Vale ressaltar que a euforia é tanta que muitos investidores sequer questionam a solidez dos investimentos.

Lucro é a etapa de realização para aqueles que percebem o auge das bolhas. Quem consegue vender o que investiu, no momento da mudança, é uma minoria pois, nesse momento, ganha-se muito dinheiro. A grande maioria dos investidores segue em frente rumo a quinta e última fase: o pânico.

Pânico é o período em que os investidores percebem que fizeram a aposta errada. Nessa etapa, os preços despencam ainda mais rápido do que subiram.

A voz solitária de um economista

Nouriel Roubini foi a voz solitária, que previu a maior crise, no capitalismo mundial, desde a Grande Depressão de 1929, na qual fortunas viravam pó, da noite para o dia.

O acerto na previsão deu respeitabilidade a esse notável economista independente, que soube pensar fora da caixa. Roubini enxergou a questão de modo sistêmico. Nesse sentido, ele percebeu a fragilidade macroeconômica, que muito contribuiu para o inchaço da bolha. Ele tornou-se um crítico ácido dos equívocos do Banco Central e das políticas equivocadas do governo que, na visão de Roubini, acusar o outro, no caso, os ingênuos credores, que se endividaram na compra de imóveis, mas esqueceram de olhar, criticamente, para seus próprios erros.

Nouriel Roubini: um dos analistas mais argutos da economia internacional | Foto: Reprodução

Os escritos de Nouriel Roubini, redigidos numa linguagem de fácil entendimento para um público que tenha razoáveis conhecimento de economia, têm o grande mérito de mostrar ao leitor o quanto as políticas macroeconômicas dos governos têm responsabilidades diretas na formação de bolhas.

Isso é, a meu juízo, absolutamente verdadeiro, pois é atribuição dos governos o controle de dois instrumentos formadores de bolhas na economia: as taxas de juros e, de uma maneira mais ampla, o controle da inflação.

Posto isso, creio ser esclarecedor explicitarmos situações de formações de bolhas, consideradas pelo autor como uma grande ameaça, que o mundo terá de continuar enfrentando contra essa busca constante do chamado capitalismo sem risco, alimentado pela praga do dinheiro fácil. Para isso, o autor avalia o ciclo de expansão e de retração inerente à formação de bolhas.

Antes de irmos em frente, cabe aqui um esclarecimento quanto ao uso da palavra “russos” nestes escritos. Para isso, voltemos a 1958, época em que o Brasil se sagrou campeão mundial de futebol na Suécia.

Na véspera do jogo, o técnico brasileiro Vicente Feola chamou o jogador Garrincha para lhe dar instruções. Disse-lhe o treinador: “Garricnha, você vai pela direita, dribla seu marcador. Se vier outro, na cobertura, você dá-lhe uma caneta entre as pernas e cruza para o Pelé marcar o gol”.

O craque brasileiro escutou, atentamente, as instruções do treinador. Após uma pequena pausa, ele volta-se para Vicente Feola, com toda ingenuidade que lhe era peculiar, e perguntou: “Mas, seu Feola, o senhor já combinou com os russos?” Claro, não havia combinado…

Não conheço metáfora mais adequada para explicar algo fundamental no processo de formação de bolhas. Essas não se formam por si só. Na verdade, as bolhas dependem de outros russos, como é o caso do Banco Central, que controla as taxas de juros ou as políticas macroeconômicas do governo.

Casos que geraram a bolha imobiliária, nos Estados Unidos, em 2008, responsáveis pela falência de milhares de norte-americanos, evidenciam falhas na macroeconomia ou no controle das taxas de juros. O olhar sistêmico sobre questões dessa natureza é fundamental para que se possam elaborar diagnósticos que reflitam a realidade.

Isso posto, passaremos a seguir a analisar situações que provocam a formação de bolhas

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A expansão e o esvaziamento das bolhas acontecem sem combinar com os russos

Uma certa economia de um determinado país, os chamados “espíritos animais”, impulsionam os preços das ações em alta, até que um acontecimento abranda esses espíritos. A partir daí, a multidão percebe, tardiamente, a despencada dos preços. A euforia torna-se pânico, chamado pelo autor de “exuberância irracional ao pânico”. Resultado: a ansiedade paralisa a demanda e desabam-se as receitas corporativas. Durante esse processo, vários trabalhadores perdem o emprego. Passados esses momentos de agonia, conclui o autor que “a recessão e a deflação espreitam, sem forte intervenção de incentivo à demanda, a economia é arrastada numa espiral mortal”.

Essa narrativa de uma situação de expansão e de esvaziamento da bolha estaria plenamente correta se, antes, tivessem combinado com os russos. E quem são esses russos? São o Estado e sua capacidade de liderar e de implementar políticas macroeconômicas.

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 A contração e a expansão são combinadas com os russos (Banco Central)

Nesse caso, o russo é o Banco Central, que estabelece um determinado valor de taxa de juros. Descontada da inflação, os juros reais caem — favorecendo, assim, os tomadores de empréstimo. Eis aí uma situação típica de expansão da bolha. Veja-se o exemplo que nos relata o autor. Nesse exemplo, ele define a Megacorp como sendo um representante de todos os fornecedores.

Vamos, pois, ao exemplo: “Digamos que a inflação anual seja de 2%, meta a longo prazo para grande parte dos bancos centrais. Nesse caso, um dólar perde 2%, meta a longo prazo para grande parte dos bancos centrais. O que equivale precisar de dois centavos adicionais, por ano, para continuar com o capital inicial. Se a MegaCorp fizer um empréstimo de 100 mil dólares para a compra de novas máquinas, no final do ano, o valor real da dívida cai para 98 mil dólares. “Para que isso venha ocorrer, o autor explicita uma condição fundamental para que a dívida possa encolher: o crescimento econômico da MegaCorp deve acompanhar a inflação.” Agindo assim, em dez anos, permanecendo a inflação em torno de 2%, o empréstimo cairá beneficiando, assim, quem tomou o empréstimo.

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Contração e expansão num ambiente de deflação

Em se tratando da deflação, o raciocínio é o inverso do anterior. Por essa razão, as deflações penalizam os tomadores de empréstimos. Quanto a isso, veja-se o exemplo do professor Roubini, que alerta para o perigo do endividamento. “Suponha que a MegaCorp pegue um empréstimo com taxa de juros a 3% e a deflação seja de 2%. Esqueça o golpe de sorte que a inflação proporciona”, relata o autor para, enfim, quantificar o preço a pagar aos fornecedores. O fato é que a adição da taxa de juros, com a deflação, tem para falir o “pool” de investidores que a MegaCorp integra. Enquanto isso, trabalhadores perdem seus empregos, vendem mal o que compraram. Também perdem as empresas. Ante a brutal elevação da inadimplência. E, assim, a euforia transforma-se em pânico ante ao estouro da bolha e isso representa caos social que, num grau elevado de desespero, leva ao suicídio e à desagregação familiar. O que foi vivenciado por milhares de famílias norte-americanas na época da eclosão da crise de 1929.

4

A estagflação, um novo acerto do “Doutor Catástrofe”?

Um filme parece se repetir, no momento em que o autor vai de encontro à ênfase que os governos dão ao combate à inflação, mas se tornam negligentes no combate a um perigo muito maior que aproxima — a estagflação, que é vista pelo autor como uma autêntica mega ameaça.

Sobre esse assunto, o autor adverte: “Preparem-se para a estagflação uma combinação de recessão e alta taxa de desemprego com inflação alta, capaz de sufocar o crescimento das empresas. As condições são oportunas”. O economista chama a atenção para o seguinte fato: a construção de uma nova bolha. Ela é construída pela receita da elevação do crédito e do dinheiro fácil, que deixam, certamente, um preço a pagar: fragiliza governos, no tocante às políticas públicas, direcionadas ao combate da inflação.

Outra questão que se evidencia no dilema enfrentado pelos formuladores de política econômica ao se depararem com choques estagflacionários: tolerar mais elevadas taxas de inflação para que ocorra maior crescimento econômico ou não tolerar o crescimento da inflação, tomando medidas imediatas para a redução dos índices inflacionários. Esse divisor de ideias dividiu brilhantes economistas em dois grupos antagônicos: os “persistentes” e “transitórios”. Estes últimos perderam o debate para aqueles primeiros.

A estagflação requer ações imediatas para tentar controlar turbulências. A complexidade de decisões dessa natureza tem influência direta na postura do Banco Central. De duas, uma: preocupação ou não do Banco Central com crescimento. Em caso a afirmativo, medidas como elevação da taxa de juros e aperto das rédeas das políticas monetárias. Nessa condição, argumenta o autor, que poderá ocorrer um “pouso forçado”, que acarreta, como consequência, mais desemprego e a recessão. Já na segunda opção, que induz a um “pouso leve”, privilegia o crescimento tolerando certas taxas inflacionárias. Os defensores dessa posição acreditam “no pagar para ver”. Resultado: poderão perder o tempo hábil necessário para estancar os males do estagflação.

Nouriel Roubini claramente se identifica com aqueles que defendem o “pouso forçado”.

No transcorrer de sua análise sobre as graves consequências do estagflação, o autor destacou onze potenciais focos causadores dessa anomalia econômica. Sugerimos aos que enfrentarão as reflexões do professor Roubini que leia, atentamente, cada um desses focos.

Como destaque das causas do estagflação, destaco aos novos choques geopolíticos causadores por nações, que, hoje, encontram-se com graves problemas no contexto da geopolítica mundial como é o caso da nova Guerra Fria entre China e seus efetivos aliados — Rússia, Irã e Coreia do Norte.                                                   

Encerro a primeira parte deste artigo relatando que esse debate entre crescimento versus inflação manteve-se bem viva no Brasil dos anos Juscelino Kubistchek (segunda metade da década de 1950). Naquela época, a luta ideológica distinguia os ortodoxos, defensores do rígido controle fiscal, dos heterodoxos, que toleravam uma certa inflação em nome de algo maior: induzir o desenvolvimento. Naquela época, a heterodoxia venceu o debate, fato que possibilitou ao governo JK construir grandes obras, pelo país, como Brasília, a capital federal, e a rodovia BR-153, que integrava o norte do país às regiões mais dinâmicas do Brasil.

Resta a nós sabermos quem ganhará, politicamente, a questão. Quanto a Roubini, hoje, ele encontra- se em outra numa posição diferenciada daquela que o notabilizou ao prever o estouro da bolha imobiliária em 2007.O fato é que o doutor “Mandraque” não pode jamais deixar de ser levado a sério. Ele sabe o que fala.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, bacharel em administração de empresas, mestre em energia pela Unicamp, autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, economia, política e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.