Livro de jornalista diz que gaivotas do Rio Araguaia pegaram tosse brava, seguida de pneumonia

11 junho 2023 às 00h00

COMPARTILHAR
Ivan Mendonça
Especial para o Jornal Opção
Não é de hoje que Goiás vem ficando órfão de seus melhores contadores de história, especialmente os entendidos de meio ambiente. Leolídio Caiado desencarnou em 2008 e só é lembrado hoje por emprestar seu nome a um parque meio que abandonado no Goiânia 2, bairro separado do centro da capital pelas águas do Rio Meia Ponte. E olha que ele já defendia a fiscalização e combate à destruição causada por predadores no Vale do Rio Araguaia desde os tempos do governador Coimbra Bueno. “Leco”, como era chamado pelos amigos, chegou a condenar o avanço do concreto sobre o meio ambiente em sua última entrevista, em 2000. “Onde entra o progresso, entra também a destruição”, alertou.
Carmo Bernardes, amigo goiano nascido em Patos de Minas, também deixou registrado o seu DNA de sertanista engajado nas páginas de 16 livros e inúmeros artigos publicados na imprensa goiana. Falecido em 1996, aos 80 anos, ele passava segurança quando escrevia em defesa da fauna e flora brasileira, especialmente do Cerrado. Regionalista do pé-rachado e careca de saber que não há vida em ambiente poluído e contaminado, Carmo costumava tirar férias com a família enfurnado na riqueza biológica do delta formado pelos rios do Coco, Araguaia e Javaés, nas proximidades da Ilha do Bananal. Muito mais para passar o tempo cheirando relva selvagem do que para matar a fome com peixe fisgado pouco antes de entrar na panela.

De uns tempos para cá, triste realidade, é visível a constatação que a causa ambiental também vem perdendo terreno em Goiás. Aliás, literalmente. Sobretudo na literatura. Há quem diga que a explicação possa estar relacionada à crescente overdose do discurso do agronegócio em favor da produção de grãos. Outros, mais simplórios, chegam a responsabilizar a momentânea falta de memória ecológica como se fosse sequela da pandemia do coronavírus. Tudo bobagem. Carmo Bernardes, por exemplo, viveu seu momento intelectual mais fértil durante a ditadura militar instalada em 1964. De sua parte, a despeito de ter nascido no berço rude do patriarca Totó Caiado, Leolídio virou referência ao defender a causa dos índios, das águas e da natureza quando exerceu as funções de diretor do antigo Serviço de Caça e Pesca.
Longe de mim comparar causos de pescaria com a vida e obra de Carmo e Leolídio. Seria leviandade de minha parte, mesmo em se tratando de crônicas escritas com talento e muito bom humor. Todavia, senão, contudo, etc e tal, não se pode negar que o conteúdo do livro “Iscas, Causos e Anzóis”, de autoria do jornalista Alacir Junqueira, merece ser lido de cabo a rabo e não apenas por pescadores e outros mentirosos, mas por retratar fielmente o ambiente oxigenado à beira dos rios, córregos e lagos.

Em seus escritos, publicados pela Editora Kelps, Alacir Junqueira narra com riqueza de detalhes o seu próprio batismo como pescador de primeira viagem lá em Buriti Alegre, onde nasceu em 1944, incluindo a primeira fisgada de um bagre ensaboado, daqueles que surgem após as enchentes. Senão vejamos: “Rancamos minhocas, arreamos os cavalos e descemos uma serra conhecida por Mata Azul. Assim que chegamos à beira do córrego, o tempo fechou e caiu um toró. Próximo ao ponto definido pra iniciar a pescaria, uma velha palhoça coberta com folhas de bacuri nos abrigou, onde deixamos os cavalos. A chuva passou e foi naquele momento que aconteceu, para mim, a abertura da porta para o lazer da pesca. Pegamos varinhas de bambu, lata de minhocas e nos aproximamos do poço à beira de um barranco alto. Com a água suja, o córrego ficou ideal para a pesca de peixe de couro. Iniciei ali o aprendizado, mas cheguei a pensar que voltaria para casa com coisa nenhuma. Eis que um bagre de bom tamanho, amarelado e lindo, certamente desconhecendo o risco que corria, caiu na besteira de provar minha isca e se deu mal. Desajeitado, no susto, dei a fisgada, senti o peso e partimos para a briga, eu com o coração disparado. Não demorou e coloquei o danadinho no capinzal, quando fui advertido pelo meu pai para ter cuidado com os ferrões. O prazer foi triplo: pegar, limpar e apreciar”.
É por isso e muito mais que posso garantir, sem medo de errar, que Alacir Junqueira é uma espécie de Forrest Gump melhorado. Ele sabe contar histórias. De um simples causo, recolhido por meio de amigos, ele nos transporta de mala e cuia para o reino encantado das pescarias. Segundo o médico e escritor Ademir Hamu, que assina o prefácio do livro, a narrativa do ator é tão boa, tão simples, que o leitor se sente arrebatado pelos sabores das frutas silvestres, pelo barulho das águas, pelo piar dos pássaros, pelo cheiro da mata e até pelo rugido dos animais. Daí, a minha ousadia em comparar a linguagem inocente usada por Alacir, própria de um matuto, com os ensinamentos sertanejos de Leolídio Caiado e Carmo Bernardes.
Gaivotas do Rio Araguaia pegaram tosse brava
Um de seus melhores causos, que merece ser analisado e pesquisado até pelo Conselho Federal de Medicina, insinua que um bando de gaivotas do Rio Araguaia acabou pegando tosse brava, seguida de pneumonia, após inalar fumaça e confundir guimbas de cigarro com vísceras de peixes escamados por um jornalista descuidado. Um outro, também imperdível, é atribuído ao saudoso Geraldinho Nogueira, nosso maior contador de histórias.
Segundo o publicitário Hamilton Carneiro, que gozou do privilégio de sua convivência, Geraldinho pegou dois jaús de uma só vez no Rio Piracanjuba usando apenas um tatuzinho peba como isca em anzol de pinda. Como diria o Coronel Pantaleão para sua mulher, Terta, no antigo programa Chico City, da TV Globo:
— É mentira, Terta?
— Verdade, meu velho.
Ao todo, são 60 causos distribuídos por 166 páginas. Cada qual mais engraçado do que o outro. Tem história de pescador tontinho, à luz de lampião, mastigando perereca pensando que estava comendo orelha de porco; cachorro perdigueiro mergulhando n’água para resgatar codorna engolida por traíra gorda; caçadores noturnos de ovos de tartaruga induzidos a cavoucar com as mãos os supostos ninhos, justamente atrás da moita que os amigos da onça usavam como latrina; ingestão de lacto-purga no lugar de remédio pra dor de cabeça, incluindo as consequências da má digestão; dentadura perdida nas areias fundas do Rio Araguaia; e até um jornalista de renome em Goiás, armado de revólver 38, ameaçando matar de mentirinha um colega ainda mais conceituado.
Resumindo, não custa lembrar que Alacir Junqueira é um capiau na verdadeira acepção da palavra, apesar de servidor aposentado do Banco do Estado de Goiás e diplomado em jornalismo pela Universidade Federal de Goiás. Ele sabe tudo de iscas, anzóis e molinetes, mas finge não saber de nada. Já pescou pra tudo quanto é banda. É daqueles que se sentem em casa no meio do mato. Gosta de cozinhar e sente prazer até na hora de lavar os pratos. Dentro de uma canoa, aí, sim, é uma espécie de posto Ipiranga. Em sua caixa de ferramentas cabe de comprimido de cibalena a fumo de rolo, passando por galho de arruda.
Ivan Mendonça é jornalista e escritor.
Serviço: livro será lançado na terça-feira, 13
O livro “Iscas, Causos e Anzóis”, editado pela Kelps, será lançado no próximo dia 13, a partir das 19 horas, no buffet Maison Florency, na Avenida T-5, nº 1.312, no Setor Bueno. A obra tem 266 páginas, a maioria delas com ilustrações e fotos coloridas.