Na prostituição, Martine e Louise Fokkens fizeram sua fonte de renda, mas também sua dignidade e até mesmo sua felicidade e prazer

Para além da prostituição, Martine e Louise Fokkens contam sobre a exploração de mulheres, mas falam, sobretudo, sobre sua luta | Foto: Reprodução
Para além da prostituição, Martine e Louise Fokkens contam sobre a exploração de mulheres, mas falam, sobretudo, sobre sua luta | Foto: Reprodução

Déborah Gouthier
Especial para o Jornal Opção

Um admirado profissional (e seu ex-editor) te presenteia com um livro e pede que você o resenhe: eis uma missão ao mesmo tempo honrosa e delicada. En­tre­tan­to, confesso que quando abri pela primeira vez o livro “As senhoritas de Amsterdã”, descobri que não seria assim tão simples me apresentar para eles — às irmãs Fokkens e ao meu editor, claro.

Envolvida pela leitura das narrativas que vagueiam entre o cômico e o erótico, eu me perguntava o que poderia escrever que ainda não tivesse sido dito. Afinal, aquelas confissões já tinham sido tema de documentário (“Meet the Fokkens”, de 2012), livros, notícias e resenhas a perder de vista. Mas aquela missão não me tinha sido dada por acaso. Era a minha Amsterdã que eu deveria encontrar nas memórias das prostitutas mais antigas da cidade holandesa.

Por isso, vamos a elas. Martine e Louise Fokkens são duas irmãs gêmeas de quase 75 anos. Fazem praticamente tudo juntas e se vestem com roupas parecidas (quando não idênticas). São avós, vizinhas e curtem juntas a aposentadoria, pintando e escrevendo, depois de longos anos de parceria e sociedade no trabalho duro na cidade de Amsterdã, onde também nasceram. A história seria clichê e igual a tantas outras se não fosse o fato de que, para elas, esse trabalho significa mais de 50 anos atendendo aos desejos sexuais de cerca de 355 mil homens, conforme elas mesmas estimam.

Aos 70 anos, Martine continuava trabalhando algumas vezes na semana, para receber assíduos e fieis clientes de toda uma vida. Louise só parou depois de uma artrite, que a impedia de realizar algumas posições por conta da dor. Mas foi ela quem começou na profissão, um ano antes da irmã, forçada pelo próprio marido. Tinha apenas 20 anos e já era mãe de três filhos. O marido a abandonara, mas depois de constatar o quanto poderia lucrar com ela, chantageou: “Se eu fosse trabalhar, virasse puta, ficasse atrás de uma vitrine, ele prometia voltar a viver comigo e com as crianças”.

Pouco depois, Martine, casada e já mãe do primeiro filho, precisou segurar as despesas da casa. Foi também o marido quem sugeriu que fizesse um bico no trabalho da irmã. No início, limpando as vitrines e faxinando o bordel. Aos poucos, porém, ela entrou também para a profissão que determinou seus destinos para sempre.

O livro narra a história das duas irmãs a partir de relatos escritos por elas mesmas. Intercaladas entre Martine e Louise, entre passado e presente, as narrativas abrem as cortinas do bairro da Luz Vermelha de Amsterdã. As confissões nos permitem conhecer algumas das fantasias sexuais de clientes de todas as idades e gostos, mas também a transformação de uma profissão e de uma cidade. Os organizados bordéis, as boas amizades e o clima de coleguismo entre as prostitutas holandesas foram, com o tempo, substituídos pelos drogados, a criminalidade, as prostitutas de todas as partes do mundo, as novas regras governamentais para a profissão e a rivalidade e competição naquele mercado em que, por anos, elas reinaram.

Mesmo assim, as duas irmãs conseguiram oferecer para suas famílias algum conforto e suporte financeiro. Nos anos 1980, chegaram a abrir seu próprio bordel, livrando-se de uma vez por todas do controle dos cafetões e dos maridos. Foram também elas que criaram o primeiro sindicato de prostitutas independentes, para que pudessem, juntas, aprender a lidar com cada um desses desafios.

É por isso que, antes de ser um livro de contos eróticos ou algo parecido (apesar de também o ser, de certo modo), “As senhoritas de Amsterdã” é um livro sobre olhar do outro. Porque é preciso olhar as irmãs Fokkens para além de seus cabelos louro-brancos e roupas vermelhas coladas. Para além das vitrines, o que sua história nos conta é mais um caso de exploração de mulheres, mas, sobretudo, sobre sua luta. Na prostituição, elas fizeram sua fonte de renda, mas também sua dignidade e até mesmo sua felicidade e prazer.

Enquanto putas, as irmãs Fokkens não são menos gente do que nós, jornalistas, advogadas, médicas, artistas, presidentas, professoras. Os conflitos são os mesmos: o amor, o cansaço, a família, o trabalho, a grana no fim do mês, o respeito, alguma diversão. Quando encontram os mais estranhos fetiches ou os mais inusitados clientes, Martine e Louise nos dão um retrato de tudo o que somos, todos nós, quando as cortinas se fecham e ninguém mais vê.

Quando decidi me despedir do Jornal Opção e ir morar na Holanda, em meados de 2013, eu ouvi atentamente os dedos que apontavam para mim. “Maluca. Vai largar o emprego por uma bobagem dessa.” “Ho­landa? Xii, já até sei o que isso significa.” “Nossa, mas logo ela? Tão boazinha, vai voltar doida de um lugar daquele!” Os estereótipos que dominam a nossa visão de turista sobre os Países Baixos ainda são predominantes, mesmo entre pessoas bem instruídas ou viajadas. E, claro, porque era eu, uma jovem mulher, sozinha, num “lugar daquele”.

Hoje, revisitando minhas memórias, o que encontro de Amsterdã é um lugar de afeto, de liberdade, de amor. A cidade que habita em mim não é a Amsterdã das drogas e da prostituição. Mas elas estão lá, sem dúvidas. Nos coffeeshops abarrotados de turistas e nas vitrines de corpos expostos ao avermelhado das lâmpadas refletidas nos canais.

Lembro-me das primeiras vezes que passei pelo Red Light District: a cabeça baixa, entre olhar e não olhar, envergonhada. Depois, fui reconhecendo o bairro. Ouvi histórias sobre aquele ser o lugar mais seguro da cidade, porque com a presença rígida dos cafetões, ninguém se atreveria a roubar ou violentar ninguém por ali. Além deles, há ainda as regras formais, como a proibição de fotografar as vitrines ou a de consumir bebida alcoólica dentro dos coffeeshops. Mas também vi um pouco do que nos contam as histórias de Martine e Louise. Acontece que, depois de um tempo, a gente quase responde “goedemorgen” e acena de volta, porque aqueles corpos são parte da paisagem, com seus dedos convidando a entrar.

E a gente obedece ao convite e entra. Quando não fisicamente, a mente segue o contorno dos canais e as putas para dentro das casas e de suas vidas. Nunca saberemos como chegaram até ali. Mas imaginamos. Nunca saberemos quantos clientes tiveram, quais foram os pedidos mais sórdidos, quantas vezes quase foram agredidas ou quando quiseram gozar. Mas imaginamos.
Quando nos revelam esses segredos com leveza e honestidade, as irmãs Fokkens descortinam o mito e nos deixam de cara para o espelho. Martine e Louise dizem que cada um escolhe como quer viver. Talvez valha a pena arriscar.

Irmãs retratam, no livro, tudo o que o ser humano é quando as cortinas se fecham | Foto: Divulgação
Irmãs retratam, no livro, tudo o que o ser humano é quando as cortinas se fecham | Foto: Divulgação

“Uma vez puta, sempre puta”

O livro “As senhoritas de Amsterdã” (2014) é uma compilação dos relatos e confissões de Martine e Louise Fokkens, as prostitutas mais antigas da cidade conhecida durante anos como a capital mundial do sexo.

nquanto Martine nos conta sobre os casos e desejos de seus clientes, é de Louise o papel de recordar os tempos mais antigos. É ela quem relata mais detalhadamente sobre como chegaram, ela e a irmã Martine, à prostituição. No caminho, as dificuldades financeiras, os maridos, as críticas dos familiares e conhecidos, os prazeres e perigos da profissão.

No trecho transcrito abaixo, datado de 1963, ela nos conta do desafio de criar os filhos sob aquelas circunstâncias e sem o apoio do marido (Willem), que a explorava e a abandonou por diversas vezes. Louise foi mãe de três filhos, dos quais viveu longe durante anos, enquanto trabalhava nos bordéis. Hoje, aos 70 e poucos anos, ela e sua irmã têm filhos, netos e bisnetos e não escondem seu passado. Afinal, “uma vez puta, sempre puta”.

Nigtevecht (Louise, 1963)

Ficou estabelecido que Willem cuidaria das crianças enquanto eu trabalhasse à noite. Mas Willem logo sentou o traseiro em um carrão norte-americano, um Thunderbird, que ele dirigia a toda velocidade pelo De Wallen, para se exibir. Eu soube mais tarde de fonte segura que o viram passar muitas vezes, o carro abarrotado de mulheres bonitas. Pensei: “Mas não é possível! Este idiota deixa as crianças sozinhas? Mas é perigoso!”.

No dia seguinte, minha vizinha do andar de cima me contou que tinha escutado as crianças chorar e caminhar. Ao que acrescentou:

— Mas dei uma olhada nelas a noite toda.

Eu disse então a Willem que largaria o batente naquele exato momento. Claro, ele logo achou uma boa justificativa. A culpa nunca era sua.

— Fica brava assim não, Lous, esse trabalho é por dois anos, depois você para. Os pequenos vão ter tudo o que precisam e a gente vai poder começar nosso próprio negócio.

Não acreditava em uma só palavra dele e refleti: “Preciso falar a respeito disso com alguma pessoa sensata”. Aquilo me incomodava para valer. Então contei a Leen, a patroa, que Willem deixava as crianças sozinhas. Ela tinha filhos em Nigtevecht — perto de Amsterdã — que hospedavam as crianças das prostitutas. Aquele era um modo de se antecipar à Assistência Social, pois antigamente os filhos de garotas de programa eram colocados automaticamente em um orfanato. Esse era o meu maior temor. Em Nigtevecht, cuidavam bem das crianças.
Leen marcou um encontro. Fomos lá junto com Willem. A casa ficava às margens do Vecht. Era um lugar magnífico para a meninada. Calmo, espaçoso, com um pomar e cheio de animais. Infelizmente, não podiam ficar os três juntos. O mais velho foi morar na casa da tia Anne e do tio Jaap, e os dois mais novos na da tia Jo e do tio Gerrit. Eu ia vê-los todas as semanas, às vezes com Willem, o carro repleto de presentes.

Quanto aos “dois anos de trabalho e depois as crianças voltam para casa”, não entrou mais em cogitação. O cara de pau nunca tinha bastante dinheiro. Eu precisava me virar sozinha. Ele simplesmente nos abandonou.

Nosso casamento durou nove anos, nove anos de desgraça. Depois do divórcio e de muitas andanças, pude enfim oferecer um lar aos meus filhos. Tive enfim meu próprio apartamento na Sloestraat, no sul de Amsterdã, pertinho da casa de meus pais.

Déborah Gouthier é jornalista.