Paulo Alexandre Faria Campos

“Foi com esse rio, que era avó, que aprendi a ler as profundezas daquilo que as pessoas carregam nos olhos”.

Este livro, embora não muito extenso, precisa ser lido devagar. É assim que senti e foi assim que fiz. Devagar porque é lindo e gera uma certa nostalgia. Devagar porque é também doído. E o que há de dor é um embolado, um bem bolado, ainda é parte do que há de belo, do que há de universal.

O texto todo, aqui, é sempre revelador da estranheza que tem o ser humano — escrevo do jeito que vejo, é mesmo a estranheza que tem a pessoa. Todo ser humano, nascido da perda do paraíso — e por isso tem que ser, como tenra criança, introduzido no mundo falante, da cultura, das palavras, dos sentidos —, é sempre açoitado pela estranheza. E parece que é dela, por causa dela, para tentar sair dela, que a criança aprende a amar… o ódio já havia… e as marcas vão aparecendo, vão ficando. São gentes que vão virando marcas. Sinto que o texto faz um relato do trajeto humano, em cartas.

É um livro, este da Claudia Machado, que me faz pensar assim: cada marca é uma gente que passou — o que quer dizer que não passou. A estranheza também não. É isso! Nunca passa!  Cada um vai tentando, vai treinando, vai aprendendo, dependendo do tipo de gente que cruza seu caminho (e das histórias de cada um), a fazer de conta que não há estranheza. Tentando fazer de conta que se pode não estranhar e nem arrepiar com cada outro, pessoinha que aparece, com sua diferença, muitas vezes bruta. 

O risco aí é correr o risco de, com frequência, ou sempre, a pessoa não reconhecer o seu lugar, e nem saber quem vem lá. Não saber da diferença.

Claudia Machado: escritora | Foto: Arquivo pessoal

Mas quando um alguém, João Altino Fonseca, o de cada um, começa a escrever Cartas ao Pai, é sinal de que o remetente tem notícias de onde está. Pelo menos sabe das suas dúvidas.

Cada uma das cartas de João Altino tem um lugar de origem, na “rota da antiga Estrada Real”. Aqui o percurso começa pela “picada de Goyaz”, São Sebastião do Alemão. A “Estrada Real” muda em cada história particular, mas está sempre lá, e com muitos santos: São Sebastião, São Pedro, São Domingos, Nossa Senhora Luz dos Aterrados…Diante do despertencimento, a primeira tentativa de escapar é com os santos, né? Sempre foi. Depois? …Ah!!!  A saber, em cada história. Eu? Aqui, prefiro as cartas. Tentar as cartas. Aqui neste livro, o remetente tem notícia da estranheza, não foge dela. E isso é rico. Muito rico.

Vejam se não é verdade o que digo: “A mulher do meu tio sempre sorria, mas eu sabia que não” — é o que está dito na Segunda Carta. E na Sétima Carta: “Foi com esse rio, que era avó, que aprendi a ler as profundezas daquilo que as pessoas carregam nos olhos”. Não é fala de alguém que olha mesmo para quem vem lá e para si?

E na terceira das cartas, tem mais esta: “O que será que ela devia quando devia?…O que será que herdei nesta dívida?”. São perguntas vivas, aquelas de quem conhece o desassossego. Olhar para ele, desassossego, é a alguma chance que há de se fazer algo com ele: cartas. Que fazem girar o lugar e o tempo. Se há dívida, ela precisa ser paga, perdoada, ludibriada, para, as vezes, sair-se dela: “… e vou perdoando…me perdoando – a cada palavra” – diz a Terceira Carta.

O remetente desta carta livro fala sobre isso, sobre o lugar e o tempo das coisas.  Faz um trajeto construindo aqui sua nova versão, para a vida seguir. Versão verdadeira, claro. O vivido é o verdadeiro, é o que diz a autora, ou autor – tanto faz, porque o trajeto feito aqui, hora precisa de um, hora precisa de outro -, das cartas, e o vivido o é com palavras, é o que vejo pelo algo que se transmite, e que recebo, desde Freud.

A nova versão, verdadeira, é sempre da criança que, desde a incompetência inaugural, recebe tudo como um assustador só. O desconhecido sempre de mãos dadas com o despertencimento. João Altino Fonseca se apresenta, como criança claro, dizendo ao Pai, já na Primeira Carta: “Te persegui e ainda persigo como um louco na esperança de pertencer à sua casa”. Claudia Carvalho, como autora, fala também, no primeiro texto, do peixe (livro-peixe) voltando do mar para o rio, e leio eu, a grande criança voltando para casa, do Pai.

As cartas, universais, falam da ambivalência — que é da condição humana. A volta não é sem briga. Essa briga que vive dentro de cada um de nós, desde sempre. Se na introdução a autora aponta o “livro-peixe” cumprindo a sina de desaguar no mar, já na Primeira Carta, tem a outra borda: “…chorei lágrimas que corriam para dentro como rio que se nega ao mar…”.

Uma primeira professora (Será que era?), na Quarta Carta, faz a chamada; João Altino Fonseca. “Você é Fonseca”, ela diz, ordena, impõe. Fonseca deve ser o nome do pai. Mas ele responde, “diletante e baixinho”, “Leão”.  E não é sempre assim? Um vai-e-vem, uma briga no peito, que pede boa governança de alma? E será que ela vem, a boa governança?

Depois da negação, a afirmação, na carta seguinte. É ódio e amor: “Fiz tudo na vida com fúria para você. Fiz tudo movido por um misto de sentimentos: ódio, desespero, ansiedade, tempestade, doçura, fraqueza, indisposição, ternura e horror…faço tudo por você.” Está na Quinta Carta. É assim, mesmo quando a gente não sabe que é. E na carta seguinte, a sexta: “Só sabia que quando perdia algo, era você que perdia de novo”.

Vou tentando não fazer revelações exageradas, para não tirar a graça da sua leitura, porque em cada livro que se lê o roteiro é do autor, ou da autora, mas a direção de cena, e daí em diante, é do leitor. Com certeza as frases que me beliscam a alma, e me emocionam, serão diferentes para cada um você-leitor. Então vou contando aqui, em poucas porções, como vi este filme, como ele me entranhou. E como me entranhou!

Quem escreve/percorre as cartas é esta criança, de noventa anos, em meio a estranheza e ao despertencimento, tentando com palavras, retomar, ou tomar pela primeira vez, as rédeas da sua história, numa viagem: “Ele, a mala, a solidão, um roteiro e papéis”, está registrado na introdução. É a criança que foi jogada de um lado a outro, ou se sentiu assim. Um dia tinha o rio e a parreira, no outro não tinha mais. E o alpendre, os amigos e campo de futebol? Também não tinha mais:

“A casa de minha nova mãe não tinha endereço…Era uma casa precária, solta no terreno, feita de madeira, sem muros, sem flores, sem alpendre, sem as parreiras e as cadeiras embaixo da sombra. Era uma casa pobre, feia e suja. E além do mais, ninguém me esperava”. É o que está dito na Décima Primeira Carta. “Ninguém me esperava”, – como dói esse negócio! Esta casa, da “nova mãe”, assim, hostil, foram várias, na vida de João Altino Fonseca. Na vida de muitos. Como a casa de Rubião.

“Já a casa de Rubião…era uma casa de miseráveis. Não tinha água potável, horta, árvores, patos, cachorros, vento, pássaros, rio, novidade, vizinhos…Não tinha vida”, está lá na Décima Sexta Carta. Mas a mesma carta mostra que tudo tem dois lados, que uma mesma casa são duas.

Estelinha, a mulher de Rubião, foi quem gritou, chamou nosso personagem, e correu para alcançá-lo, e o levou para sua casa, a mesma de Rubião, só que não: “A casa da Estelinha não era a de Rubião. Demorei para entender isso. Estelinha, como o próprio nome diz, era uma pequena estrela” (ainda na Décima Sexta Carta). Vejam se não estão aí, embolados, outra vez, o despertencimento e a sabedoria sobre o lugar, das coisas e das pessoas… sabedoria sobre as pessoas do lugar. Está aí também um pingo de amor.

Generosa como Estelinha, também foi a professora.

Entre tanto que se tinha e se perdia, um dia tinha e no outro não, também teve a escola, abandonada pela obrigação do trabalho. Os colegas traziam o recado da professora para que ele voltasse. A avó não permitiu. Mas professora tem que ter sintoma de professora. Essa tinha: “Num desses dias comuns de trabalho, fui pego de surpresa. Fiquei muito emocionado! Chorei de alegria e felicidade: Quando estava em casa, chegou a professora e meus colegas de sala que gritavam em uníssono para eu voltar. A professora pedia à avó que cedesse e me deixasse retornar aos estudos. Não sei se avó foi tocada, não sei dizer o que se passou com ela naquele instante. Sei que, para meu assombro e de todos ali, ela concordou com o meu retorno”. (Nona Carta)

Então é isso. Há sempre uma criança voltando, buscando uma invenção, uma versão, verdadeira, para driblar a estranheza e o despertencimento. É disso que trata esta obra, que eu adorei: “Volta!, eu grito  agora que as grades desse imenso corpo encerraram a minha criança”(Nona Carta).                                   

Paulo Alexandre Faria Campos é jornalista e psicanalista. (O artigo acima é a apresentação do livro. É publicada sob autorização do autor e da escritora.)