Candice Marques de Lima

Especial para o Jornal Opção

“Contemplo a grande figueira. Não, os assassinos não venceram. Meus dois filhos estão vivos. Eles viram a grande figueira que conserva a memória; como ela, eles lembrarão.” — Scholastique Mukasonga

Começo o texto com perguntas: o que a literatura pode causar em nós? Ou como ela nos afeta?

Geralmente um livro me afeta, me confronta, me apresenta situações inusitadas, há muito conhecidas e pouco compreendidas. Sou daquelas pessoas que pensam que a literatura em si não precisa ter nenhuma função que não seja produzir algo no/a leitor/a — um prazer estético. Tampouco penso que a literatura deva ter compromisso com a moral, especialmente a moral pequeno-burguesa. O moralismo a gente deixa para as discussões nas paróquias, nos templos e para outros espaços em que ele precise acontecer.

Recentemente li um livro por indicação de uma amiga, Tina Lilian, que me afetou, que provocou em mim aquilo que Freud nomeia por Unheimlich. Esta palavra alemã, intraduzível para a Língua Portuguesa, foi elevada por Freud como um conceito ao trazer as dimensões paradoxais entre o estranho e ao mesmo tempo familiar. Trata-se daquilo muito íntimo e conhecido e que ao mesmo tempo nos provoca espanto, nos tira as certezas e abre possibilidades de outros caminhos de conhecimentos.

Scholastique Mukasonga: uma das vozes mais poderosas da literatura africana | Foto: Reprodução

Geralmente os livros que gosto são Unheimlich — trazem o “infamiliar”. Foi dessa forma que o livro da escritora Scholastique Mukasonga me afetou.

Scholastique Mukasonga, de 67 anos, é uma escritora tutsi de Ruanda, que vive na França. Seus livros contam sobre o genocídio que os tutsis sofreram pelos hutus, duas etnias do país. Li e escrevo sobre o primeiro livro escrito por ela: “Baratas” (Nós, 180 páginas, tradução de Elisa Nazarian). O título chama atenção e a autora explica que baratas, ou inyenzi, era como os tutsis eram chamados pelos hutus. É interessante pensar sobre como se pode chamar um humano dessa maneira. Geralmente é um dos primeiros atos quando se quer destruir uma pessoa ou um povo.

Para nós humanos, criados à imagem e semelhança de deus, por conseguinte dotados de inteligência e de linguagem, os outros seres não falantes não precisam ter a mesma consideração e cuidados que devemos ter com outros humanos. Assim, a desumanização é a forma que se encontra quando se quer destruir nossa própria espécie.

Em “Baratas”, Scholastique Mukasonga parte da história de sua própria família para contar sobre o genocídio que os tutsis sofreram ao longo de 40 anos. Em belas (e dolorosas) passagens, carregadas de lirismo, a escritora narra como os tutsis começaram a ser perseguidos pelos hutus e como seu genocídio foi posto em prática na década de 1990.

Scholastique Mukasonga não deixa de narrar cenas terríveis de barbárie, como o assassinato de sua irmã caçula, Jeanne, grávida de oito meses. Mas, advirto o/a leitor/a, são cenas possíveis de serem lidas. São cenas Unheimlich, assustadoras, tensas, mas que, escritas com cuidado, tornam-se legíveis.

A autora franco-ruandesa não pretende com sua escrita nos causar sofrimento extremo. Ela quer contar a história de sua família e de um povo. Ela escreve seus nomes. Sua escrita, como ela mesma narra, é para que as pessoas não sejam esquecidas. “Os assassinos quiseram apagar suas lembranças, mas, no caderno escolar que nunca me deixa, registro seus nomes, e não tenho pelos meus e por todos aqueles que pereceram em Nyamata, nada além deste túmulo de papel.”

Sholastique Mukasonga: a escritora “promove” o encontro entre a literatura e a literatura | Foto: Reprodução

Scholastique Mukasonga conta que tutsis e hutus viviam de maneira pacífica até que os belgas, que passaram a colonizar Ruanda e o Burundi em 1919, escolheram os hutus para ocupar os cargos administrativos mais altos.

“Gostaria de escrever esta página com as minhas lágrimas”

Em 1959, “a engrenagem do genocídio”, narra Mukasonga, foi iniciada com o afastamento dos tutsis de suas casas e trabalhos. A autora relata que os belgas atuaram diretamente nesse movimento. “A transferência foi organizada por paraquedistas belgas. ‘Para nos impressionar’, ele conta [Scholastique se refere à narrativa de seu irmão André], ‘um deles jogou uma granada em um cachorro, que foi destroçado’.”

Ao longo do livro, Scholastique Mukasonga conta a trajetória de sua família, seus pais Cosma e Stefania, suas quatro irmãs e dois irmãos, para uma savana quase desabitada, com animais ferozes e moscas tsé-tsé, em Nyamata, Bugesera. Ela narra como construíram uma moradia e sobreviveram. Scholastique Mukasonga e seu irmão André foram os escolhidos para fugir e irem estudar no Burundi. Ela se tornou assistente social e seu irmão, médico.

Não é sem sofrimento e sem dívida simbólica que Scholastique Mukasonga sobreviveu, fugiu, se casou com um francês e teve dois filhos. Ela escreve que cumpriu a missão dada por seus pais: “Viver em nome de todos”. E sua escrita é a forma de honrar e enterrar seus mortos. Os corpos de seus pais nunca foram encontrados e a escritora não descobriu nem onde nem como foram mortos. A maior parte de sua família, e outros milhares de tutsis, foi assassinada cruelmente por hutus que usaram facões, torturas e outros métodos.

De uma história Unheimlich, Scholastique Mukasonga consegue narrar de maneira poética, denunciar e manter viva sua história familiar.

Tanscrevo as duas primeiras páginas do livro “Baratas”, de Scholastique Mukasonga.

Todas as noites meu sono é abalado pelo mesmo pesadelo. Sou perseguida, escuto uma espécie de zumbido que vem em minha direção, um barulho cada vez mais ameaçador. Não me viro. Não vale a pena. Sei quem me persegue… Sei que eles têm facões… Às vezes, também, aparecem minhas colegas de classe. Escuto seus gritos quando elas caem. Quando elas… Agora, estou correndo sozinha, sei que vou cair, que vão me pisotear, não quero sentir o frio da lâmina sobre o meu pescoço, eu…

Acordo. Estou na França. A casa está em silêncio. Meus filhos dormem em seu quarto. Tranquilamente. Acendo o abajur de cabeceira. Vou até a sala e me sento em frente a uma mesinha. Sobre ela, há uma caixa de madeira e um caderno escolar de capa azul. Não preciso abrir a caixa, sei o que ela contém: um pedaço de tijolo todo gasto, uma folha seca, uma pedra chata e afilada, as bordas cortantes, letras escritas em folhas de caderno.

Sobre a mesa também há uma foto, uma foto de casamento, o casamento de Jeanne, minha irmã caçula. Estão todos reunidos: a noiva em seu vestido branco, que eu mandei fazer em um alfaiate paquistanês em Bujumbura; Emanuel, o noivo, apertado em seu terno; meu pai, com a canga branca amarrada no ombro; minha mãe, muito frágil, envolta em sua roupa domingueira. Procuro Antoine, meu irmão mais velho, e seus nove filhos, minha irmã Alexia e seu marido, Pierre Ntereye, professor universitário, e Judith, a mais velha da família, que fez a comida das núpcias porque, em Kigali, ela aprendeu a preparar a cozinha “moderna”; e todos os sobrinhos, todas as sobrinhas, e todos de Nyamata, de Gitwe, de Gatagata. Eles vão morrer. Pode ser que já sabiam disso.

Onde estão eles hoje? Na cripta memorial da igreja de Nyamata, crânios anônimos entre tantas ossadas? Na brousse, sob os espinheiros, em uma fossa que ainda não veio a público? Copio inúmeras vezes os nomes deles no caderno de capa azul, quero provar a mim mesma que eles existiram, pronuncio seus nomes um a um na noite silenciosa. Sobre cada nome devo definir um rosto, pendurar um retalho como lembrança. Não quero chorar, sinto as lágrimas escorrerem pelas minhas faces. Fecho os olhos, esta será mais uma noite sem sono. Tenho muitos mortos a velar.

Candice Marque de Lima é professora da Universidade Federal de Goiás.