Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

O estrondoso sucesso de abertura da China para o resto do mundo nestes tempos de globalização é algo impossível de se imaginar para aqueles que conhecem, mesmo que tangencialmente, os 7000 anos de história daquele país. “Negociar com os políticos chineses requer paciência, muita paciência” — assim se expressou o maior líder político da China, Mao Tsé-tung ao chanceler norte-americano Henry Kissinger quando ele foi, após várias tentativas, recebido pelo poderosíssimo líder chinês. “Nosso passado de 7000 anos de história evidencia o muito que podemos esperar, pois, para nós, ‘1 minuto pode representa 100 anos’.” A China pode sempre esperar. Henry Kissinger passou no teste de paciência imposto pelo Partido Comunista — fato que muito contribuiu para que o país negociasse com os Estados Unidos a inserção daquele país no mundo que se globaliza.

Com a preocupação de entender a fundo o sucesso das reforma chinesa é que a pesquisadora alemã Isabella M. Weber se propôs, na tese por ela desenvolvida, entender por que uma nação mais que milenar, presa nas amarras do subdesenvolvimento, se transformasse numa potência econômica que não se vergou às teses neoliberais defendidas pela maioria dos países que se envolveram numa espécie de “terapia de choque” neoliberal voltada para construção do Estado mínimo. Isabella Weber nos relata como isso foi possível num país socialista que soube, com sabedoria, construir seu próprio caminho. O país de Mao Tsé-tung não se vergou às receitas prontas da ortodoxia e da heterodoxia: construiu seu próprio modelo — que se enquadra em algo que transcende ao tecnicismo e as ideologias econômicas: a  sabedoria.

Posto isso, creio ser oportuno ressaltar algo interessante que nos lembra a autora naqueles tempos em que o Brasil obteve um das maiores taxas de crescimento econômico do planeta.

Ciente disso, o governo comunista dos anos setenta enviou uma delegação para observar o que o Brasil tinha a ensinar àquela China de pífio crescimento econômico. A partir daí China e Brasil tiveram movimentos contrários. No momento que a economia chinesa obtinha consideráveis aumentos de seu Produto Interno Bruto, o Brasil perdia o rumo de seu desenvolvimento e o que disso resultou: queda no crescimento econômico.  

China, Rússia e opções na nova ordem mundial

O fracasso de inserção da Rússia na economia globalizada contrasta com o sucesso que teve o país de Mao Tsé-tung nestes tempos em que o mundo se globaliza e se insere competitivamente na dinâmica da economia mundial. Vista pelo prisma de inserção dos resultados, é inegável o excepcional resultado que teve o país de Deng Xiaoping. E isto se deve ao fato de a China se recusar a implementar a terapia de choque com as reformas lideradas por esse pequeno grande homem. Sob a liderança dele, o país de Mao obteve por décadas extraordinárias taxas de crescimento e disto resultou inclusão da sociedade de parcela significativa da população em faixas mais significativas de consumo. Por outro lado, a Rússia, com opção pela terapia de choque, intensificou o programa de privatização de empresas estatais, o que resultou na elevação da desigualdade de renda.

Só para se ter uma ideia do contraste dos resultados de um país (no caso a Rússia) que adotou a terapia de choque e outro que recusou esse caminho (no caso a China), a autora estabelece a seguinte comparação: “A participação Russa  no PIB mundial caiu quase pela metade — de 3,7% em 1990 para cerca de 2% em 2017 —, enquanto a participação da China aumentou quase seis vezes — de apenas 2,2% para cerca de um oitavo da produção global. A Rússia passou por uma drástica desindustrialização, enquanto a China  se tornou a notória fábrica do capitalismo mundial”. 

 A terapia do choque de que nos fala a autora se enquadra nos ditames do Consenso de Washington — que nada mais é que uma imposição neoliberal concebida por meio de medidas que diminuem o tamanho do Estado, o qu acaba beneficiando as pessoas de maior poder aquisitivo.

De maneira bastante sucinta é possível estabelecer como parte integrante da terapia de choque ações da seguinte ordem: liberação de todos os preços em um único big bang; privatização, liberação do comércio e estabilização, na forma de políticas fiscais e monetárias rígidas.

Outro aspecto que deve ser considerado e evidencia no momento em que se estabelece diferenciações entre o sistema de preços de mão dupla e o chamado big bang  Estes últimos se aplicam no momento em que se desregulamenta tudo. Nesse contexto a presença do Estado é mínima. Esse sistema de preços provocou apaixonadas discussões entre os jovens economistas chineses oriundos de um dos maiores templos do neoliberalismo mundial: a Universidade de Chicago — que é voltada para a prática das políticas neoliberais. Contrabalanceando ao big bang neoliberal, os experientes economistas chineses pensavam diferente quando a liberação dos preços na China. Estes deveriam jamais prescindir do papel do Estado. A sabedoria chinesa propôs o modelo de mão dupla gerenciado pela burocracia estatal. O sistema de mão dupla só privatizava onde a presença do Estado não fosse necessária. Como  tempo, as opções internas dos mais experientes economistas chineses se impôs ao neoliberalismo construído por Milton Friedman e seus seguidores. A China não era o Chile.

Em seus escritos a autora nos alerta para fato de que o sucesso do modelo chinês — que recusou a aplicação de planos ortodoxos e heterodoxos — se centra no contínuo aprendizado. Certamente os princípios são uma espécie de balizadores da ação política comandada pelo partido único que conduz os cordéis da política chinesa. Nesse sentido, convém entendermos um pouco da sabedoria chinesa contido no livro chamado “Guanzi”.

Guanzi: bíblia da sabedoria chinesa

O “Guanzi” é um livro que transcende ao apenas técnico contido nos planos de estabilização da economia. Nesse contexto os princípios da sabedoria de uma sociedade de 7000 anos fazem a diferença.

A importância do livro de Isabella Weber — PhD em Economia pela New School for Social Research de Nova York e em estudos de desenvolvimento pela Universidade de Cambridge, tendo se graduado em Berlim e Pequim — transcende a ideologia da economia centrada seja na ortodoxia, seja na heterodoxia. De uma maneira mais ampla, a autora conseguiu inovar no momento que suas análises relacionam a tecnocracia com a sabedoria contida no “Guanzi”.

Uma discussão muito interessante contida no “Guanzi” envolve o conceito de pesado e leve. O pesado se atrela ao que essencial; o leve ao supérfluo. Sendo assim, para o “Guanzi”, “quando as coisas são abundantes, elas ficam baratas; quando são escassas, ficam caras”.

 O “Guanzi” influenciou diretamente um conceito bastante usado pela economia tradicional: o de monopólio. Veja-se o princípio contido na bíblia chinesa que antecipou o conceito de monopólio: “Bens que valem a pena acumular se tornarão pesados e, inversamente, [bens não que valem a pena  acumular] se tornarão leves”.

Mão visível do Estado comandou reformas

A partir dessa constatação é possível compreender o porquê a China foi capaz de se reinventar de uma maneira absolutamente original. Na grande maioria dos países as duas correntes do pensamento econômico voltadas para as dimensões do Estado se digladiavam entre si. Mas a China não se deixou se atrair pelo canto das sereias do Estado mínimo ou da economia planificada inerente ao Estado-empresário.

O grande mérito da China foi construir um modelo próprio — respeitando a cultura de um país com 7000 anos de história. É nesse contexto que o livro “Guanzi” se torna uma espécie de bíblia que regula a atividade econômica do país sob o ponto de vista da estabilização dos preços. Foi consultando os ensinamentos contidos no “Guanzi” que os economistas chineses contrários ao neoliberalismo conceberam um modelo próprio adaptado à cultura chinesa.

Ao relatar sua experiência com os ensinamentos desse livro, a autora nos ajuda a entender a importância do “Guanzi” na construção do modelo econômico chinês.

“Ao longo deste livro, aproveito minha leitura do ‘Guanzi’ a partir da década e do debate sobre o sal e o ferro como uma lente para uma nova perspectiva sobre os recentes debates e práticas da reforma de mercado. Na China. Ao reconhecer uma consciência de mercado distinta e de longa data entre as autoridades imperiais chinesas, bem como as teorias autóctones de comercialização por intermédio do Estado, evitou enquadrar a mudança do mercado como uma simples tendência importada do Ocidente. Essa perspectiva me permite ver os debates da reforma do mercado na China como uma simples ocidentalização de preços.”

Na China a mão invisível do mercado de que tanto nos fala o economista escocês Adam Smith (1723-1790) em seus escritos foi introduzida sob a liderança da mão visível chamada Estado.

Salatiel Pedrosa Soares Correia é engenheiro, bacharel em Administração de Empresas, mestre em energia pela Unicamp. Autor de oito livros relacionados aos temas energia, economia, política e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.