Cormac McCarthy é o equivalente literário de uma catedral gótica. Imensa, taciturna e sombria; impactante, mas intricadamente ornamentada; sóbria, mas de estilo deliberado. Este, que é o escritor americano celebrado como “herdeiro genuíno de uma tradição faulkneriana” (“Washington Post”) e que está sempre entre os cotados para o Nobel de literatura, ainda é relativamente pouco lido pelos brasileiros.

Enquanto a crítica americana mais recentemente se dedica a autores classificados como pós-modernistas (ou pós-pós-modernistas, como queria David Foster Wallace), como Paul Auster, Phillip Roth, Kurt Vonnegut, Don DeLillo e afins, Cormac McCarthy parece um artefato do passado. O escritor de 86 anos quase não dá entrevistas ou aparece em fotografias, não lê críticas e não está conectado.

Cormac McCarthy vai além ao escrever apenas sobre duas coisas: a vida e a morte. Como o próprio afirmou em uma de suas raras entrevistas, ao “New York Times Magazine”, não entram em sua lista de referências os escritores que tratam de dramas psicológicos ou conflitos pela hierarquia social, como Proust e Henry James. O escritor néo-gótico confessa: “Não os entendo. Para mim, isso não é literatura. Muitos escritores que são considerados bons, considero estranhos”.

Cormac McCarthy
Cormac McCarthy deixou sua família rica e foi viver como derrelito nas periferias de Knoxville | Foto: Reprodução

McCarthy tem uma natureza mítica capaz de remeter a um tempo quando padrões de luzes no céu estavam carregados de sinais, a vida do homem dependia de ação imediata, e a consciência ainda não tinha se afastado tanto da terra selvagem e misteriosa ao construir artificialidades para se refugiar. Desta forma, a obra e a história de vida do autor têm conteúdos semelhantes. O repórter da “New York Times Magazine” Richard B. Woodward escreve: “Seria difícil pensar em um grande escritor americano que tenha participado menos da vida literária. Ele nunca ensinou literatura ou escreveu jornalismo, nunca fez leituras, nem editou um livro, nem concedeu entrevistas, e nenhum de seus romances vendeu mais de 5.000 cópias (isso até a data de publicação da entrevista, 28 anos atrás. Hoje, diversos de seus livros entraram para a lista de best-sellers americanos). Durante a maior parte de sua carreira, ele nem sequer teve um agente.”

Suttree

As excelentes adaptações cinematográficas “Onde os Fracos Não Têm Vez” (Joel e Ethan Coen) e “A Estrada” (John Hillcoat), com seus oscars e leões de ouro, atraíram alguma atenção editorial para a obra de McCarthy. Seus primeiros quatro romances, que cobrem os quinze anos da “fase sulista” do autor, foram traduzidos apenas para o português europeu, pela editora lusitana Relógio D’Água. Após a mudança de McCarthy de Knoxville, Tennessee, para El Paso, Texas, tem início a fase em que seus romances ganham os tropos do Oeste americano e que foram trazidos ao Brasil pela Alfaguara.

Cormac McCarthy Suttree

Cormac McCarthy disse ao entrevistador da “New York Times Magazine” que “livros são feitos de livros”, mas ele não tem vontade de discutir como suas próprias obras se baseiam nas obras de outros escritores. No entanto, seus romances aludem a uma extensa gama de obras literárias, demonstrando que está bem ciente da tradição literária, respeitando o cânon e se situando deliberadamente em uma relação de conhecimento com precursores.

A coleção Wittliff da Texas State University adquiriu o arquivo literário de McCarthy em 2007. Na obra “Books are Made Out of Books” (“Livros são feitos de livros”, sem tradução para o português), o pesquisador Michael Lynn Crews examina o arquivo para identificar cerca de 150 escritores e pensadores que o próprio McCarthy faz referência em rascunhos, margens, notas e correspondência. Essa exploração das influências literárias de McCarthy expande a compreensão de como um dos principais autores da América se envolveu com ideias, imagens, metáforas e linguagem de outros pensadores e os tornou seus próprios.

Melville, Joyce, Dostoiévski, Poe e Shakespeare são citados como influenciadores no capítulo dedicado a “Suttree” (1979, Random House; sem edição brasileira). “Suttree” é a obra a que Cormac McCarthy dedicou duas décadas de sua vida e a primeira a demonstrar a maturidade e o domínio o autor que viria expor extensamente em “Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste”  (1985, Alfaguara), sua obra mais celebrada. “Suttree” é o livro que melhor reúne os elementos da prosa gótica sulista (Southern Gothic) pela qual atraiu atenção inicial.

De Edgar Allan Poe, Cormac McCarthy toma o tema do poema “Ulalume”: uma jornada gótica que, metaforicamente, é uma jornada para o próprio interior do personagem-título. De William Shakespeare com “Hamlet”, toma o cenário grandiloquente. Até mesmo os ecos de escritores pulp, como Wilbur Daniel Steele, estão presentes no romance que se passa na década de 1950.

“Suttree” é uma comédia em dois sentidos: no significado coloquial, pois é um livro engraçado, cheio de personagens absurdos e grotescamente americanos; e no literário, porque a trama conta a história de um homem indo do pecado à salvação, do inferno aos céus, um peregrino como Dante (cuja “Divina Comédia” é aludida no episódio de delírio de Suttree nas montanhas).

Suttree é o personagem-título que cai em isolamento e depressão após abandonar a família e perder um filho. Entretanto, na jornada rumo ao renascimento de Cornellius Suttree através de presídios, igrejas, casas de infância e principalmente favelas de Knoxville, não há julgamento moral de personagens tão grotescos quanto o delinquente juvenil Harrogate. Pelo contrário: suas histórias reprováveis são narradas com tanto humor, empatia e graça espiritual que tornam-se melancólicas.

Tendo dedicado sua vida toda à escrita, Cormac McCarthy foi extremamente pobre durante toda sua vida, tornando-se famoso apenas na velhice | Foto: Reprodução / Wikicommons

Além disso, este também é o único romance autobiográfico de McCarthy. Como o personagem-título, o autor confessa que não era o que seus pais esperam dele. Sentia que não seria um cidadão respeitável, por conta de seu temperamento introspectivo e da paixão pela literatura pouco lucrativa. Como resultado do conflito, ambos abandonaram o seio familiar, indo viver no exílio, às margens do poluído rio Knoxville. Enquanto o personagem ficcional pescava para sobreviver, o homem real nunca trabalhou (além de escrever), confiando nos dólares trazidos por suas esposas. Novamente como o personagem, seu principal passa-tempo era a bebida.

Entretanto, talvez o que mais impressione o leitor na obra de McCarthy seja a prosa. Como que esculpida em pedra, cada sentença parece laboriosamente trabalhada e arquitetada para gerar o maior impacto possível. O lirismo profundo é, às vezes, apenas suportável porque está cercado de objetividade taciturna e centrado em temas imediatos — a árdua sobrevivência do auto-marginalizado Suttree. Com estrutura episódica e personagens efêmeros, a atenção do leitor se desvia da trama para elementos mais tênues.

Prefácio

Diferente do restante do romance, em que impera a economia de palavras, o prefácio de duas páginas italizadas é palavroso, convoluto, carregado de adjetivos e neologismos; mas cumpre bem seu papel de guiar o leitor ao Sul negro e pobre dos Estados Unidos. Apesar de não representar o estilo no restante da obra, este prefácio mostra o poder da prosa deste que é um gigante atemporal.

Prefácio de Suttree, editora Random House, 1979, Cormac McCarthy. Tradução de Italo Wolff.

Caro amigo, agora nas horas poeirentas e intemporais da cidade quando as ruas jazem escuras e fumegantes no rastro dos caminhões-pipa, e agora que os bêbados e sem-teto desaguaram nas vielas e nos terrenos baldios e gatos vagueiam nos redondezas sombrias — agora, nestes corredores de paralelepípedos ou tijolos negros de fuligem onde as sombras dos fios elétricos formam harpas góticas nas portas dos porões, nenhuma alma andará senão a sua.

Velhos muros de pedra que resistiram às intempéries, instalados em seus ossos fósseis estriados, escaravelhos de calcário alojados no assoalho deste que já foi um mar interior. Árvores finas e negras que se vê através da cerca paliçada de ferro, onde os mortos guardam sua pequena metrópole. Curiosa arquitetura de mármore, estrela e obelisco e cruz e pequenas lápides desgastadas pela chuva onde nomes se ofuscam com os anos. Terra semeada com amostras da arte do fabricante de caixões, ossos poeirentos e seda podre, a mortalha manchada de carniça. Lá fora, sob a luz azulada dos candeeiros, os trilhos do bonde se perdem no escuro, curvados como esporão de galo ao lusco-fusco de ouropel. O aço exala o calor do dia, você consegue senti-lo através da sola dos seus sapatos. Passe pelas paredes de chapa onduladas desses armazéns e percorra as vielas areentas onde carros depenados repousam nos pedestais de blocos de concreto. Atravesse os campos de sumagre e erva tintureira e madressilva ressecada que dão para as elevações barrosas dos trilhos de ferro. Trepadeiras cinzentas enroladas para a esquerda neste hemisfério setentrional, o que as enrosca  também forma a concha do caramujo. Ervas brotadas do cimento e tijolo. Uma escavadeira a vapor com a pá erguida em abandono solitário contra o céu noturno. Atravesse aqui. Sobre bifurcações dos trilhos e talas de transição onde motores roncam como leões no pátio da ferrovia escura. Para uma cidade mais escura, passando postes com lâmpadas apedrejadas à cegueira, passando barracos tortos esfumaçantes e cachorros de porcelana e pneus pintados onde flores poeirentas crescem. Desça o piso pavimentado com ruína, o lento cataclisma da negligência, os fios que embarrigam de poste a poste através de constelações penduradas com fios de pipa, sapatos amarrados juntos pelos cadarços, brinquedos de crianças menores. Acampamento dos condenados. Cercanias, talvez, onde leprosos gotejantes perambulam sem guizos. Acima do calor e da silhueta improvável da cidade uma lua de latão elevou-se e as nuvens correm diante dela como tinta aguada. Os edifícios estampados contra a noite são como um baluarte para o mundo adiante, abandonado, de antigos propósitos esquecidos. Camponeses vêm até aqui por quilômetros com terra agarrada aos sapatos e sentam-se o dia todo no mercado como mudos. Essa cidade construída sob nenhum paradigma conhecido, uma arquitetura mestiça que recapitula os trabalhos humanos em uma breve delineação de tudo o que é aberrante, desordenado e maluco. Um carnaval de formas erguida na planície do rio que sugou a seiva da terra por quilômetros ao redor. 

Paredes da fábrica de velhos e escuros tijolos, trilhos invadidos pelas ervas daninhas, um canal de água escoada, imunda e azul, onde filamentos escuros de escória indefinível ondulam na corrente. Folha de flandres nas armações enferrujadas das janelas. Há um esgar em forma de crescente na lâmpada do poste onde uma pedra entrou e desta abertura cai, por meio da espiral constante de insetos ascendentes, um chuvisco das mesmas criaturas queimadas e sem vida.

Aqui, na desembocadura do córrego, os campos descem até o rio, a lama formando um delta e expelindo de seus ricos aluviões as ossadas e o lixo pavoroso, destroços de caixas de madeira e preservativos e cascas de frutas. Velhas latas e jarros e artefatos domésticos arruinados que surgem do atoleiro fecal como marcos nos vales sem rastros da demência precoce. Um mundo além de toda fantasia, malevolente e tátil e dissociado, as lâmpadas estilhaçadas como pólipos semi translúcidos e da cor de crânios, boiando cegamente correnteza abaixo, e olhos espectrais de óleo e aqui e ali, encalhadas e fedorentas as formas de fetos humanos inchados como passarinhos de olhos arregalados e azulados ou de um cinza rançoso. Adiante, no escuro, o rio rasteja vagaroso rumo aos mares do sul, arrastando pés de milho e plantações pequenas e barro das hortas dos fazendeiros do interior que a chuva destruiu, rangendo ao longo do leito como pó de osso, carregado com o passado, sonhos dispersos na água sabe-se lá como, nada nunca se perde. Casas flutuantes puxam suas amarras. A lama ao longo da margem jaz acidentada e escorregadia como a carcaça cavernosa de alguma besta naufragada e, mais além, o campo se estende ao sul e às montanhas. Onde caçadores e lenhadores já dormiram de botas calçadas junto às últimas luzes de suas mil fogueiras e seguiram adiante, velhos antepassados teutônicos com olhos incandecidos por uma imensa cobiça, enxurrada após enxurrada de homens violentos e insanos, seus cérebros alimentados por versões obscuras de tudo que houve, arianos magros com seu livro de cordel semítico proibido a reencenar os dramas e parábolas contidas nele, desvairados e pálidos com um anseio que nada salvo o esquecimento total da escuridão poderia saciar. 

Chegamos a um mundo dentro do mundo. Nestas extensões estranhas, nestas fossas repugnantes e rejeitos intersticiais que os justos avistam de suas carruagens, outra vida sonha. Deformada ou negra ou transtornada, fugitivos de toda ordem, estrangeiros em todas as terras. 

A noite está quieta. Como um acampamento antes da batalha. A cidade atormentada por uma coisa desconhecida, e ela virá da floresta ou do oceano? Os sentinelas fortificaram a paliçada, os portões estão fechados, mas eis a coisa dentro dos muros, e você consegue adivinhar sua forma? Onde é mantida ou o contorno de seu rosto? É um tecelão, lançadeira ensanguentada atirada através do tempo, cardador de almas da lanugem do mundo? Ou um caçador com cães, ou será que esqueletos de cavalos puxam seu carro funerário pelas ruas e será que ele oferece a todos os seus serviços? Caro amigo, não se deve pensar sobre ele porque é justamente desta forma que se convida-o para entrar. 

O resto de fato é silêncio. Começou a chover. Garoa de verão, você pode vê-la caindo inclinada nas luzes da cidade. O rio jaz em um graal de quietude. Aqui, da ponte, o mundo abaixo parece uma dádiva de simplicidade. Curioso, nada mais. Lá embaixo, nas grutas de luz derramada, um gato aparece de pedra em pedra através da calçada de um negro líquido e costura em rápidos opostos pela rua escurecida pela chuva apenas para desaparecer, gato e contragato, nas fendas entalhadas adiante. Fraco relâmpago de verão ao longe, rio abaixo. Uma cortina se ergue sobre o mundo ocidental. Uma chuva fina de ferrugem, besouros mortos, ossinhos anônimos. A plateia está coberta de poeira. Dentro das órbitas evisceradas do mestre-de-cerimônias uma aranha dorme e as ruínas articuladas do bobo dependurado balançam, suspensas na forca, pêndulo de ossos em trajes multicoloridos. Figuras quadrúpedes perambulam sobre o tablado. Formas mais rudes sobrevivem.