Yuri Baiocchi

Respeitávamo-nos. Conheci a doutora em História Lena Castello Branco em 2013: o médico e fotógrafo Luiz Mauro Vasconcellos, seu vizinho na Rua 94 e quem me trouxe ao mundo (tudo isso no século passado), foi o responsável pela nossa apresentação.

 Leitor de apetite voraz, mas requintado, Luiz Mauro era do tipo que devorava até mais de três livros simultaneamente, comentando-os com os amigos e realizando anotações que facilmente entrariam para qualquer nova edição.

 Antes de me apresentar a Lena, iniciou-me em Pedro Nava e seu “Baú de Ossos” (Companhia das Letras, 520 páginas) — dedicado ao casal Rachel de Queiroz e Oyama de Macêdo. Ela, prima do autor e de José de Alencar. Ele, goiano e meu parente. Nava fora o cupido da relação de sua prima com o amigo e colega de medicina.

Conheci Lena por sua chef-d’œuvre, “Poder e Paixão — A Saga dos Caiado”, dividida em dois volumes. Lembro-me até hoje do entusiasmo do Luiz Mauro durante a leitura do primeiro volume, que empolgou até mesmo meu primo José Xavier de Almeida Neto (cujo avô sofrera um golpe da oligarquia ali biografada).

Comecei a ler o primeiro volume lá mesmo no apartamento de Luiz Mauro Vasconcellos e Selva Rios Sócrates. Como nunca gostei de pegar livro por empréstimo, recorri à compra pelo site da Cânone Editorial. Para minha frustração e alegria da autora e certamente da editora, o volume 1 se encontrava esgotado.

O primeiro contato com a figura de Lena, no entanto, devo à premiada tradutora goiana Maria Luiza Xavier de Almeida Borges: a professora universitária e também tradutora Zilah Xavier de Almeida, mãe de Maria Luiza, fora amiga de Lena nos anos 1950.

À época docente na Faculdade de Filosofia da atual PUC Goiás, Zilah acompanhara os ensaios e a encenação da peça “O Anúncio Feito a Maria”, do francês Paul Claudel, dirigida pela aluna Lena Castello Branco. Maria Luiza, ainda muito menina, participara de uma das cenas do espetáculo.

Zilah — nas palavras de Lena, “uma das pessoas mais inteligentes que conheci” — era filha do juiz federal Luiz Xavier de Almeida e de Coracy da Rocha Lima. Sobrinha de José Xavier de Almeida e neta de Miguel da Rocha Lima, ex-governantes de Goiás que foram depostos pelos Caiado em 1909. Zilah se casou com Oriwaldo Borges Leão (Vadinho): odontólogo, fundador e professor da Faculdade de Odontologia da UFG, professor de matemática do Liceu de Goiânia, diretor do BEG, presidente da Sociedade Goiana de Cultura e um dos primeiros prefeitos de Goiânia (nomeado pelo interventor e general Filipe Antônio Xavier de Barros, pai da primeira mulher de Oyama de Macêdo). Era filho do senador Antônio Martins Borges e Maria da Conceição Silveira Leão (Chatinha). Vadinho era, pois, irmão de Gercina Borges e cunhado de Pedro Ludovico Teixeira.

No entanto, ali no ambiente acadêmico eram apenas mestra e aluna. Não existia ainda a biógrafa da família Caiado nem eram relevantes para as aulas os parentescos da professora com todas essas oligarquias.

Talvez já existisse sim a professora reconhecida por suas ideias mais à esquerda e a aluna, bom, sentada bem à direita. O que não parece ter abalado a mútua admiração.

Mais de 60 anos após a encenação da peça de Claudel na Faculdade de Filosofia, Lena reencontrou aquela criança que fora figurante numa das cenas, remetendo-lhe os dois volumes de sua obra “à tradutora Maria Luiza X. de A. Borges, neta do senador Antônio Martins Borges — figura importante nesta história”.

 Vai-que-cola, assim que soube do envio, escrevi a Lena perguntando se ela não teria outro exemplar do primeiro volume e que eu gostaria de adquirir, já que não havia mais no estoque da editora.

 Veio a resposta: “Yuri, tenho alguns exemplares ‘descasados’ do vol. 1. Gostaria de oferecer a você e, na oportunidade, conhecê-lo pessoalmente. Moro numa chácara na rodovia de Trindade pertinho de Goiânia”.

 Nosso contato, que era apenas por correspondência virtual, não permitiu que ela colhesse maiores informações a meu respeito. Agradeci-lhe e a informei que não dirigia e iria acompanhado.

Golpe de Bulhões e estrada de ferro

 Lena e seu marido Floriano de Freitas me receberam em sua casa, em pleno carnaval de 2014. Meus tios, o arquiteto Mário Baiocchi Filho e Regina Lacerda, levaram-me ao encontro.

 Assim que meu tio desceu do carro, foi cumprimentado por Lena como se fosse ele o convidado. Ela se espantou quando soube que a visita era o garoto do banco de trás.

 Desci do carro carregando uma mochila de alça de corda da Tommy com duas pastas de cartas da virada do século retrasado para o centênio passado. Tratava-se de correspondências entre o ministro Leopoldo de Bulhões e oligarcas do interior: Hermenegildo Lopes de Moraes, Tubertino Ferreira Rios e Diógenes de Castro Ribeiro.

 Levei aqueles documentos até lá para que a autora pudesse ver pela primeira vez fontes primárias com versões diferentes das defendidas por seus biografados, uma vez que não tivera acesso a elas anteriormente. O tema era a Estrada de Ferro Goiás e seu traçado nunca executado, que deveria beneficiar Pirenópolis, Jaraguá e a Cidade de Goiás. Boa parte dos documentos data de 1905, quando Bulhões (morando em Petrópolis) intentara um primeiro golpe contra Xavier de Almeida.

 Conversamos ininterruptamente por mais de seis horas, enquanto Lena e Floriano nos mostravam os cômodos da sede da chácara Santa Cruz — uma réplica mais confortável da fazenda dos ancestrais da historiadora, no Maranhão.

 Meu tio Marinho Baiocchi se lembrou que chegara a receber um telefonema de Lena a fim de que ele pegasse o projeto arquitetônico da sede, que deveria seguir a construção original do Maranhão. Ele recusara por trabalhar apenas com projetos totalmente autorais e não realizar intervenções. O arquiteto contratado, não me lembro o nome, fora alguém do círculo de amizades de meu tio. Ele e Lena estavam se conhecendo pessoalmente pela primeira vez, assim como minha tia Regina Lacerda (sobrinha e homônima da folclorista, que foi amiga de Lena).

 Esgotado o veio histórico, improvisamos um sarau: declamei Bilac (“Via-Láctea”), Drummond (“E agora, José?”) e Pessoa (“A Tabacaria”). Lena recitou algo que não me lembro, e Floriano nos mostrou versos de sua lavra — um deles, meio premonitório, tratava-se de um soneto de amor cujo primeiro quarteto era um acróstico “L-E-N-A”, com um detalhe: eles ainda sequer se conheciam.

 No começo da noite, após a chegada de seu filho Fernando e da nora Inara Caiado (filha do senador Emival Caiado), estendemos um pouco mais a conversa e fomos embora.

 Lena me presenteou com os dois volumes de sua obra e, ao saber de quem eu era neto, deu-me também um livro seu de contos, “Novilha de Raça e Outros Contos”, dedicado a minha avó Carmen Rios Baiocchi — que não só leu como gostou. A irmã de Lena, Marita Castello Branco, alugara a casa vizinha à de minha família em Jaraguá quando seu marido Lapércio Wanderley lá trabalhava num banco. O casal fundara o Lions Club naquela cidade junto com meus avós. Já em Goiânia, Lena frequentou o mesmo distrito leonino de minhas tias.

Crucifixo de Veiga Valle e orientação

 Continuamos a nos corresponder durante os últimos nove anos. Algum tempo depois daquela visita, minha tia Regina Lacerda escreveu para Lena sobre o crucifixo de Veiga Valle, de origem familiar, que eu recuperara de uma repartição pública para a minha avó e que se preocupava que meu envolvimento com assuntos extra-colegiais me tirassem o foco. Pediu-lhe ajuda no sentido de direcionamento educacional.

 A princípio Lena entendeu que fosse ajuda para bancar os estudos ou coisa do tipo, oferecendo-se para comprar a estátua se fosse o caso. Quando, enfim, compreendeu que minha avó e minha tia procuravam uma espécie de orientador pedagógico, Lena nos indicou sua amiga: professora Nancy Ribeiro de Araújo e Silva, pessoa cuja honestidade faz falta nos ambientes pelos quais passou.

 Aos 14 anos e sem uma ideologia política muito clara, sequer sabia qual era a de Lena, mas foi justamente seu marido Floriano quem me chamou atenção para as ideias de Antonio Gramsci sobre o Futurismo italiano, publicadas em formato de uma “carta a Trótski”. Floriano também teceu elogios pontuais às definições e introdução histórica de Karl Marx a respeito da dominação britânica na Índia. Não sei qual era seu espectro político, mas arrisco dizer que seria do tipo que buscava conhecer até o que não gostava (para discutir com propriedade).

Academia de Letras e Pedro Ludovico

 Com o tempo, distanciei-me de Lena. Recebi um seu telefonema quando da morte do tio César Baiocchi, membro da Academia Goiana de Letras. Ela perguntou para mim se a antropóloga Mari de Nasaré Baiocchi seria candidata à vaga deixada pelo irmão, pois neste caso não cederia aos pedidos para que se candidatasse. Muito discretamente perguntei à tia Mari, que me disse um “não” retumbante e desinteressado. Informei então a Lena, que me agradeceu e depois me convidou para a sua posse por ocasião do sufrágio na eleição, a qual não fui.

 Algumas vezes liguei para Lena a fim de sanar dúvidas relativas à metodologia científica, no que ela era excelente. Lena não poupava notas de rodapé. Certas vezes falei também rapidamente sobre poesia com o Floriano.

 Veio a mudança deles da chácara, no caminho para Trindade, para o Villa dei Fiori, no Setor Oeste, onde moram Lígia Félix de Sousa (filha do professor Domingos) e Hugo Ludovico Loyola Teixeira (neto de Mauro Borges) — que é também o síndico.

 Em 2019, no Museu Pedro Ludovico Teixeira, assisti ao lado de Lena à palestra de Maria Dulce Loyola Teixeira sobre a vida do ilustre morador daquela casa. Ao final, ela pediu a palavra e fez um discurso isento e ao mesmo tempo merecedor à figura de Pedro Ludovico, afastando naquele momento qualquer pecha a respeito de sua parcialidade fruto do parentesco de seu filho com os Caiado.

 Vale dizer que Cyridião Ferreira da Silva, pai de Lena, fora o responsável por executar o projeto do também engenheiro Geraldo Duarte Passos para a sede da Estação Ferroviária de Goiânia, cuja direção da Estrada de Ferro Goiás estava a cargo do major Mauro Borges Teixeira. Quando soube disso, encaminhei para Lena uma fotografia de autoria do professor José Edilberto da Veiga, em que mostra cenas da inauguração da Estação Ferroviária de Goiânia. Ela se reconheceu numa das fotos, posando junto ao grupo na frente da locomotiva.

 Um pouco antes, em 2018, por ocasião de minha maioridade, Lena me enviara: “que a idade adulta o conserve sempre idealista e criativo, amante da literatura e das artes”. Dois anos depois, sabendo-me ateu, escreveu-me mesmo assim: “muita disposição para nos enriquecer com teus conhecimentos, pensamentos e escritos, e que jamais te esqueças: a quem muito Deus favoreceu, muito lhe será cobrado”.

Lena, a amiga guerrilheira e as farpas

 Ainda em 2018, animei-me com a sua entrada para o time de cronistas de “O Popular”. A primeira crônica, “Recomeçando”, contou com uma resenha de minha autoria nas redes sociais. Enviei-a à jornalista goiana Ângela Pontual, da Globo Internacional, que escreveu: “Mamãe gostava muito dela”. A mãe de Ângela, que é ex-mulher do jornalista Jorge Alexandre Pontual, é Wanda Cozetti Marinho — historiadora e guerrilheira brasileira. Wanda, que participara da luta armada, era filha adotiva de Zacheu Crispim (secretário de Segurança Pública do governo Pedro Ludovico). Wanda casou-se, em segundas núpcias, com o ex-padre católico Alípio de Freitas, português e um dos fundadores das Ligas Camponesas e da Ação Popular (AP) — preso e torturado pela ditadura militar. E Wanda foi amiga de Lena.

 Como se vê, Lena tinha a amizade e admiração de personagens do lado político antagônico. E, curioso ou não, estas mesmas figuras se encontravam também relacionadas a Pedro Ludovico Teixeira. Tais proximidades são, no mínimo, simbólicas. Assim como a morte de Lena na véspera do aniversário de Goiânia.

 Continuei lendo suas crônicas, ainda que há muito nos desentendêssemos na interpretação dos fatos políticos do país. Até que em janeiro de 2020, após “Confundindo as cabeças”, em que atacava a população LGBT com argumentos de fundamentalistas religiosos ou frutos de uma visão fora do tempo, respondi-lhe meio que citando o que Bernardo Élis já escrevera: “para cabelos brancos há tinta, para ideia velha não”.

 Capaz das opiniões mais duras e radicais, mas incapaz de um ato deselegante ou grosseiro, Lena não deu sequência àquela conversa. Algum tempo depois, por telefone, eximiu-se dizendo que eu não deveria ter me ofendido pois ela jamais me via assim, isto é, gay, e sim um pesquisador. Eu disse que também não a via assim, isto é, tão velha, até ela escrever aquilo. Farpas trocadas, ninguém se cortou.

 Em 2019, enviei-lhe algo pelo que ela me agradeceria mais de uma vez:

“Cipriana Matilde Castello Branco (filha de José Peruche Castello Branco) casou-se com Pedro Antônio Fagundes.

Cipriana e Pedro foram pais de Jesuína Justina Mariano Peruche.

Jesuína casou-se com Francisco Antônio Mariano.

Jesuína e Francisco foram pais de Maria Francisca da Glória, que se casou com José Felisberto Henrique de Azevedo.

Maria Francisca e José Felisberto tiveram como filha Claudina de Azevedo Fagundes, mulher de Torquato Ramos Caiado.

Claudina era tia-avó de Lygia Fagundes Telles e bisavó de Ronaldo Ramos Caiado.”

Pronto: estava traçado o parentesco entre os Ramos Caiado e os Castello Branco. Por essa nem mesmo a Lena esperava.

Ainda a respeito de seus ascendentes, comuniquei-lhe sobre um leilão com documentos de José Fernandes Castello Branco (datados do século XIX), em lote vizinho a documentos do ex-governador de Goiás Antero Cícero de Assis, ambos arrematados por mim. Enviei-lhe como presente.

Imaginária sacra: esculturas

 Em 2020, consultou-me a respeito da imaginária sacra, em mármore de Carrara, do jazigo de Porcina de Castro Fleury e Manoel Brandão Fleury — por serem eles meus parentes. Contei-lhe então que eram três as esculturas daquele período: uma adquirida por Nelito Fleury, a segunda por José Xavier de Almeida e a terceira por Ignácio Soares de Camargo. Todos meus parentes. Foram vendidas por um negociante de fora de Goiás exclusivamente para sepultamentos de anjinhos (crianças). Por uma fatalidade ou mau agouro, as três crianças faleceram logo após a chegada das estatuetas na cidade.

 A estátua da família Castro Fleury, um anjinho chorando com um pires quebrado em uma das mãos, gerou lendas e mais lendas na Cidade de Goiás: como a de que a criança teria apanhado até a morte por derrubar um pires, o que não corresponde à verdade.

 Furtada e revendida num antiquário do Rio de Janeiro, a estátua fora recuperada anos mais tarde pelo médico e político José Fleury. Hoje se encontra novamente sobre o jazigo perpétuo, entretanto guardada numa jaula.

 Em 2021, transmiti-lhe meus sentimentos pela morte de seu companheiro Floriano. Não deixei de notar que ela se surpreendeu com o gesto. Naqueles mesmos dias, não sei se em agradecimento ou por outro motivo, fez uma doação financeira para a construção do Arquivo dos Indígenas e da Cultura e Orgulho Negro de Goiás (Ar’quicongo, professora-doutora Mari Baiocchi), em que eu era um dos coordenadores. O prédio, anexo ao Arquivo Simão Dorvi, teve a construção supervisionada justamente por Maria Dulce Loyola Teixeira, membro da família e biógrafa de Pedro Ludovico Teixeira.

 Mais uma vez a Lena mostrava que, por mais marcadas ou previsíveis que fossem seus posicionamentos políticos, havia método não só para as suas pesquisas, mas também para as atitudes cotidianas.

 Lena era perfeitamente coerente com o que pensava e com o espaço e tempo nos quais se constituiu. Suas posições, mesmo as que causavam verdadeira guerra, seguiam o direito de guerra. Atacava de frente e guardava para si a faculdade de não contra-atacar depois, como no caso da nota da ANPUH-GO.

 Sou grato a Lena, que me mostrou que somos todos feitos de partes sem qualquer simetria umas com as outras e que podemos ser virtuosos ainda que com uma arma na mão.

 A ela, a historiografia de Goiás deve alguns passos dessa trajetória e traçar novas rotas talvez ainda seja menos desafiador do que navegar como ela navegou.

 Para Lena, que sabia como dizer.

 Yuri Baiocchi é pesquisador.